PICICA: "“Aprender a cuidar de si significa saber governar-se. É clara a
intersecção ético-política destes dois termos e suas correspondentes
práticas. Só poderá ser bom governante da pólis quem antes tenha
aprendido a governar sua vida”, escreve Castor Castor Bartolomé Ruiz."
A Filosofia como forma de vida (II)
Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia)
Por: Castor M.M. Bartolomé Ruiz
“Aprender a cuidar de si significa saber governar-se. É clara a intersecção ético-política destes dois termos e suas correspondentes práticas. Só poderá ser bom governante da pólis quem antes tenha aprendido a governar sua vida”, escreve Castor Castor Bartolomé Ruiz.Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).
Eis o artigo.
I
A filosofia, ao menos desde os tempos de Sócrates (século V a.C.), tinha como principal objetivo ajudar a criar uma forma de vida. A vida não tinha uma única forma que a formatasse, mas cada sujeito deveria criar a forma de sua vida de acordo com as opções axiológicas e suas convicções epistêmicas. A filosofia tinha como missão ajudar os sujeitos a não viver uma mera vida animal (zoe) aprendendo a construir uma forma de vida própria que, enquanto vida humana, fosse além da mera sobrevivência imposta pela vida biológica.
Os gregos tinham dois conceitos diferentes para nomear a vida. A vida determinada pela ontologia da espécie e pela natureza biológica de cada indivíduo era denominada pelos gregos de zoe. Para designar a nova forma de vida, ou a vida constituída além da mera sobrevivência biológica, os gregos usavam o termo bios. Bios era a vida humana construída como uma forma de viver que vai além da mera determinação da vida biológica. O ser humano se diferenciava dos animais porque tinha o poder de criar uma forma de vida, um modo de existência além das meras determinações da natureza biológica. O resto dos seres vivos tem que se limitar a viver uma única vida, a zoe, determinada pelos imperativos da natureza de sua espécie. Só o ser humano tem o poder de criar uma forma de vida além da mera zoe. A filosofia tinha como principal missão ajudar as pessoas a criarem essa forma de vida.
II O ethos e a forma de vida
Nas sociedades antigas, o conceito forma de vida poderia ser interpretado de muitas “formas”, havia uma visão plural sobre as formas de vida que era possível criar para a vida humana. As diversas escolas filosóficas surgiram em torno das diferentes formas de vida que propunham. Platônicos e neoplatônicos, aristotélicos, estoicos, epicuristas, cínicos, céticos eram escolas filosóficas que se diferenciavam pela forma de vida que propunham. O aparato conceitual desenvolvido por cada escola, episteme, tinha por finalidade auxiliar na constituição da forma de vida dos sujeitos, que significava criar um ethos ou modo de vida. A finalidade filosófica de criar uma forma de vida é uma tarefa essencialmente ética. Aliás, a ética era entendida como uma prática constitutiva da forma de vida dos sujeitos. Só há ética no modo como o sujeito constitui sua vida. Como consequência, esse ethos influía nas formas coletivas que os sujeitos criaram nas pólis, política. Havia uma estreita relação entre a forma de vida (ethos) e a forma política de governo.
III
A preocupação da filosofia por ajudar os sujeitos a criar uma forma de vida foi desaparecendo a partir do século V d.C., transferindo esta tarefa para a teologia cristã, que vinha se consolidando como um saber que adaptou a mensagem bíblica e a tradição sapiencial oriental, própria da teologia semita, aos parâmetros da filosofia grega. A absoluta maioria dos teólogos cristãos dos primeiros séculos eram filósofos ou foram formados em escolas filosóficas, por este motivo a influência da filosofia na teologia cristã foi vista como algo muito natural. Inclusive, para uma parte significativa dos pensadores cristãos, a teologia cristã, do modo como eles a estavam construindo, era vista como a culminação da filosofia clássica. Transferir para a teologia a responsabilidade por criar uma forma de vida foi percebido neste momento como um passo natural da filosofia. Pierre Hadot considera que foi principalmente nesta transição que a filosofia declinou para a teologia sua originária missão de criar uma forma de vida. Michel Foucault considera que o momento crítico desse declínio aconteceu no século XVII, quando a razão moderna separou definitivamente o conhecimento da ética, o saber do modo de ser. O que Foucault denominou de “momento cartesiano” representaria o declínio definitivo da filosofia moderna em sua missão de auxiliar os sujeitos a criar uma forma de vida.
