PICICA 1: ""No
Paiz das Amazonas" (1922), lendário documentário de Silvino Santos
(1886-1970) trouxe às telas as primeiras imagens da Amazônia no início
do século XX."
PICICA 2: "O diferencial de Silvino em No Paiz das Amazonas
estava justamente no seu domínio da linguagem, seja na captação ou na
montagem do filme. O cineasta inverte determinada sequência para
apresentá-la de trás para frente, por exemplo, a fim de causar tensão.
Além disso, a mesma lente que revela o fascínio pela Amazônia não deixa
de revelar suas peculiaridades e seus horrores, como na cena em que uma
série de peixes-boi mortos são enfileirados por caçadores. Para o
escritor Márcio Souza, como afirma em seu livro A Substância das Sombras, No Paiz “mostra-se
um filme de ritmo moderno, muito próximo do sonoro em sua narrativa
fluente e sem a ingenuidade dos filmes de vistas dos tempos primitivos
da cinematografia. A câmera de Silvino Santos não era passiva. […] [Ele]
fazia espetáculo com o próprio suceder do documental, sem artifícios ou
truques. Por isso é um filme expositivo sem ser monótono”."
No Paiz das Amazonas (Joaquim Gonçalves de Araújo & Silvino Santos, 1922)
***
Silvino Santos: um olhar pioneiro sobre a Amazônia
Por Gabriel Oliveira · Publicado em 13 de novembro de 2014
Silvino Santos
nunca se naturalizou brasileiro. Não precisava: embora seus documentos
acusassem sua nacionalidade portuguesa, foi em Manaus que Silvino se
instalou e viveu boa parte de sua vida, adotando o Norte brasileiro como
pátria-mãe. Foi assim que ele se consolidou como a primeira grande
expressão do cinema amazonense, exercitando muito mais um olhar de
dentro da região do que a visão exótica do estrangeiro comum, como se
ele mesmo fizesse parte do povo dessa região.
Depois do reconhecimento em seu auge na
década de 1920, Silvino caiu no esquecimento durante muito tempo,
vivendo como simples funcionário nos fundos da empresa de J.G. Araújo.
Seria apenas em 1969, com a realização do I Festival Norte de Cinema
Brasileiro, que seu nome seria redescoberto por agitadores culturais e
cinéfilos da época, como Cosme Alves Neto, Joaquim Marinho e Márcio Souza.
Até então, como conta Cosme, eles acreditavam estar “inventando o
cinema no Amazonas”. A descoberta, por acaso, da obra de Silvino
impressionou o grupo. O resultado foi a chance de levar o cineasta aos
holofotes uma última vez, para consagrá-lo em uma justa homenagem no
encerramento do festival, no antigo Cinema Odeon.
Silvino faleceria no ano seguinte, aos
84 anos de idade. Hoje, quase um século depois de suas primeiras
produções, resgatar sua obra continua sendo primordial não só para
decifrar parte da história do audiovisual amazonense, mas também para
entender por que os títulos de “pioneiro” e “cineasta da selva” ainda
lhe são atribuídos com tanta propriedade e impedir que seu nome caia
mais uma vez no desconhecimento.
De Portugal para a selva
Mas, afinal de contas, por que um
português sonharia tanto com uma terra além-mar? Silvino nasceu em
novembro de 1886, na pequena vila portuguesa de Cernache do Bonjardim,
quilômetros e quilômetros afastado do Amazonas. Filho de família
abastada, nunca se identificou com a vida rural ou os negócios
familiares. Conta ele em seu manuscrito Memórias – Romance da Minha Vida
(1969) que, um dia, lendo a “Selecta Portuguesa”, se deparou com uma
página que descrevia o Amazonas, o maior rio do mundo, e logo se
encantou. Logo, assim que a oportunidade de conhecer o Brasil surgiu,
aproveitou-a e, aos 14 anos, embarcou em um navio com uma família amiga
rumo ao seu sonho.
Sua relação com a imagem começaria algum tempo depois, quando conheceu o fotógrafo e pintor Leonel Rocha,
no Pará. Movido pelo encanto da região amazônica e pela vontade de
registrar cada ínfimo detalhe, tornou-se aprendiz de Leonel e, juntos,
eles partiram para Iquitos, no Peru, onde Silvino se especializaria na
arte da fotografia.
