PICICA: "
Quando Foucault dizia “não caia de amores pelo poder” significa, entre
outras coisas, “não renuncie àquilo que um corpo pode”; “cuide de não
desejar sua própria sujeição”, seu próprio aniquilamento ou
domesticação. A liberdade só deixa de ser um conceito abstrato na medida
em que se converte em revolta profunda e real."
Por um movimento antidisciplinar dos movimentos
19/06/2013
Por Murilo Corrêa
Por Murilo Corrêa, no Navalha de Dali
1. A estratégia de soberania – porrada, porrada e mais porrada eufemisticamente “não-letal”,
prisões arbitrárias e para averiguação – deu errado. Seu ideólogos, do
Estadão à Globo, de Alckmin a Pondé, da Folha a Haddad, rapidamente
voltaram atrás numa demonstração do potencial deslegitimador de um
movimento que, em profundidade, coloca em que xeque o próprio sistema
político representativo, e o faz de maneira acéfala e horizontal. Numa
guerra de posições, isso é uma vitória dos movimentos e uma derrota
significativa dos “arrependidos”.
2. Nos últimos dias, a mídia amenizou o discurso, mas isso não é uma vitória dos movimentos; é uma estratégia dos massmedia.
Basta assistir ao GloboFuckingNews por alguns momentos para perceber o
que está por baixo da espetacularização dos movimentos. Os analistas de
primeira hora – que assistem tudo pela tevê – não cessam de fazer
proliferar clivagens e classificações; isto é, tentar individualizar e
segmentar os corpos das ruas: há os manifestantes pacíficos, ordeiros,
de bem, contra a corrupção (geralmente anti-Dilma e anti-PT) e os
demais; há os manifestantes de início de protesto, que levam cartazes e
faixas, que são da paz, que vestem branco, limpinhos, ordeiros, cívicos e
os demais – vândalos, sujos e – esta teoria paranoide surgiu no DF, por
exemplo – “provavelmente pagos para desestabilizar governos com atos de
vandalismo e depredação dos patrimônios privado” (claro, este sempre
vem antes) “e público”. Há os nacionalistas, que se enrolam imbecilmente
em bandeiras, cantam o hino e acham que só ontem “o Brasil acordou para
dar um basta”; de outro lado, os anarquistas antinacionalistas, os
punks psolistas que não respeitam nada nem ninguém é só querem ver
grassar a violência gratuita e injustificável.
É
na virtualidade do gesto que esse controle se aplica; não precisa
depredar, basta esboçar o ato de pichação; não precisa atear fogo a um
carro, basta que se ateie fogo a um monte de lixo. O controle e a
repressão passam a ser exercidos localmente e tem por efeito criar uma
clivagem disciplinar global entre “os bons manifestantes” – os que “são
da paz”, se enrolam na bandeira do Brasil e cantam o hino – e os
vândalos, criminosos, truculentos sem respeito por nada que devem ser
reprimidos, inclusive em nome da suposta segurança dos demais
manifestantes pacíficos. Esse sistema é em tudo análogo àquele que
permite repartir os presos em presos de bom e mau comportamento; alunos
disciplinados ou indisciplinados; doentes mentais que tomam seus
remédios ou não.
4. As televisões e jornais desdobram essas clivagens simbolicamente. Nas entrelinhas, dizem até como os manifestantes devem se vestir,
como devem se portar, o que podem ou não fazer, ou dizer. O Batalhão de
Choque espera ali próximo, mas invisível, já não os acompanha; por
outro lado, há policiais militares que seguem os fluxos da multidão e
reprimem os fluxos desorganizantes; os policiais de trânsito “fazem a
segurança do movimento” – na verdade, ordenam que se vá mais ou menos
rápido porque “já é hora de liberar a rua” – e isso ficou claro em
Curitiba, tarefa dada a policiais à paisana.
Junto
com uma potência de desordem e contestação, surge um rígido código de
ética e disciplina, mas ele não é auto-organizado e gerido pelos
movimentos das ruas e sim pela violência sutil e insensível dos signos
que vêm de fora. “Vista branco”, “faça protesto limpinho”, “faça
protesto ordeiro”, “seja da paz”, “não provoque os policiais”, “não
xingue a mãe do governador”, “não piche o palácio do governo”, “não beba
antes, durante ou depois”, “cante o hino”, “peça isso”, “demande
aquilo”.
5.
Como esse código disciplinar entra em um movimento? Pela via
demasiadamente real do simbólico. Ontem à noite, no GloboFuckingNews, a
jornalista Mariana Godoy defendia os manifestantes pacíficos afirmando
que “estavam conscientes de que deveriam se manifestar pacificamente a
fim de não deslegitimar o movimento”. Isso só mostra o grande medo, o
grande terror que a multidão, que precisa ser contida ou disciplinada,
inspira no poder. Ora, o que o mea culpa
de Pondé, Jabor, Alckmin, Globo, Haddad e suas cáfilas jornalísticas e
políticas provam é, justamente, que os movimentos se autolegitimam. Eles
são o único e imanente critério de legitimidade, não o Estado, não a
mídia, nem nenhuma forma crítica transcendental. Isso é pós-revolta,
refechamento do aberto.