Vários autores contemporâneos voltaram parte de suas pesquisas para esta problemática da filosofia como forma de vida, entre eles: Pierre Hadot, Michel Foucault, Giorgio Agamben. Cada um dirigiu seu olhar por um motivo diferente e com um objetivo específico, mas todos eles identificam na filosofia um saber que tem a potencialidade de constituir formas de vida para os sujeitos. No caso específico de Foucault e Agamben o interesse pela filosofia como forma de vida deve-se, também, ao fato de que estes autores percebem nessa potência da filosofia uma possibilidade de constituição da autonomia efetiva dos sujeitos e, como consequência, uma prática que possibilite resistir aos dispositivos biopolíticos de sujeição e controle que dominam nossas sociedades. Para Foucault e Agamben, a filosofia como forma de vida é uma prática capaz de criar estilos de vida com autonomia efetiva que resista aos ingentes aparatos de domesticação social, oferecendo uma alternativa à hegemonia dos dispositivos de controle das condutas e neutralizando o predomínio da sujeição voluntária dos indivíduos aos apelos da maquinaria biopolítica dominante.
IV Epiméleia heautoû (cuidado de si) e a forma de vida
Foucault destacou em suas pesquisas sobre a filosofia antiga a importância do termo epiméleia heautoû (cuidado de si) como eixo central da prática filosófica da forma de vida na filosofia antiga. Epiméleia heautoû é um termo amplamente utilizado pelos diversos filósofos gregos e romanos desde Sócrates até Santo Agostinho. O termo designa uma prática específica do sujeito sobre sua subjetividade que lhe permite constituir uma forma própria de existência.
Tomando como exemplo a obra Alcibíades, de Platão, encontramos o termo epiméleia heautoû pela primeira vez em sua forma mais elaborada. Alcibíades é um jovem da aristocracia ateniense que tem pretensões de atingir altos cargos de governo na pólis, para tanto se dirige a Sócrates, enquanto filósofo, para que lhe ajude a preparar-se para essa missão. Sócrates, utilizando seu método maiêutico, lhe interroga acerca do modo como ele cuida de si (epiméleia heautoû), levando-o a descobrir que não tinha nenhuma preocupação nem experiência prática sobre o cuidado de si. Nesse caso, alguém que não sabe cuidar de si, como pretende cuidar dos outros? Ainda mais, alguém que não sabe se governar, porque não sabe cuidar de si, como pretende governar os outros?
Alcibíades chega até Sócrates cheio de vaidades pela estirpe aristocrática a que pertence e pelo futuro promissor que se imagina como governante de Atenas. Sócrates mostra-lhe o seu despreparo total para governar os outros uma vez que nem aprendeu a governar-se. Alcibíades descobre que não tem nenhuma habilidade (virtude) desenvolvida no cuidado de si, por isso está sem preparo para o exercício das virtudes essenciais para o governo de sua vida e, como consequência, sem capacidade para poder governar outros.
Sócrates continua a questionar, mas o que é cuidar de si? Cuidar dos bens é cuidar de si? Cuidar da casa? Cuidar do corpo? Tudo isso não é cuidar de si, mas cuidar das coisas. Então o que é cuidar de si? Foucault destaca que o ponto crítico da prática do cuidado de si se cruza com a noção de governo. Cuidar de si e governar-se se identificam na filosofia antiga. Cuidado e governo são práticas assimiladas. Aprender a cuidar de si significa saber governar-se. É clara a intersecção ético-política destes dois termos e suas correspondentes práticas. Só poderá ser bom governante da pólis quem antes tenha a aprendido a governar sua vida.
V
Ainda permanece a questão, o que é governar a vida cuidando de si? Todas as escolas filosóficas antigas coincidem no diagnóstico, embora se diferenciem no método que propõem para o cuidado de si. Em primeiro lugar, o dilema que guia a problemática do epiméleia heautoû é a liberdade ou a escravidão. A pessoa tem que aprender a não ser escrava de si e das influências sociais. Como alguém pode ser escravo de si? Escravo é aquele que não tem vontade própria ou cuja vontade é arrastada por outras forças sem que ele as consiga dominar. Este é o ponto crítico do epiméleia heautoû e do governo de si. Não tem maior escravo que aquele que é escravo de si mesmo porque perdeu ou não desenvolveu a capacidade de domínio de si (enkrateia).
