PICICA: "Assim como no Brasil, contra os belos corpos da multidão que dançava
em junho nas metrópoles, a revolução da Maidan foi logo desqualificada:
“reacionária”, “fascista” e até “nazista”. Uma eficaz campanha de
desinformação foi montada e instrumentalizada pelo bloco governista no
Brasil, para corromper a própria ideia que um levante democrático possa
ou deva ocorrer."
Maidan em junho
Por Giuseppe Cocco e Pedro Grabois | Introdução à entrevista com Constantin Sigov – filósofo – Kiev (Ucrânia)Para ir direto à entrevista, clique aqui.
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Constantin Sigov é filósofo da Universidade de Kiev, foi professor convidado na Universidade Panthéon – Sorbonne (Paris1) e na École des Hautes Études en Sciences Sociales e estava no Brasil a convite dos professores Fernanda Bruno (ECO-UFRJ) e Fernando Santoro (IFCS-UFRJ).
No Brasil, o primeiro levante da multidão aconteceu em junho de 2013. No Rio de Janeiro, as mobilizações por democracia e serviços de qualidade, contra a casta mafiosa que governa o estado e as cidades, continuaram até outubro, quando a repressão mostrou seus dentes. Foi um levante contra governos corruptos entregues aos interesses de empreiteiras, incorporadoras e companhias de ônibus.
Pelo passe livre, na ocupação de casas legislativas, na luta pela paz, contra a guerra aos pobres chamada de “pacificação”, no início do levante brasileiro os manifestantes faziam referência direta aos protestos em Istambul, na Turquia. A seguir, Istambul e Brasil reapareceram na multidão da Praça Maidan, em Kiev, capital da Ucrânia.
Assim como no Brasil, contra os belos corpos da multidão que dançava em junho nas metrópoles, a revolução da Maidan foi logo desqualificada: “reacionária”, “fascista” e até “nazista”. Uma eficaz campanha de desinformação foi montada e instrumentalizada pelo bloco governista no Brasil, para corromper a própria ideia que um levante democrático possa ou deva ocorrer.
A intervenção militar russa, com a anexação da Crimeia e o início do conflito armado nas regiões fronteiriças, foi apresentada como “reação justa” diante dos “fascistas manipulados pelo imperialismo”. Mais de 20 anos depois da queda do muro de Berlim (1989) e do desaparecimento da URSS (1991), Putin se tornou o herói anacrônico de um saudosismo insólito da Guerra Fria.
Parece que estamos lendo o Diário de Alexander Berkman, entre 1920 e 22, ao relatar o que lhe havia confiado um comunista ucraniano:
“A Ucrânia não é a Rússia — é um grande erro do ‘centro’ nos tratar como se o fôssemos. Teríamos o povo a nosso lado com uma maior autonomia local e maior independência. O nosso partido ucraniano tem feito todos os esforços para convencer Moscou sobre esse assunto, mas sem resultado. Somos uma república só no nome, na realidade somos apenas uma província russa”[1].
O autoritarismo e o totalitarismo continuam vivos: os ucranianos não podem ter o direito de decidir seu futuro, por exemplo, entrar na União Europeia, “alguém” (Putin, a “esquerda” mundial, supostos teóricos de impossíveis antropologias do Sul que comemoram a “nova guerra fria”) vai decidir o que é melhor para eles. As guerras e anexações promovidas e conduzidas pelos Estados Unidos são – justamente – condenáveis, já a guerra promovida pela Rússia de Putin é “anti-imperalista”. Assim, as forças que se definem “progressistas” apoiam a agressão contra a Ucrânia que pode servir de pretexto a um novo conflito, a uma intervenção da OTAN ou seja, apoiam a guerra e tudo isso com base numa bela desinformação. A começar por Putin, que da União Soviética só mantém o nacionalismo e as simpatias com os movimentos fascistas e anti-europeístas da França, da Itália e da Hungria.