O cinema em si apareceria na vida de
Silvino anos depois, durante o apogeu da borracha. Como uma encomenda
qualquer, o cônsul do Peru, Carlos Rey de Castro,
convidou o português, já instalado em Manaus, a embarcar numa expedição
ao Rio Putumayo, na fronteira entre Peru e Colômbia. O objetivo era
registrar fotos dos índios que trabalhavam nas terras do seringalista Júlio César Arana,
que construiu sua fortuna com a borracha através do massacre de povos
indígenas, o que lhe rendeu acusações judiciais em Londres. Crente no
poder da imagem em movimento, Arana pretendia usar um filme em sua
defesa e, para isso, enviou Silvino a Paris, para que lá ele aprendesse a
manusear o cinematógrafo nos estúdios da Pathé e nos laboratórios dos
irmãos Lumière.
Uma vez de volta às margens e ao longo
do Putumayo, devidamente equipado e preparado, Silvino pôde começar a
filmar a Amazônia dos seus sonhos. O filme produzido para Arana, no
entanto, se perdeu em um naufrágio a caminho da Europa. Felizmente,
Silvino, já de posse dos aparelhos necessários, se lançou com gosto à
aventura cinematográfica e, em 1916, exibiu seu primeiro filme, Índios Witotos do Rio Putumayo. Seria apenas o início de uma extensa produção.
Cinema no país das Amazonas
Em 1918, o pioneiro Silvino lançou a primeira produtora de filmes da região, a Amazônia Cine-Film.
Assim, ficou conhecido como realizador audiovisual e teve a chance de
experimentar novas produções, muitas delas institucionais. A empresa
viria à falência, porém, pouco tempo depois. Culpa de Propércio Saraiva,
professor que vendeu o filme Amazonas, o Maior Rio do Mundo (1920) a uma empresa de turismo e sumiu no mundo com os rolos, dando um triste fim a três anos de trabalho árduo de Silvino.
Para sua sorte, a derrocada da produtora
lhe abriria as portas para o seu maior apoiador em vida, o mecenas de
praticamente toda sua obra: o comendador J.G. Araújo,
conhecido por ser um forte nome de expressão empresarial na região
Norte. Araújo adquiriu toda a parafernália da Amazônia Cine-Film e
convocou logo quem melhor sabia lidar com aquilo: naturalmente, o
próprio Silvino.
Em 1922, o Centenário de Independência
do Brasil aconteceria no Rio de Janeiro, e diversas empresas e pavilhões
participariam para mostrar seus produtos. Com o objetivo de vender o
estado do Amazonas para o resto do mundo, J.G chamou Silvino e seu
próprio filho, Agesilau Araújo, para que produzissem um “grande filme”. E assim surgiu o fenômeno intitulado No Paiz das Amazonas (com –z como rezava a grafia da época), filmado ao longo do Amazonas e em partes de Rondônia e Roraima.
Depois de sua estreia no Rio de Janeiro, o filme conquistou o mundo. Em No Rastro de Silvino Santos,
livro dos pesquisadores Selda Vale da Costa e Narciso Júlio Freire Lobo
(e uma das principais referências sobre a vida e obra de Silvino),
Selda transcreve a sensação impressa por um repórter carioca em um
jornal da época, em 1923:
“É aquele,
certo, o novo Éden, se houve dois Édens na terra. E o leitor ficará a
pensar qual será esse novo Éden de que fala o poeta… Não vá, porém,
supor que seja blague, não; esse Éden existe e está até bem perto de
nós; muito mais perto que Paris, Londres, Berlim ou Nova York. Esse
paraíso moderno fica situado no próprio território brasileiro e é o
Amazonas.”
O diferencial de Silvino em No Paiz das Amazonas
estava justamente no seu domínio da linguagem, seja na captação ou na
montagem do filme. O cineasta inverte determinada sequência para
apresentá-la de trás para frente, por exemplo, a fim de causar tensão.
Além disso, a mesma lente que revela o fascínio pela Amazônia não deixa
de revelar suas peculiaridades e seus horrores, como na cena em que uma
série de peixes-boi mortos são enfileirados por caçadores. Para o
escritor Márcio Souza, como afirma em seu livro A Substância das Sombras, No Paiz “mostra-se
um filme de ritmo moderno, muito próximo do sonoro em sua narrativa
fluente e sem a ingenuidade dos filmes de vistas dos tempos primitivos
da cinematografia. A câmera de Silvino Santos não era passiva. […] [Ele]
fazia espetáculo com o próprio suceder do documental, sem artifícios ou
truques. Por isso é um filme expositivo sem ser monótono”.
