PICICA: "Talvez esteja na linguagem a pré-condição de determinação do espaço social1.,
conforme especulou Henri Lefebvre. Se o conflito configura um momento
da produção de um espaço social, então é na linguagem que deve-se
reproduzir o desenvolvimento desse momento que finalmente será práxis
espacial. As lutas travadas num dado território tem na linguagem uma
questão central, por conseguinte o que tece a produção e a práxis é a
comunicação em suas redes, os significados e sentidos linguísticos. O
controle do sentido equivale à reapropriação da vida no todo complexo
que essa é; equivale a, sem qualquer compartimentação do mundo da vida,
ter livre acesso ao conhecimento, à informação, aos afetos."
Tanto quanto na Rússia de 1918
09/06/2013
Por Rita Velloso
Relatando o encontro de
planejamento urbano acontecido em Recife, em maio, a pesquisadora Rita
Velloso apresenta as linhas de uma crítica ao desenvolvimentismo
prevalecente no planejamento da metrópole brasileira, na atual fase de
expansão capitalista. Essa crítica não se estabelece ‘desde cima’,
mediante soluções-planos, racionais e socializantes, concebidos de fora
dos próprios processos. Mas, sim, das bases materiais onde ocorre o
trabalho vivo hoje, cooperativo e resistente, isto é, dos “embates,
configuracões provisórias, desejos e a potência da vida dos moradores.”
Nesse sentido, se esboça uma alternativa constituinte, capaz de
atravessar as formas de organização da cidade, transformá-las e atribuir
uma qualidade nova às instituições. (N.E.)
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Sobre a hipótese do planejamento conflitual e as vozes de novos sujeitos políticos
Por Rita Velloso
Terminou
em Recife na última semana de maio o encontro bianual de planejamento
urbano – reunião na qual houve alta concentração de escolas, programas
de pós-graduação do país e alguns pesquisadores estrangeiros viajando
pelo Brasil. Foram cinco dias de muita conversa, dessa vez sob o título
de XV ENANPUR – Desenvolvimento, Planejamento e Governança. Como é fácil
depreender deste elenco de conceitos que o nomeiam, o tom predominante
do encontro foi dado pelas falas ao redor do novo desenvolvimentismo,
tema quase onipresente que incluiu desde a discussão sobre um novo macro
ambiente institucional e político no Brasil até as especulações acerca
do imaginário espacial do desenvolvimentismo, o qual está ancorado nos
costumeiros fetiches institucionais (“as escalas múltiplas ou a região
metropolitana – qual é a projeção do novo Brasil?”), não sem passar
pelas tentativas de denominar o período que atravessamos ( uma
transição? Um híbrido? O desenvolvimento como intenção?), e, obviamente,
pelas ponderações sobre o projeto de inserção internacional do país
baseado em sua (re)afirmação como plataforma de exploração de recursos
naturais e de valorização financeira, com as implicações em
desindustrialização e ruptura de cadeias produtivas nacionais.
Molduras
teóricas hegemônicas à parte, o debate mais potente do encontro foi
propiciado pelo grupo de pesquisadores coordenados por Fabrício Leal de
Oliveira e Carlos Vainer, cuja sessão de apresentação se denominou Planejamento e Conflito: experiências de planejamento urbano em contexto de conflitos sociais.
Já
em 2011, no ENANPUR precedente, Vainer denunciava a exaustão do
“participacionismo de resultados” e o planejamento refreado no impasse
da participação institucionalizada, valendo-se desde então da frase de
efeito que resume sua posição sobre conselhos cogestores de políticas
setoriais, conselhos tripartites de cidades, conferências e planos
diretores participativos – “o Brasil tem tantos ou mais conselhos que a
Rússia em 1918!”. O aprofundamento da pesquisa agora apresentada
evidencia uma contraposição a tal estado de coisas: o trabalho tem como
fundamento a superação dos “processos ditos participativos”, na medida
em que esses evocam a participação para legitimar a mediação e o
contorno do conflito social, concebido como patologia ou disfunção
social. Trata-se, afinal e pelos casos expostos, de fazer a conceituação
de um planejamento conflitual, embora o autor insista em dizer que “não
se trata de uma metodologia ou sistema” de planejamento urbano.