Como não lembrar as palavras de Maurice Merleau-Ponty, engajado a reformular o perspectivismo marxista diante das novas lutas do segundo pós-guerra e ao mesmo tempo nos oferecendo, já em 1956, uma bela definição do estalinismo, a única dimensão não morreu na “esquerda”:
“Um regime que quer fazer e não quer saber de nada trata o fracasso como sabotagem e a discussão como traição. (…) Ele organiza o segredo sobre si mesmo de maneira tão cuidadosa que pode vir ignorar (sua realidade até) de boa fé. Só pode se pensar a não ser como a virtude, a negação dos vícios do adversário, e percebe o que está fora dele somente como obstáculo ou auxiliar. Sua grande regra é de julgar sem ser julgado”[2].
A entrevista com o filósofo ucraniano Constantin Sigov, realizada em novembro de 2014, é uma belíssima oportunidade para pensar a Maidan do ponto de vista de quem ali estava e também para retomar algumas reflexões políticas mais gerais que são prementes a nós.
Trata-se de um depoimento e de uma reflexão urgente, diante das mobilizações de março e abril de 2015 no Brasil. A multidão é hoje atravessada por discursos e simbologias de direita que o governo instrumentaliza para, mais uma vez, fechar-se diante da indignação popular. O governo usa uma simbologia “vermelha”, mas tem uma política de direita (ajuste fiscal, remoção de pobres, exército nas favelas, agronegócio contra a floresta e contra os índios, além de corrupção sistêmica) e ao mesmo tempo continua desqualificando os protestos.
Podemos hoje ver claramente o interesse que o “governismo” tinha de difamar a revolução de Maidan. Mas o depoimento do Professor Sigov nos dá elementos para uma reflexão política e filosófica de mais fôlego. Esquematizemos em quatro partes: (1) Maidan; (2) Totalitarismo – Cronstadt (3) Humanismo; (4) o Campo.
- Maidan: Constantin reconstitui esquematicamente o evento, suas dimensões multiétnicas. Ele nos fala do poder constituinte na Praça da Independência (Maidan em Ucraniano). Trata-se de informações que mostram os níveis de manipulação orquestrados contra a multidão de Kiev. Ouvir Constantin nos faz pensar ao Diário de Berkmann, em 1920, quando ele descrevia o desentendimento entre os comunistas ucranianos e os russo que tratavam a Ucrânia como uma província russa.
- Totalitarismo: aqui a reflexão é mais geral e nos leva a um debate que toda a esquerda ocidental (mesmo a mais radical e libertária) nunca quis travar. Falaremos então do paradigma de Cronstadt, esse trágico episódio do massacre dos sovietes de Cronstadt por Lênin e Trotski, antes do Stalinismo, em 1921. Mais uma vez, temos o diário de Berkmann, mas também as reflexões de Maurice Merleau-Ponty e, naturalmente, de Hannah Arendt e Soljeniztin.
- Humanismo: a partir da reflexão sobre adesão à Europa, Sigov começa um debate sobre Humanismo e os valores da democracia. Encontramos nessas pistas as reflexões de Maurice Merleau-Ponty sobre Comunismo e Humanismo e também aquelas de Claude Lefort sobre democracia.
- Campo: visitando as Favelas do Complexo do Alemão, Sigov ficou chocado pela realidade da segregação da pobreza e quis fazer uma declaração em Russo para as câmera. Diante da favela, Sigov pensou ao Campo e, como ucraniano, pensou ao Gulag. Mais uma vez podemos pensar a Vida e Destino de Vassily Grossman e ao Arquipélago Gulag de Alexandre Soljenitzin. Mas como não pensar também ao que Giorgio Agamben escreveu sobre o paradigma do “campo”.
[1] El mito bolchevique, Diario 1910-1922, La Malatesta/Tierra del Fuego, Madrid, 2013, p.194.
[2] “Sur a déstalinistation” (1956), in Signes, 1960, Gallimard, Paris, p. 481. Grifos nossos.
Fonte: UniNômade
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