PICICA: "A grande
imprensa, a serviço das elites, não tardou em forjar dicotomias para
separar o bom manifestante do ruim, enquanto tenta sequestrar a pauta – o
direito à cidade, à dignidade urbana, ao tempo –, transformando-a em
vagas reclamações contra a « classe política ». Usa as táticas de
sempre : criminalização dos movimentos, redução do conteúdo político ao
crime, conversão da revolta a vandalismo e nonsense. O terror policial,
tão comum no território das favelas, generalizou-se. Querem que passe
logo, que tudo volte ao normal. Como se os dias incríveis que estamos
vivendo fossem apenas um furor neurótico."
O monstro vive nos ônibus (Clarissa Moreira e Bruno Cava)
Assuntos:
«As coisas nunca se passam lá onde se acredita,
nem pelos caminhos que se acredita.»
Gilles Deleuze
nem pelos caminhos que se acredita.»
Gilles Deleuze
« Eu vou sair, eu vou trampar
Só não sei como eu vou chegar
Se eu vou de ônibus ,vou no sufoco
Pegar carona é coisa de louco
Eu vou de skate até a estação da luz
Daí em diante o expresso me conduz
Dentro do trem , da super lotação
Por cima do trem é alta tensão”.
Surfista de Trem (Mente Explícita)
Só não sei como eu vou chegar
Se eu vou de ônibus ,vou no sufoco
Pegar carona é coisa de louco
Eu vou de skate até a estação da luz
Daí em diante o expresso me conduz
Dentro do trem , da super lotação
Por cima do trem é alta tensão”.
Surfista de Trem (Mente Explícita)
Não foram
tanto as expropriações, demolições, desocupações movidas pelas obras
preparativas para os grandes eventos, nem os gastos injustificados de
recursos públicos ou a estranha montagem de operações imobiliárias, nem a
demolição do patrimônio das cidades, nem mesmo a histórica precariedade
na saúde, educação ou a expulsão e assassinato dos índios que levou a
todos para a rua… A causa comum – a gota d’água – foi mais um aumento da
tarifa dos ônibus. Apenas vinte centavos deflagraram a maior revolta da
geração, atiçando mais de 1,5 milhão de pessoas às ruas, em pleno
período da Copa das Confederações.
O processo
de «construção» das cidades brasileiras baseado no modelo
centro-periferia, em um ponto crucial, recai sobre os ônibus como um dos
meios principais de circulação na cidade, com todo o sistema de
transporte e sua insuficiência histórica como violência final. É nos
ônibus, afinal, que uma das maiores e mais universais violências de
classe é exercida, na metrópole brasileira. Superlotado, ao mesmo tempo
lento e perigoso, é nele que os pobres enfrentam um dia de trabalho.
Esmagado por todos os lados pela carne alheia, disputando espaços
comprimidíssimos em tempos de viagem cada vez mais dilatados.
Não por
acaso, os ônibus também são os depositários de uma resistência difusa,
mas nem por isso menos concreta. Nem por isso menos tensa, em
antagonismo e raiva. Quantos casos não ouvimos de brigas entre
passageiros e motoristas ou cobradores, que, num caso extremo, chegou a
derrubar um ônibus do viaduto? Quantos casos de depredações isoladas? Ou
incêndios de veículos? Nosso cinema não deixou de enxergar aí uma cifra
do conflito urbano, de retratos criminológicos, como Ônibus 174, até dramas eróticos, como A dama do lotação.
Nosso noticiário é rico em crônicas desse gênero, em atos de violência
miúda, brigas, delinquências, pequenos tumultos – tudo isso que a
imprensa se apressa em classificar como vandalismo, esvaziando o fato de
conteúdo político para dar-lhe um aspecto unicamente criminal. A
resistência se diz de muitos modos.
Se o
mercado é um moinho satânico, como gostava de chamar Polanyi, é no
transporte coletivo, o momento da circulação daquele, que o trabalhador é
feito paçoca. Milhões de horas jamais remuneradas, pelo contrário,
taxadas a preços sucessivamente maiores, sempre gastando a paciência, o
bom humor e o elã de quem passa pelo moedor. A pessoa só quer chegar em
casa logo e tomar um banho, livrando-se de mais um dia. Não tem tempo
para vida cultural, que dirá política. Daí que, ao tensionar no momento
da circulação, ameaça o próprio mercado, pondo em curto-circuito o fluxo
de vida-trabalho. A luta pelo ônibus – ou melhor, pela mobilidade vital
– concita uma luta maior, pelo direito à cidade. O transporte é o lugar
onde massivamente e difusamente um projeto de cidade ao qual se é fiel
por mais de um século, se choca diretamente com os corpos.
Vê-se como
tem um mundo de indignações e desolações nos 20 centavos, esses que
foram o estopim dos levantes de junho do Brasil. O rastilho de pólvora
já estava no ar, faltando apenas a faísca. E ela veio, quando o
Movimento Passe Livre – herdeiro imediato da Revolta do Busu (2003) e da
Catraca (2005), e distante da do Vintém (1880) – convocou a população
para as ruas, e foi imediatamente atacado pela brutalidade policial. O
movimento multiplicou a olhos vivos e espraiou-se por todo o Brasil, das
cidades grandes às médias e dos centros aos bairros mais distantes. A
gente explodiu dos ônibus, integrando as tensões, rebeldias,
delinquências e pequenas sabotagens em um grande ato coletivo de recusa.
A « consciência de classe » não veio dalgum partido ou movimento
social, não veio da « esquerda tradicional », mas emergiu desde baixo,
formulou-se corporalmente da própria monstruosidade que habita os
ônibus, seu dispêndio cotidiano de carne moída e tempo morto. O monstro é
feio, suado, imprevisível, mas ruge. Ele é perigoso e constituinte e
ameaça o Olimpo da cidade.
A grande
imprensa, a serviço das elites, não tardou em forjar dicotomias para
separar o bom manifestante do ruim, enquanto tenta sequestrar a pauta – o
direito à cidade, à dignidade urbana, ao tempo –, transformando-a em
vagas reclamações contra a « classe política ». Usa as táticas de
sempre : criminalização dos movimentos, redução do conteúdo político ao
crime, conversão da revolta a vandalismo e nonsense. O terror policial,
tão comum no território das favelas, generalizou-se. Querem que passe
logo, que tudo volte ao normal. Como se os dias incríveis que estamos
vivendo fossem apenas um furor neurótico.
Neuróticos
ficaram eles, enquanto proliferam passeatas, encontros, fóruns,
discussões, novos espaços e tempos para a produção cultural e política.
Uma mobilização à altura do que foi o começo da década de 1980, só que
noutros termos. Não mais em termos representativos : a dita «consciência
de classe » saiu dos partidos e sindicatos. Prescinde de
conscientização, já está. Dos ônibus às ruas, e destas a organizações de
novo tipo, inaugurando um ciclo de lutas de grandes proporções, com
consequências impactantes.
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