PICICA: "Quanto mais se arquiva a ditadura nos fichários da história,
mais se conserva o projeto político experimentado no laboratório
autoritário dos anos 60 e 70."
Morte e ressurreição de um fantasma
Quanto mais se arquiva a ditadura nos fichários da história, mais se conserva o projeto político experimentado no laboratório autoritário dos anos 60 e 70.
Alguns relatórios, como o da Comissão da Verdade de São Paulo, foram mais enfáticos em fazer a relação entre momentos políticos aparentemente distintos, como os da ditadura e os da democracia. O que se verificou é que a verdade sobre os desaparecidos políticos, a estrutura de repressão, a
Quanto mais caminhamos em direção à reconstrução deste passado, mais corroboramos com o esquecimento de seus profundos significados ao apresentarmos uma história morta e sem corpo (ver A construção em abismo da história). Sim, de certo modo, é isto que se fabricou no processo de revisitar a história como se ela se encontrasse em um passado que não nos pertence mais – a não ser como herança maldita com a qual a democracia já teria rompido.
Há poucos dias, a morte da história ressurgiu, como normalmente ocorre, na forma do fantasma. Desta vez, o espectro apareceu como “prova” de uma transição política bem sucedida entre ditadura e democracia. Faleceu o general Leônidas Pires Gonçalves, torturador e assassino durante os anos setenta, quando chefiou o DOI-Codi do Rio de Janeiro. Seu nome consta do Relatório da Comissão Nacional da Verdade.
No momento de sua morte, a
Com um pouco de pesquisa, qualquer um de nós pode verificar o quanto aquele general, hoje espectro autoritário desta democracia, destruiu cada passo democratizante do país, forçando a aceitação de “pactos e acordos”, como o da manutenção da impunidade com base na Lei de Anistia de 1979.
Ouvir as notícias da morte do general e da ressureição constante do fantasma do passado nos remete à ideia do impulso do progresso sobre nossas vidas. É como se aquilo que passou já fizesse parte de outro tempo – por isto, é possível contar a história como se ela estivesse morta, ou no máximo como espectro. Trabalhamos com a sensação de que o tempo se apresenta como uma flecha, como nos diz o sociólogo Bruno Latour, de modo que o acontecido fica para sempre eliminado, contabilizado em nossos relatórios sociais como acúmulo do progresso.
O problema é que os acontecimentos se misturam e passado e presente se encontram nas ações da polícia nas periferias e nas manifestações de resistência; na posse da terra por parte de grandes empreendimentos capitalistas e predatórios; na crescente diminuição da liberdade de expressão e no bloqueio das políticas de criação de novas formas de agir. E com isto se amplificam os conflitos, inclusive com o aumento da violência.
As notícias fabricadas no presente, somadas à tese de que houve no passado um conflito
Quanto mais se arquiva os tempos da ditadura nos fichários da história, mais se conserva o projeto político experimentado no laboratório autoritário dos anos 60 e 70. Todo relatório de comissões publicado sem a análise e apuração da transição e dos conflitos em democracia, por mais apurado e detalhado que tenha sido, depositou em berço esplêndido a tese do nascimento da democracia por ruptura com a ditadura. Estamos, de fato, tão distantes do projeto autoritário “daqueles tempos” como as notícias e os espectros nos fazem acreditar?
Não há resto da ditadura depois de 30 anos de democracia! Há um projeto político autoritário no Estado de Direito brasileiro.
O passado permanece ou, poderíamos dizer neste caso, continua. Quando as formas autoritárias de controle da vida e do cotidiano ressurgem de forma mais violenta, comenta-se sobre uma herança podre da ditadura deteriorando algumas instituições da democracia. Se rompemos com o passado e consolidamos um outro regime, distinto do anterior, o “retorno” do passado só pode se apresentar como recalque, espectro, revanchismo. Não será difícil ouvirmos: “é preciso tomar cuidado, as forças conservadores podem repetir 64, o melhor é defendermos a governabilidade para garantir a democracia duramente conquistada”.
Só é possível acreditar nas instituições do Estado de Direito, na eficácia das leis, nos processos eleitorais e de representação e participação políticas se houver a crença de que rompemos definitivamente com o passado. Sem a
A “tese dos dois demônios” somada à estória da reconciliação nacional e do pacto de transição traveste o projeto autoritário experimentado no laboratório ditatorial em fantasmas do regime democrático. Parece-me que vivemos uma democracia de efeito moral, na qual seu aspecto superficial de liberalismo e de ruptura convive com suas profundezas autoritárias fortemente alicerçadas na história. Ambos aspectos tão reais quanto os fantasmas que nos rondam.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010).
Fonte: Carta Maior
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