Não
resta dúvida de que há muitos avanços no que Vainer expressa como
“planejar para lutar, lutar para planejar”. Contudo, é preciso demarcar
os limites dessa hipótese que, me parece, encontra seu próprio impasse
justamente quando não supera alguns fundamentos tradicionais (melhor
seria dizer funcionalistas) relativos à enunciação e representação dos
planos e projetos componentes da pesquisa, preferindo não tensionar as
possibilidades da linguagem que expressa o conflito.
No
pequeno texto que apresentou a mesa redonda leio que conflitual
refere-se às “formas contra-hegemônicas de planejamento que
ressignificam do ponto de vista teórico-conceitual metodologias e
práticas da ação planejadora em sua expressão dominante”. Tal estratégia
de planejamento afirma como ponto de chegada, em primeiro lugar, o
diálogo dos habitantes com técnicos e especialistas de formação
interdisciplinar de modo a possibilitar que o habitante atue como
planejador popular e coletivo – segundo os autores, “com domínio
cognitivo de enunciação do projeto para o bairro onde mora ou espera
morar”.
A
considerar os discursos que acompanham a exposição oral e os documentos
gráficos e imagéticos dos projetos (o plano popular da vila autódromo,
no rio de janeiro; o bairro Saramandaia, em salvador; a região
metropolitana de recife; a ocupação Dandara em belo horizonte) muito
pouco ou nada se deixa ver desse habitante. A narrativa da pesquisa não
dá conta de qualificar o termo popular, tampouco esclarece o que
exatamente designa o mesmo termo. Ali ainda não se encontrou uma forma
de fazer-dizer os habitantes, para além dos diagnósticos, imagens e
fotografias de casas e prédios. Se o grupo apresenta o trabalho como
esforço de autoplanejamento urbano, como é possível narrar estudos,
projetos e planos sem de fato enfrentar a dificuldade de deixar-falar os
processos de luta encerrados (e de certa forma petrificados) no
desenho, nas construções de pauta para os debates nas reuniões, e nas
evidenciações das disputas entre grupos de moradores?
Ora,
quando se trata de projetos que pretendem instalar e pensar a
experiência urbana enquanto um processo político – e, se entendo
corretamente, o trabalho pretende conjugar autonomia e aprendizado
do/para o urbano – como é possível narrá-los sem constituir a língua do
conflito, isto é, sem construir uma espécie de dizer-do-conflito, o que
esteve em jogo quanto à constituição desse conjunto de novos sujeitos
políticos, que coletivamente “se constrói como novo sujeito planejador,
na prática mesma do conflito e do planejamento”?
Não
que a descrição dos processos de projeto não se tenha feito de modo
acurado, inclusive com apresentação – no caso do Rio de Janeiro- da
série histórica de intervenções levadas a cabo pelos pesquisadores em
diferentes situações urbanas desde 1983 até 2012. É certo que se deixa
mostrar no relato os processos de acompanhamento da população pelos
técnicos, a movimentação e as exigências que demarcam as atuações de
defensorias públicas e ministério público junto às populações dos
bairros e das favelas, a realização das oficinas, a formação de um
conselho de bairro para o plano, etc.
O
que se contra argumenta aqui é que toda essa demonstração dos processos
não escapa aos vícios do planejamento modernista – a descrição é
insuficiente, pois apresenta de modo tristemente descarnado os
percursos, os embates, as configuracões provisórias, os desejos e a
potência da vida dos moradores. Ao fim e ao cabo, os sujeitos políticos
constituídos na luta pelo próprio espaço não tem voz na narrativa dessa
mesma luta, quando expressa num relato escrito e enunciado pelo
planejador.