Os gregos distinguiam entre vício e virtude. Chamavam de vício aquilo que escravizava o indivíduo, virtude (areté) o que lhe dava a potência da felicidade (eudaimonia). O vício, denominado por eles de pathos ou paixão, era a força interior que domina o indivíduo conduzindo-o para formas nefastas de vida. O vício escraviza o indivíduo impedindo-o de governar sua vida por si mesmo e lhe arrasta a praticar hábitos (hexis) destrutivos de sua existência. O vício é um hábito destrutivo, a virtude é um hábito construtivo. O vício é um hábito que dobra a vontade negando-a, a virtude é um hábito que domina sobre a vontade governando-a. Vícios como ambição, cólera, ódio, inveja, luxúria, avareza, gula, preguiça tornam o indivíduo um escravo de si, por isso aqueles que não desenvolveram a virtude do domínio de si (enkrateia) são denominados pelos vícios. De igual forma, as influências sociais, honras, honores, riquezas, status, induzem os indivíduos a influenciar-se para atingi-las sem perceber o quanto eles se submetem para conseguir o que a sociedade almeja como melhor. Esta dupla polaridade pode tornar o sujeito escravo de si e dos apelos sociais.
Todas as escolas filosóficas coincidem, com breves divergências, neste diagnóstico da escravidão e também coincidem em que a filosofia tem por objetivo propiciar uma prática que possibilite a liberdade, entendendo esta como capacidade de governo de si. Há consenso em todas as escolas filosóficas de que o meio para atingir a liberdade é a virtude, para atingir a virtude é necessário o epiméleia heautoû. O cuidado de si é concomitante com a prática da virtude. Consegue-se ser virtuoso em algo se se mantém uma adequada prática do cuidado de si. E vice-versa, só é possível o epiméleia heautoû através da prática contínua da virtude. A diferença entre as escolas filosóficas começa quando há que escolher o modo como atingir essa virtude e também se diferenciam na definição de qual a virtude mais importante para conseguir a liberdade de si. No centro das diferenças filosóficas, permanece a convergência de que o epiméleia heautoû é a prática que define a filosofia enquanto tal e que a virtude é o objetivo principal do cuidado de si para atingir o governo de si.
VI
Poderíamos dizer que uma virtude inicial do epiméleia heautoû é a enkrateia (poder de si, domínio de si). Um primeiro objetivo do epiméleia heautoû é habilitar o sujeito para ter o domínio de si (enkrateia) e conseguir não ser dominado por outros, mesmo que esse outro sejam os impulsos viciosos da natureza. Esse domínio de si é uma habilidade que deverá se transformar em hábito (hexis) para conseguir não ser dominado pelos impulsos negativos da natureza, vícios, nem pelas más influências sociais.
Os gregos, diferentemente dos modernos, tinham a convicção de que a liberdade não era algo natural. Não somos livres por natureza, temos que aprender a ser livres, para tanto é imprescindível que o sujeito se habilite na prática contínua e permanente do domínio de si (enkrateia). Sem essa virtude inicial, o indivíduo estará muito vulnerável às influências de todo tipo e será facilmente conduzido por outros ou levado pelos impulsos mais primários. A tarefa primeira da filosofia, através do epiméleia heautoû, era conseguir que o sujeito tivesse a enkrateia e através dela conseguisse governar com autonomia sua vida, conduzindo com liberdade efetiva suas decisões a fim de construir a forma de vida que escolheu viver. A liberdade era entendida como capacidade de governo de si. Liberdade e governo eram dois conceitos assemelhados na filosofia antiga. Só é livre quem tem poder e capacidade para se governar. Os estoicos levaram esta convicção ao extremo de considerar a possibilidade de um escravo, como Epícteto, ser um exemplo de homem livre e, vice-versa, considerar um homem livre juridicamente um escravo de si porque não é capaz de governar seus impulsos e vícios mais primários.
VII
O cuidado de si é uma prática ética que habilita o sujeito para constituir uma forma de vida específica. O sujeito há de decidir qual a forma de vida que escolhe. Lembramos que, para os gregos, a diferença de nossas sociedades pós-metafísicas, a escolha pelo bem ou pelo mal é algo evidente que se consegue através da razão, a qual mostra que o bem é a virtude e o mal o vício. Por isso, a escolha do modo de vida exigia também conhecimento (mathesis) correto, embora não poderia se reduzir a conhecer. O primeiro conhecimento exigido era o gnôti seauton (conhece-te a ti mesmo).
