A economia afetiva nos protestos de rua, segundo Bruno Cava
PICICA: "Cantar o hino num ato pode
parecer nacionalista e deslocado (a mim incomoda), mas pode ser, por
outro lado, apenas uma tentativa de aderir a um ato político de
resistência, por parte de quem não compartilha, nem quer compartilhar,
da "cultura" da esquerda tradicional, e mesmo assim seja perpassado por
uma condição de luta e exprima outras formas da "consciência", de um
corpo rebelde diante de um cotidiano insuportável."
Foto: Marcelo Say - Epa
"Tenho
notado vários companheiros caindo no jogo da grande imprensa. 99% do
noticiário é dedicado às cenas de violência. O noticiário nivela a
brutalidade da polícia contra os corpos com atos (sempre políticos)
contra a propriedade, o urbanismo e a própria estética limpa da cidade.
Divulga-se a polícia espancando, torturando, prendendo arbitrariamente,
mas ao mesmo tempo se divulga que também houve baderna, saque e
depredação, sugerindo um empate onde vence a conservação da ordem, sem
nunca atentar para o fato que a violência contra a pessoa não é
equivalente à "violência" contra as coisas, e que o conteúdo político de
um protesto popular é diverso da máquina policial e criminalizante. Mas
o problema não está só nos "fatos". 99% dos artigos e colunas de
opinião estão voltadas a rotular os manifestantes. Uma espécie de
sociologia de sofá que, sem nenhuma forma de pesquisa de campo, tipifica
cada um segundo categorias preexistentes, na expectativa de colarem no
senso comum e, por essa razão, ganharem realidade. Teríamos na rua o
ativista bom e o ativista ruim, o politizado e o despolitizado, o
violento e o pacífico, o patriota e o baderneiro, e assim por diante,
uma multiplicação de dicotomias, de maneira que o cruzamento de todas
elas converge no manifestante honesto e trabalhador, a figura ideal
contra a corrupção e pela paz, a nação, a restauração da decência
pública e o respeito à propriedade. Diante disso, alguns companheiros
esboçam escândalo e correm em aderir à lógica da tipificação,
orientando-se pelo bom manifestante conscientizado e respeitador, quer
dizer, ele mesmo. É a versão à esquerda da classe média branca como fiel
da balança da política, o padrão ouro da revolta, entre o fascismo
sincero das elites e as massas alienadas e perigosas: os defensores do
interesse geral. O que parecem esquecer é como num movimento existe uma
força de transformação onde cada um sai diferente de como chegou. Basta
um dia de mobilização como a que estamos vendo, para muita coisa mudar.
As pessoas mudam, reorganizam-se os afetos, reorientam-se os discursos.
As forças políticas se recompõem. É preciso entender essa constante
reinvenção nas lutas, além das identidades. Cantar o hino num ato pode
parecer nacionalista e deslocado (a mim incomoda), mas pode ser, por
outro lado, apenas uma tentativa de aderir a um ato político de
resistência, por parte de quem não compartilha, nem quer compartilhar,
da "cultura" da esquerda tradicional, e mesmo assim seja perpassado por
uma condição de luta e exprima outras formas da "consciência", de um
corpo rebelde diante de um cotidiano insuportável. Da mesma maneira, é
preciso ir mais fundo nas causas e consequências do que tem sido
rapidamente tachado de vandalismo e baderna. Um levante é belo, mas
ninguém disse que seria bonito de ver. Não se faz revolução apelando ao
bom gosto. A própria ideia de beleza muda. O que preocupa é o embarque
na estrutura narrativa do noticiário e das opiniões da grande imprensa,
que há pelo menos 60 anos tenta pautar o dia a dia político do Brasil.
Em termos de economia afetiva, da distribuição do medo e da alegria,
essa estrutura é a maior sabotagem do que vem acontecendo. Se há agentes
provocadores e espiões, não percamos a luta contra eles instalando a
paranoia e as ressalvas assassinas. Tudo isso favorece não só a polícia e
a criminalização, mas a internalização da ordem policial, bem como a
desmobilização e a divisão identitária dos grupos. O horizonte disso já
conhecemos: capturar a potência de um tumulto constituinte e jogá-lo no
colo de um novo Cansei. Mais que simplesmente ouvir a "voz das ruas", é
preciso criar novas narrativas e novas explicações, na medida em que se
impõem pela própria premência do momento. A disputa está encarniçada e é
pela própria história em movimento. Que seja uma história viva, nova,
uma que nunca ouvimos e que podemos criar e que estamos criando. É a
melhor forma de honrar a memória militante: expandindo-a. Continuemos
atentos e fortes, sem vacilo."
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