O
que fazer, então, quanto a tensionar as possibilidades da linguagem que
expressa o conflito? Seria necessário escrever uma narrativa radicada
na assunção do conflito como linha de fratura (finíssima e profunda), a
única capaz de expor o território, que de outro modo restaria escondido
sob a superfície homogênea da localização. Para além de indagar onde e
como se manifestam os conflitos é preciso responder o que se deixa ver
através dele. A rigor, o conflito desenha o diagrama de um lugar, e o
singulariza, determinando e constituindo sua mobilização enquanto
território praticado. É certo que o conflito deve ser exposto enquanto
processo, mas, então, será preciso se deter em seus momentos
espaço-temporais de contradição, de fechamento de ciclos, suas
configuracões agudas, os antagonismos. Cada um desses momentos contém a
possibilidade das alternativas de apropriação e reapropriacão do espaço.
O conflito, por que é uma prática socioespacial, permite expor o
território – mais do que traduzi-lo ou explicitá-lo – em termos das
formas de vida que contém; em outras palavras, em termos da constituição
produtiva do território, narrando-o como palco das lutas que criam
novas formas de comunidade, novos gestos de cooperação.
Talvez esteja na linguagem a pré-condição de determinação do espaço social1.,
conforme especulou Henri Lefebvre. Se o conflito configura um momento
da produção de um espaço social, então é na linguagem que deve-se
reproduzir o desenvolvimento desse momento que finalmente será práxis
espacial. As lutas travadas num dado território tem na linguagem uma
questão central, por conseguinte o que tece a produção e a práxis é a
comunicação em suas redes, os significados e sentidos linguísticos. O
controle do sentido equivale à reapropriação da vida no todo complexo
que essa é; equivale a, sem qualquer compartimentação do mundo da vida,
ter livre acesso ao conhecimento, à informação, aos afetos.
Produzir
a vida na linguagem; isso requer dizer e ouvir os modos pelos quais
falam os sujeitos, sua gramática, os dialetos. Assim se vai além do
diálogo entre técnicos, especialistas e moradores, assim se alcança, de
fato, o aprofundamento da dupla hermenêutica exigida pelos habitantes e
pelos usos arraigados no território.
Sobre
a práxis do conflito, trata-se, como falou Antonio Negri, de pensar um
constituir-se como sujeito por meio da linguagem, sujeito capaz de
resistência e solidariedade.
“A
linguagem é a forma principal da constituição do comum, e é quando o
trabalho vivo e linguagem se cruzam, e se definem como máquina
ontológica, que a experiência fundadora do comum adquire realidade.”2
Através
da linguagem sempre emergirão formas originais de cooperação. Ambas,
linguagem e cooperação, devem ser atravessadas pela afirmação da
centralidade de uma experiência do comum que é união concreta do saber e
da ação dentro dos processos do conflito.
Carlos
Vainer relembra, na explanação do seu trabalho, a afirmativa de E.P.
Thompson, segundo a qual “a classe operária existe por que luta, e não,
luta por que existe’”. Para dar conta dos pressupostos de um
planejamento conflitual, essa mesma afirmação precisa ser levada às
últimas consequências– a experiência de luta dos sujeitos políticos
precisa existir na linguagem – precisa encontrar sua forma de
enunciação. Os encontros e as reivindicações que produzem confrontos
precisam ser narrados de modo radical numa estratégia de planejamento
que pretenda vetar o vigente banimento da política dos rumos da produção
do espaço contemporâneo.
Fala-se,
no planejamento conflitual – assumindo a terminologia da pesquisa em
questão – , da constituição de um sujeito político que faz, por meio da
linguagem e do espaço, a experiência da luta. Não obstante, exige-se
pensar de modo extenso esse sujeito a quem se atribui o nome popular. É
que na práxis espacial e nos usos do território, à medida em que a
desigualdade é experimentada, configura-se uma subjetividade capaz de
resistência. Subjetividade política no sentido mais pleno, pois constrói
no interior de sua vida suas alternativas de participação nas
estruturas socias, sem possibilidade de transcendê-las. E justamente
essa é a força desses novos sujeitos políticos: sua capacidade de
resistir, tecida no cotidiano, é não menos que um contrapoder. Seu
horizonte, bem ao contrário do planejador, não é puramente o da crítica,
mas sim a determinacão prática (material) que envolve a produtividade
dos seus corpos, o valor dos afetos. Esse novo sujeito político que
exercita planejar seu lugar, sua moradia, seu território o faz como
militante – sua atitude de resistência não é representativa, é
constituinte.