O sucesso do longa abriu as portas para
Silvino realizar outras produções: durante sua estada no Rio de Janeiro,
filmou a cidade e fez o chamado Terra Encantada (1923). Depois, de volta a Manaus, embarcou numa expedição ao Rio Branco junto com o americano Hamilton Rice.
Foi a oportunidade de Silvino realizar novas inovações técnicas, como
as primeiras tomadas aéreas da Amazônia, feitas de dentro de um
hidroavião. A empreitada não conseguiu chegar ao destino desejado, mas o
português filmou o suficiente para montar No Rastro do Eldorado (1925), uma de suas principais obras.
Mais tarde, em uma passagem por Portugal, realizou documentários sobre regiões e hábitos do povo lusitano, como os longas Miss Portugal (1927), sobre o primeiro concurso de Miss Universo realizado em Lisboa, e Terra Portuguesa (1934), resultado de uma compilação de filmes menores.
De volta a Manaus, Silvino viu a
produção de filmes da firma de J.G. Araújo ser desativada. Sua posição
de artista virou a de mero funcionário, e a única chance que ele teve de
se manter perto do cinema e da imagem foi a partir da captação de
momentos caseiros da família Araújo, que revelavam a intimidade de um
núcleo familiar de classe alta daquela época.
Assim, Silvino viu seu mundo ficar cada
vez mais reduzido, até não ter mais condições de produzir seus filmes.
Seu nome cairia no esquecimento, até que ressurgisse nas conversas do
Grupo de Estudos Cinematográficos (GEC) durante o Festival Norte de Cinema Brasileiro.
Com sua morte, deixou para trás o legado de um olhar incisivo sobre a
Amazônia, representado em um mosaico de filmes e fotografias que são um
testemunho precioso da história dessa região.
Resgate e memória
Silvino
Santos produziu pouco mais de cem filmes, entre documentários de média e
curta-metragem, cinejornais e filmes “domésticos” sobre a família
Araújo, além dos nove longas-metragens que realizou. Nem todas as obras
desse acervo puderam ser resgatadas em sua íntegra até agora; muitos
rolos se perderam durante o tempo e não se sabe seu paradeiro, reflexo
do descaso com que o trabalho de Silvino foi tratado. Foi apenas este
ano que No Paiz das Amazonas ganhou uma versão restaurada com a duração original.
O processo de reconstituição do filme,
coordenado pelo Conselho Municipal de Política Cultural (Concultura),
contou com a participação do jornalista e pesquisador Sávio Stoco,
e usou diferentes versões do filme encontradas na Cinemateca
Brasileira, onde hoje está o maior acervo do cineasta, além de outras
fontes, mesmo precárias, como versões digitais feitas a partir de cópias
VHS. Sávio conta que, junto com os parceiros Márcio Souza, presidente
do Concultura, e Felipe Lindoso, fizeram o trabalho rigoroso de comparar
as diferentes versões existentes e encontrar trechos inéditos. É o caso
do simples intertítulo da palavra “fim”, por exemplo, que só existia em
uma dessas fitas. Além disso, outros ajustes como o reposicionamento de
sequências foram feitos, com base em vários debates e pesquisas.
“Todo nosso esforço foi de tornar o
filme ainda mais visível ao público atual, a partir das referências que
temos de como a obra foi originalmente preparada”, afirma Sávio. Ele
também se dedica atualmente a outro projeto que envolve o nome de
Silvino: em seu mestrado em Artes Visuais na Unicamp, Sávio busca
compreender o contexto social de No Rastro do Eldorado, o
segundo título de maior repercussão do cineasta. Além da análise
textual, o objetivo é apresentar uma versão preliminar do filme na
íntegra.
“Não existe uma cópia integral de No Rastro.