Conhecer sem praticar uma forma de vida era a negação da filosofia. Ninguém poderia se considerar filósofo só porque conhecia conteúdos. Os conteúdos filosóficos deveriam conduzir a uma forma de vida sem a qual ninguém poderia ser denominado de filósofo. Cada escola filosófica identificava-se pela forma de vida que propunha para viver. A forma de vida qualificava a filosofia para ser filosofia e não mera mathesis. Diferentemente da filosofia antiga, a filosofia moderna enfatizou o valor filosófico do gnôti seauton (conhece-te a ti mesmo), já que a modernidade valoriza o conhecer como a marca essencial da filosofia, e ignorou quase que por completo a outra dimensão da filosofia clássica epiméleia heautoû. Na filosofia clássica estas dimensões não eram excludentes. O gnôti seauton é uma condição necessária para o objetivo principal epiméleia heautoû. Porém o que determina se alguém é filósofo ou não é sua forma de vida, os ensinamentos devem ser parte constitutiva do modo de viver. Mas, se alguém ensinasse algo sem vivê-lo, seria denominado de retórico ou sofista, porém nunca de filósofo. Os debates entre sofistas e filósofos, que se alastraram ao longo dos séculos, tinham por delimitação a forma de vida destes e o descompromisso com qualquer forma de vida por parte dos sofistas. Sofista era denominado aquele pensador que vendia conhecimentos ou vivia dos conhecimentos filosóficos (leis, lógica, retórica,...) sem se preocupar em levar uma vida coerente com aquilo que ensinava. Pelo contrário, filósofo era aquele que, mesmo dando aulas e cobrando pelo que ensinava, se esforçava por viver uma vida acorde com aquela filosofia que ensinava. Os melhores filósofos eram identificados por seu estilo de vida e não pelo discurso, por isso Sócrates não escreveu nada. Os cínicos eram as escolas filosóficas que levavam a forma de vida de modo mais estrito, viviam em extrema austeridade para obter a total liberdade, praticavam a parrésia (dizer franco e verdadeiro) sempre que tinham oportunidade e apenas escreviam os princípios de sua escola filosófica, pois consideravam que a verdadeira filosofia se realizava na forma de vida cínica.
VIII A forma de vida e a biopolítica
Foucault realiza a pesquisa do cuidado de si na filosofia antiga no contexto das suas pesquisas coetâneas sobre biopolítica. Foucault sempre enfatizou que o método genealógico não pode nos induzir a imitar o que outras pessoas e épocas fizeram, mas pode nos iluminar num duplo sentido. Primeiramente a genealogia nos permite construir uma consciência crítica de nossas verdades e discursos, sua origem histórica e seu significado no presente. Em segundo lugar, oferece-nos aberturas para pensar nosso presente de modo crítico e alternativo.
As pesquisas de Foucault sobre a ética do cuidado de si se conectam com a problemática biopolítica no ponto crítico da sujeição do indivíduo e da possibilidade de sua autonomia. A lógica biopolítica atual governa os outros através do gerenciamento de suas vontades. Os dispositivos biopolíticos visam a governamentalidade das condutas. Este neologismo proposto por Foucault, governamentalidade, define o tipo de governo como governo das vontades ou governo dos outros.
Os dispositivos biopolíticos contemporâneos investem maciçamente em produção de “subjetividades flexibilizadas”. Este tipo de subjetividade adapta-se com facilidade e rapidez às demandas do sistema. Por não cultivar a enkrateia (domínio de si), as subjetividades flexibilizadas são facilmente influenciáveis e, como consequência, são governamentalizadas com alta maleabilidade. Este modelo de subjetivação é induzido em grande escala na nossa contemporaneidade por uma ampla gama de dispositivos que estimulam determinadas condutas e formatam comportamentos. Neste marco biopolítico, os indivíduos que se constituem com subjetividades flexibilizadas são alvos altamente vulneráveis aos apelos de propagandas, dos métodos de controle e das técnicas de normatização de condutas.
Este modelo de subjetivação produz a massificação como forma de vida. O individuo massificado tende a reagir segundo o comportamento da maioria. No cerne do indivíduo massificado opera um dispositivo mimético através do qual o indivíduo tende imitar a maioria; sua individualidade se autoafirma ao fundir-se nos comportamentos majoritariamente observados. A massa arrasta o comportamento individual fundindo as decisões “livres” do seu comportamento com a imitação mimética da maioria. Subjetividades flexibilizadas reagem coletivamente a modo de populações massificadas. O indivíduo massificado é governado como população cujas demandas tendem a ser induzidas, conduzidas e administradas segundo os estímulos naturais de uma espécie. Neste marco biopolítico, é possível perceber que nas denominadas sociedades de massas rege um alto índice de sujeição voluntária.
