junho 19, 2013

A economia afetiva nos protestos de rua, segundo Bruno Cava

PICICA: "Cantar o hino num ato pode parecer nacionalista e deslocado (a mim incomoda), mas pode ser, por outro lado, apenas uma tentativa de aderir a um ato político de resistência, por parte de quem não compartilha, nem quer compartilhar, da "cultura" da esquerda tradicional, e mesmo assim seja perpassado por uma condição de luta e exprima outras formas da "consciência", de um corpo rebelde diante de um cotidiano insuportável."
 
Foto: Marcelo Say - Epa
 
"Tenho notado vários companheiros caindo no jogo da grande imprensa. 99% do noticiário é dedicado às cenas de violência. O noticiário nivela a brutalidade da polícia contra os corpos com atos (sempre políticos) contra a propriedade, o urbanismo e a própria estética limpa da cidade. Divulga-se a polícia espancando, torturando, prendendo arbitrariamente, mas ao mesmo tempo se divulga que também houve baderna, saque e depredação, sugerindo um empate onde vence a conservação da ordem, sem nunca atentar para o fato que a violência contra a pessoa não é equivalente à "violência" contra as coisas, e que o conteúdo político de um protesto popular é diverso da máquina policial e criminalizante. Mas o problema não está só nos "fatos". 99% dos artigos e colunas de opinião estão voltadas a rotular os manifestantes. Uma espécie de sociologia de sofá que, sem nenhuma forma de pesquisa de campo, tipifica cada um segundo categorias preexistentes, na expectativa de colarem no senso comum e, por essa razão, ganharem realidade. Teríamos na rua o ativista bom e o ativista ruim, o politizado e o despolitizado, o violento e o pacífico, o patriota e o baderneiro, e assim por diante, uma multiplicação de dicotomias, de maneira que o cruzamento de todas elas converge no manifestante honesto e trabalhador, a figura ideal contra a corrupção e pela paz, a nação, a restauração da decência pública e o respeito à propriedade. Diante disso, alguns companheiros esboçam escândalo e correm em aderir à lógica da tipificação, orientando-se pelo bom manifestante conscientizado e respeitador, quer dizer, ele mesmo. É a versão à esquerda da classe média branca como fiel da balança da política, o padrão ouro da revolta, entre o fascismo sincero das elites e as massas alienadas e perigosas: os defensores do interesse geral. O que parecem esquecer é como num movimento existe uma força de transformação onde cada um sai diferente de como chegou. Basta um dia de mobilização como a que estamos vendo, para muita coisa mudar. As pessoas mudam, reorganizam-se os afetos, reorientam-se os discursos. As forças políticas se recompõem. É preciso entender essa constante reinvenção nas lutas, além das identidades. Cantar o hino num ato pode parecer nacionalista e deslocado (a mim incomoda), mas pode ser, por outro lado, apenas uma tentativa de aderir a um ato político de resistência, por parte de quem não compartilha, nem quer compartilhar, da "cultura" da esquerda tradicional, e mesmo assim seja perpassado por uma condição de luta e exprima outras formas da "consciência", de um corpo rebelde diante de um cotidiano insuportável. Da mesma maneira, é preciso ir mais fundo nas causas e consequências do que tem sido rapidamente tachado de vandalismo e baderna. Um levante é belo, mas ninguém disse que seria bonito de ver. Não se faz revolução apelando ao bom gosto. A própria ideia de beleza muda. O que preocupa é o embarque na estrutura narrativa do noticiário e das opiniões da grande imprensa, que há pelo menos 60 anos tenta pautar o dia a dia político do Brasil. Em termos de economia afetiva, da distribuição do medo e da alegria, essa estrutura é a maior sabotagem do que vem acontecendo. Se há agentes provocadores e espiões, não percamos a luta contra eles instalando a paranoia e as ressalvas assassinas. Tudo isso favorece não só a polícia e a criminalização, mas a internalização da ordem policial, bem como a desmobilização e a divisão identitária dos grupos. O horizonte disso já conhecemos: capturar a potência de um tumulto constituinte e jogá-lo no colo de um novo Cansei. Mais que simplesmente ouvir a "voz das ruas", é preciso criar novas narrativas e novas explicações, na medida em que se impõem pela própria premência do momento. A disputa está encarniçada e é pela própria história em movimento. Que seja uma história viva, nova, uma que nunca ouvimos e que podemos criar e que estamos criando. É a melhor forma de honrar a memória militante: expandindo-a. Continuemos atentos e fortes, sem vacilo."
 
Fonte: Bruno Cava

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