junho 15, 2015

"Tabaco e Metafísica", por Rafael Trindade (Razão Inadequada)

PICICA: "Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
 

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Estas palavras expressam a distância que me separa do mundo pelo vidro de uma janela. A realidade é grande demais para mim, me excede e isso me assusta. Lá fora está a morte, o mistério, o desconhecido, o “destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada“. Perdi, simples assim, não há o que comemorar. Falhei…
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?”
A neblina de fora reflete a confusão interna, ou seria o contrário? Estou louco ou sou um gênio? “Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!“, não… não… eu não. Não sou disso, não eu, sei de minhas limitações. O mundo é para quem nasceu para o mundo, eu nasci para sonhar que nasci para o mundo. Me dê a natureza mistificada, porque não posso crer em mim mesmo.
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
O que me resta? Comer chocolates talvez… Chocolates, que são a maior expressão da metafísica!! Platões, Kants e Hegels não sonharam com a grande metafísica no ato de comer um simples chocolate. Não há biblioteca nem igreja que ensinem mais que este ato. Estou longe, estou condenado… A Tabacaria do outro lado da rua é tão real que parece outro universo. Não tenho acesso, sua nitidez é uma muralha intransponível. Conquistei apenas aquilo que sonhei. Me pergunto: como é possível viver, estudar e até crer sem ter realmente feito isso? Como pude fazer tudo isso sem realmente fazê-lo? Gostaria de ser um mendigo, para quem sabe aí experimentar a realidade nua, concreta das coisas.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me
Não há nada no espelho que pertença a mim. Sou vários, e talvez por isso a sensação de não ser nada. Saio de casa sem realmente sair, meus portões são cruzados por figuras estranhas, por vezes assustadoras, por tipos não confiáveis. Meu reino não é deste mundo, mas não sei também onde localizá-lo. Queria sair para peregrinar, mas permaneço “calcando aos pés a consciência de estar existindo“.
Tudo acabará, esta angústia, este orgulho de sentir-se sensível, impressionável. Logo mais, tudo será nada; logo menos, o ser se fará diferença. Um abismo se abrirá entre o que é e o que haverá de ser. Mas tudo será o mesmo, tudo haverá de continuar absurdamente o mesmo. A mesma coisa tal e qual. Tudo termina com o começo de outra. Tudo traz consigo um sim. Tudo sempre retorna, mas sempre retorna diferente daquilo que foi.
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas eis que a consciência dá três fortes pancadas na porta da minha cabeça “e a realidade plausível cai de repente em cima de mim“. Tudo gira, uma descarga de sentimentos leva para longe toda abstração, encontro a mim mesmo como homem prático, educado, dentro de um terno bem cortado. Atendo a porta da existência e percebo que “a metafísica é uma consequência de estar mal disposto“, é um vício do ócio, uma baixeza do tédio, um custoso costume, um mal-estar da alma.
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu”

Texto baseado no poema
Texto baseado no poema “Tabacaria” de Fernando Pessoa

Fonte: Razão Inadequada

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