Em nossa contemporaneidade, a despeito de falar tanto da liberdade, nunca se criaram tantos mecanismos sociais de normalização. Mesmo enunciando-se à exaustão que vivemos em sociedades livres, em nenhuma outra época da humanidade houve uma rede tão densa de manipulação de condutas e indução de comportamentos. Ainda que se proclame formal e juridicamente que todos nascemos livres por natureza, nossas sociedades investem amplamente em mecanismos de controle e vigilância de condutas com objetivo de induzir os sujeitos a normatizar seus modos de vida aos padrões requisitados pelas demandas estruturais. A liberdade é efetivamente corroída pelos dispositivos biopolíticos de sujeição e controle. Este modelo biopolítico de governo dos outros está produzindo, em ritmo acelerado, uma massificação dos comportamentos que nega a autonomia efetiva dos sujeitos e estimula o mimetismo massificador dos comportamentos. A autonomia é só formalmente defendida já que efetivamente se promovem modos de subjetivação de submissão voluntária. Isso traz como consequência uma espécie de totalidade sistêmica no modo de vida. O modelo homogeneizante dos modos de vida massificados provoca uma sensação de individualidade no contexto de uma identificação cada vez mais indiferenciada de todos com o todo. O indivíduo massificado é governado com docilidade. As subjetividades flexibilizadas pelos dispositivos de controle se submetem com muita docilidade aos apelos indutores de condutas assimilando-os como parte de sua própria “decisão livre”. A massificação tende a ser a versão moderna do súdito ou da sujeição voluntária.
IX
Neste contexto de maquinaria biopolítica, entende-se a pertinência e a urgência de pensar formas de vida que possibilitem aos sujeitos criarem uma autonomia efetiva nas suas vidas. Essa autonomia não virá por meras reflexões conceituais ou metaéticas transcendentais, mas através da criação de práticas éticas que ajudem os sujeitos a criar uma forma de vida alternativa.
Nestes debates não se persegue a consecução de uma autonomia absoluta ou a efetivação de uma liberdade ideal, mas uma prática de vida que possibilite o máximo de autonomia em cada contexto histórico e a prática de liberdade dos sujeitos como capacidade de autogovernar-se nos limites das contingências históricas. A autonomia sempre é uma prática possível e nunca uma totalidade dada, a liberdade apresenta-se como prática histórica que pode ampliar-se ou encolher-se e não como um modelo transcendental a ser atingido. Do mesmo modo que não encontramos a autonomia pura nem a liberdade total, podemos esforçar-nos em construir modos históricos de maior autonomia e formas práticas de mais liberdade. O que está em questão é a possibilidade de criar a própria vida de modo crítico e com poder de si (enkrateia), resistindo à tendência hegemônica de corrosão da capacidade de autonomia efetiva.
X
Neste esboço de debate ficam abertas muitas questões, entre elas destacamos duas: a) Quais são os critérios para definir qual é a melhor forma de vida?; b) Qual a importância do Outro numa ética que visa criar uma forma de vida própria?
A ética do cuidado de si e a filosofia como forma de vida ressaltam a potencialidade e a responsabilidade do sujeito em criar sua forma de vida. Para os antigos, não tinha perigo da ética do cuidado de si recair num narcisismo egoísta, pois a noção de bem e de justiça eram constitutivas da razão humana e pelo raciocínio correto se chegava ao bem, à verdade e à justiça evitando que o sujeito confundisse a noção de eudaimonia com seus próprios interesses. A noção de interesse próprio, tão hegemônica na modernidade, era neutralizada na filosofia antiga pela convicção de que o bem, a verdade e a justiça eram inerentes à natureza humana e acessíveis pela reta razão. Para os antigos, o mal era, essencialmente, ignorância, pois se a pessoa tivesse um conhecimento correto da natureza e de si mesmo perceberia que ao fazer o bem faz o bem para si mesmo e com isso produz seu melhor interesse.