Aliás, a rigor, nenhum filme do Silvino está completo. No caso deste,
estou trabalhando em duas fontes principais: uma depositada na
Cinemateca Brasileira, que até os anos 80 estava no British Film
Institute, e outra integrada em 1992 ao acervo do Smithsonian
Institution, em Washington. Ambas estavam sem nenhum dos
intertítulos originais. Felizmente, localizei esse material em novembro
de 2013, transcrito em um documento em papel num acervo público
brasileiro (a minha dissertação vai trazer a identificação do local)”,
conta Sávio, que continua com o projeto de pesquisar novidades sobre a
obra de Silvino.
Antes dele, pesquisadores como Selda Vale da Costa,
uma das principais biógrafas de Silvino, já se dedicaram a esse
trabalho de recuperação do nome e da memória do cineasta. Selda assina
duas obras fundamentais que, além de mergulharem na história de Silvino,
também revelam pontos importantes da história do cinema amazonense: o
já mencionado No Rastro de Silvino Santos, escrita em parceria com Narciso Júlio Freire Lobo, e Eldorado das Ilusões: Cinema e Sociedade.
Embora estejam esgotados para venda, são livros que podem ser
encontrados em bibliotecas públicas e valem a pena serem lidos para se
compreender o panorama do audiovisual da região.
Outros nomes também relembraram o nome de Silvino através do próprio cinema: Roberto Kahané produziu o curta-metragem Silvino Santos – O Fim de um Pioneiro (1970) e o cineasta Aurélio Michiles lançou sua homenagem em 1997, no docudrama O Cineasta da Selva, que conta com a participação de José de Abreu interpretando o pioneiro e depoimentos de Joaquim Marinho, Márcio Souza e Domingos Demasi.
Atualmente, o produtor Abrahim Baze Jr.
também tem um projeto em desenvolvimento envolvendo o nome de Silvino.
Segundo ele, o formato ainda pode ser modificado conforme se busca apoio
para captação e divulgação, mas a ideia inicial é produzir uma série de
microdocumentários para WebTV (de 8 a 12 minutos) e para TV
(de 12 a 24 minutos). Abrahim pretende percorrer locações por onde o
próprio Silvino passou e recriar as viagens feitas pelo cineasta com
cenas dos dias atuais. As gravações devem passar pelo Amazonas, Roraima e
até mesmo Portugal, em diversos lugares como o Rio Uraricuera, mostrado
em No Rastro do Eldorado.
Para Abrahim, é importante fazer
continuamente esse trabalho de reconstituição da memória de nomes como o
de Silvino. “Não só no caso do Silvino, mas o resgate é a maneira de
perpetuar essas histórias. Será que alguém sabe quem foi Eduardo
Ribeiro? Ou alguém conhece os nomes dos bustos da fachada do Teatro
Amazonas? Essa será minha estreia como diretor e quero criar um produto
que possa captar realidades diferentes através das imagens dos dias
atuais e daquelas produzidas por ele, mostrando os pontos e
contrapontos”, afirma o produtor.
Já Sávio enfatiza a importância de
aprofundar o estudo acerca da figura de Silvino. “A obra dele já é hoje
distinguida num quadro brasileiro de cinema, ao lado de outro importante
cineasta documental, Thomas Reis. Silvino possuía um discurso
cinematográfico moderno para seu contexto, seja em termos de montagem,
ritmo ou enquadramentos. Acredito que mais aspectos importantes na obra
de Silvino Santos estão por ser revelados referentes a outros títulos, o
que demanda continuação das pesquisas. É um grande acervo e um trabalho
para gerações”, afirma o pesquisador.
O fato é que Silvino Santos foi
verdadeiramente um artista de seu tempo, representante de um sopro de
criatividade e originalidade que ia além do puro deslumbramento.
Recuperar sua obra, desfalcada pelo tempo e pelo abandono, é cada vez
mais fundamental para impedir aquilo que o professor Narciso Lobo
chamava de “tônica da descontinuidade”, característica tão presente em
um cinema que esquece o que se fez antes e recomeça o processo do zero.
Muito pelo contrário: os mistérios que ainda cercam a produção de
Silvino precisam ser lembrados com a beleza da região e do povo que ele
tanto se esforçou em registrar.
Gabriel Oliveira
Estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas. Já escrevia uma coisa ou outra como bolsista do Programa de Educação Tutorial de Comunicação Social (Petcom) e em outros blogs. Atualmente, também integra a pesquisa “Amazônia Audiovisual – Representatividades Contemporâneas”, do Núcleo de Antropologia Visual (NAVI/UFAM).
Fonte: CineSet
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