A
mídia tenta, desesperadamente, se reapropriar da cisão que os protestos
de quinta-feira (14.06) criaram: surgiu um fosso entre a opinião
pública real, das ruas, e a opinião pública que as mídias tentam
axiomatizar. Por que as mídias passaram a apoiar os movimentos? Porque
as ruas criaram essa cisão, explodiram as margens de crítica social que
as mídias não cessam de tentar controlar, e as redes sociais – que
também são um instrumento de controle e vigilância – terminaram por
instrumentalizar essa explosão em uma geração de jovens de 14 a 28 anos
desacostumada a ver televisão ou a ler jornais. “A única forma de
vencê-los é, então, juntando-se a eles; fazendo-os passar para o nosso
lado, passando para o lado deles”, teriam pensado as mídias.
6.
Eis toda a conversão das estratégias de soberania das primeiras semanas
em estratégia disciplinar sutil e docilizadora – por essa razão, mais
insidiosa e perigosa. O vocábulo revolta, repentinamente, saiu de
circulação e se tornou “protesto” ou “manifestação”. O que está
acontecendo nas ruas é, sem dúvida, uma acumulação primitiva de
democracia, é impossível negar. E ela surge sobretudo sob a insígnia
forte do direito à cidade e da reapropriação do espaço público; com as
repressões, a pauta logo se altera para incluir, contra a soberania, a
reapropriação do direito não à livre manifestação. Um sem número de
pessoas, nas redes sociais, postou seus relatos de participação nos
movimentos das ruas; muitos orgulhosos de seu próprio pacifismo e
nacionalismo, de terem seguido o código de ética e disciplina que os
poderes impuseram. Mistificação, engodo, estratégia de despotenciação e
disciplina dos corpos indóceis e inúteis. Tentativa de conter a revolta
profunda de todos os corpos, de obturar a emoção criadora e de obliterar
as emergências de uma comunidade de eus profundos. A repressão torna-se
desnecessária quando assimilada, introjetada nas almas e transformada
em exercício de subjetividade, pelo qual nos distinguimos dos outros e
nos erigimos acima deles. As mídias tentam forjar um simulacro de
opinião pública e, para tanto, procuram funcionar como instância de
exame disciplinar.
Hoje,
quando as disciplinas parecem retomar sobre os corpos um controle tanto
mais insidioso quanto eficaz, trata-se de, contra a disciplina, exercer
o direito à revolta, o direito a liberar o poder que circula nos
corpos, nas ruas e no espaço público do qual os movimentos já se
reapropriaram. Na noite de ontem, por todo o Brasil, algumas
manifestações entraram pela madrugada. Trata-se, agora, de ocupar, de
tornar a revolta contínua: nada de horários, trajetos, rotas, código de
conduta imposto como “etiqueta do manifestante de bem/da paz/cidadão
brasileiro”. Como quisera Oswald de Andrade, apenas “roteiros… roteiros…
roteiros… roteiros…”. Nenhum nacionalismo faz sentido porque nós somos,
hoje, o efeito de acúmulo local de uma demanda global: basta de democracia representativa
significa que desejamos mais! Queremos tudo. Conquistar o Estado é
ainda muito pouco. Os manifestos de apoio às revoltas locais mundo afora
são indiciárias dessa globalidade.
7.
Quando Foucault dizia “não caia de amores pelo poder” significa, entre
outras coisas, “não renuncie àquilo que um corpo pode”; “cuide de não
desejar sua própria sujeição”, seu próprio aniquilamento ou
domesticação. A liberdade só deixa de ser um conceito abstrato na medida
em que se converte em revolta profunda e real. Eis toda a barbárie, que
Renato Janine Ribeiro crê denunciar
– mas, curiosamente, são raros os momentos em que ele identifica essa
barbárie do lado do Estado e da “autoridade”. Diz ele que “Quem for violento perde o apoio da sociedade”,
como se os movimentos sociais fossem algo diferente da própria
sociedade. O tira na cabeça de Janine também quer fazer o exame, quer
fazer a sociedade transcender os enxameamentos constituintes da multidão
nas ruas – gesto filosófico que, ao que tudo indica, dá direito a
publicar no clipping do Ministério do Planejamento.
Seja
como for, o momento é de cuidado político: identificar e rasurar, com a
fina lima da prudência, esse código de ética e disciplina que impuseram
à revolta profunda de todos corpos. Isso não se faz sem insurgência,
sem se rebelar contra a própria possibilidade de ter nossos corpos
indóceis e inúteis ainda uma vez docilizados e utilizados por quem quer
que seja – o Estado ou o tira(no) na cabeça de Renato Janine Ribeiro.
Eis o que causa o grande medo dos aparelhos de Estado: a mais profunda
indisciplina. As lutas também se constituem, a partir de agora, por um
movimento antidisciplinar que deve se tornar imanente aos próprios
movimentos: jamais renunciar àquilo que podem os corpos. Cuidar de
produzir continuamente sua insurreição e seu carnaval.
Fonte: Rede Universidade Nômade
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