A perspectiva racionalista da verdade e do bem ético, dominante nas sociedades antigas, está em profunda crise em nossa contemporaneidade. Há convicção de que os valores que vivemos são nossa criação e nossa responsabilidade. Somos criadores dos valores que decidimos viver e por isso totalmente responsáveis pelo que criamos. Esta perspectiva histórica dos valores trouxe novas questões, que não eram para os antigos, especialmente a possibilidade de escorregar para um relativismo ético onde o bom seja aquilo que melhor propaganda tem ou aquilo que se impõe com mais força. No caso específico que nos ocupa, surge a questão sobre o critério ético para criar uma forma de vida que não se transforme num egoísmo narcisista ou em um individualismo egoísta, tão em voga.
O relativismo ético está entre nós e coloca-nos questionamentos difíceis de resolver. Um exemplo concreto atinge, inclusive, o sentido da própria noção de forma de vida ou cuidado de si. Não é casualidade que o modelo neoliberal de sociedade esteja empenhado em desenvolver o modelo de subjetivação individual a partir do que foi denominado “empresário de si”. Este termo se oferece como referente ético dos novos sujeitos liberais.
A fórmula “empresário de si” espelha a lógica biopolítica que produz modos de subjetivação em que o sujeito se catapulta a si mesmo como modelo de empresa e de negócios. Tudo na sua vida vira um empreendimento, uma oportunidade de negócios, uma possibilidade de lucro. O empresário de si sabe aproveitar todas as dimensões da vida (família, amizades, lazer, afetos, encontros, etc.) em oportunidades para beneficiar-se. O empresário de si aprende a rentabilizar todas as facetas da vida a modo de empreendimentos e oportunidades de benefícios. A vida se torna um campo ilimitado de empreendimentos com potencialidade de rendimentos. Tudo está sob a ótica do negócio (não-otium), nada escapa à utilidade do interesse próprio. A vida, nesta fórmula, é capturada no íntimo da liberdade do sujeito como recurso produtivo em toda sua potência. O paradigma de subjetivação do empresário de si reflete o horizonte biopolítico ao que se pretende conduzir a totalidade da vida humana no modelo capitalista de produção.
O empresário de si é uma fórmula sintética da perversão mercantilista do cuidado de si como forma de vida, ela está em franca expansão em nosso modelo neoliberal. Deste modo, a problemática do cuidado de si e da forma de vida foi colonizada, também, pela lógica capitalista do lucro, pela utilidade do interesse próprio e pela mercantilização biopolítica.
XI
Ao nosso ver, as questões sobre o critério ético da forma de vida e o papel do outro na ética do cuidado de si estão entrelaçadas. A alteridade humana é o critério ético que desde uma exterioridade interpela a interioridade dos critérios do bem e do justo, lembrando que o sujeito é uma alteridade humana para os outros e por isso tem a potência de definir-se como sujeito. A alteridade humana é o limiar de referência para a eudaimonia do sujeito na medida em que sua própria condição humana é alteridade a partir da qual haverá de definir os valores mais condizentes para sua realização como sujeito. Mas a alteridade interpela, também, como alteridade do Outro. A realização do sujeito numa forma de vida não pode ser ao preço da negação do outro, como pregam as morais do interesse próprio e do egoísmo racional. O outro, que é condição necessária para o epiméleia heautoû (Foucault desenvolve a importância do mestre e do amigo como outro), é o referente ético da minha própria ação. A alteridade humana é o critério ético pelo qual podemos optar ou negar, porém somos responsáveis por esta primeira opção. Se ultrapassarmos o limiar da alteridade humana relativizando seu valor como uma coisa a mais entre as outras, estaremos abrindo as portas para a barbárie, mais uma vez.
Reduzir a alteridade humana a mera objetivação relativa possibilita utilizar a vida humana, o outro, como uma coisa útil, instrumentalizando-a como recurso natural eficiente. Reconhecer seu valor em si repõe um critério ético, o da alteridade humana, a partir do qual poderemos pensar em criar uma forma de vida em que a vida humana seja inseparável de sua forma uma vez que outorgamos o valor ético da realização plena da vida como critério de uma forma de viver.
A alteridade humana, repetindo que o sujeito é uma alteridade para os outros, é o critério ético que nos resta para pensarmos uma prática ética, uma forma de vida que procura a eudaimonia do sujeito sem recair num narcisismo individualista nem submeter-se a uma heteronomia autoritária.
Estes debates acompanharão a humanidade até o final dos tempos, como corresponde ao modo aberto da forma de vida humana. Contudo, isso não nos exime da urgência e da responsabilidade de pensarmos alternativas de formas de vida que não se sujeitem voluntariamente aos dispositivos da maquinaria biopolítica dominante. ■
Fonte: IHU
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