Há
que se ressaltar, por fim, dentre os pressupostos do trabalho, uma das
questões que pretendem dar conta de uma descrição do conflito que expõe a
potencialidade do urbano, qual seja: de que maneira a desigualdade
socioespacial se expõe a partir de informações sistematizadas dos
conflitos?. Ora, Carlos Vainer é muito enfático ao afirmar que o
trabalho instala uma estratégia política de enfrentamento do modus operandi do
Estado no que concerne ao planejamento urbano; segundo o professor, não
se trata de elaborar uma metodologia para o plano mas, em última
instância, de combater consultoria com consultoria – toda a equipe de
pesquisa assume a posição do planejador que toma partido dos que estão
em desvantagem nas argumentacões técnicas, por isso enfrentando projeto
(apaziguador) com projeto (que não resolve o conflito, mas pretende
expô-lo).
Na
medida em que estabelece teoria e hipóteses de implantação e
configuracão dos lugares urbanos, fazendo a crítica à autoridade dos
especialistas e da, como chamam, “ciência da definição dos espaços
urbanos”, é certo que a pesquisa representa um avanço importante no
campo do planejamento urbano, principalmente por que se coloca na
circunstância de enfrentar tensões internas à área de conhecimento.
Ainda que com todos os limites aqui apontados, é um trabalho de
hermenêutica rigorosa que se desdobra em raciocinar sobre realidades
constituídas e seus respectivos elementos constituintes. Mas, voltando a
sua pergunta – que é, sim, metodológica – talvez Oliveira e Vainer
pudessem recorrer ao que Negri chamou de pregnância prática da pesquisa
para superar a descricão como método, indo na direção da já tão
conhecida pesquisa-ação (“a velha tradição operária da pesquisa-ação
como forma exemplar de método”3).
Esboço de uma metodologia talvez cabível ao tempo atual, é a
pesquisa-ação que porventura fará a prática atravessar a crítica,
passando a falar de dentro, posto que não há mais um fora – o que me
parece ser confortavelmente suposto na descrição. Nesse sentido, mesmo
que longa, penso que vale a pena a citação:
“…conhecer,
mediante a pesquisa, os níveis de conscientizacão e de consciência dos
processos nos quais os trabalhadores, como sujeitos produtivos, estavam
implicados. Se eu entro na fábrica e me ponho em contato com os
operários, conduzindo com eles uma pesquisa sobre as condições do seu
trabalho, a pesquisa-ação consiste sim, obviamente, na descrição do
ciclo do ciclo produtivo, na identificacão das funções de cada um dentro
do ciclo; ao mesmo tempo, porém, é também uma avaliação em geral dos
níveis de exploração que cada um e todos sofrem, da capacidade de reação
que os operários têm no que concerne à consciência de sua exploração no
sistema das máquinas e diante das estruturas do comando; de modo que,
na mesma medida em que a pesquisa prossegue, a pesquisa-ação constrói
horizontes de luta na fábrica, define linhas ou dispositivos de
cooperação fora da fábrica, e assim por diante. Evidentemente, aqui
existe uma hegemonia e uma centralidade da práxis dentro da pesquisa:
uma práxis que permite aprofundar o conhecimento do ciclo de produção e
de exploração, e que se exalta quando determinará resistência e
agitação, ou seja, quando desenvolverá as lutas. Assim é praticamente
possível constituir um sujeito antagonista…”4.
—–
1 LEFEBVRE, H. La Production de l’espace. Paris: Anthropos, 1999, p. 16.
2 NEGRI, A. Cinco Lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.173.
3 NEGRI, A. Cinco Lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.227.
4 NEGRI, A. Idem, ibidem.Fonte: Rede Universidade Nômade
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