PICICA: "Para que a vitória que comemoramos se amplie (e não seja capturada pela direita) é preciso dar-lhe sentido mais profundo"
A hora do Direito à Cidade
Para que a vitória que comemoramos se amplie (e não seja capturada pela direita) é preciso dar-lhe sentido mais profundo
Por Alexandre Pilati*
Well, everyone can master a grief but he that has it
William Shakespeare
Contrariando todas as expectativas, as manifestações que
começaram há duas semanas em São Paulo, com uma pauta de reivindicações
bastante restrita, ampliaram-se. Os protestos estenderam-se pelo Brasil
inteiro em ruas, praças e arredores de estádios de futebol que recebem a
Copa das Confederações. Nesses quinze dias, o que era um movimento
bastante vinculado ao aumento do valor da passagem de ônibus acabou
agregando, meio caoticamente, demandas de diversas origens da vida
social urbana.
Entraram em jogo críticas aos políticos, aos gastos
relativos à promoção dos torneios da FIFA no Brasil, afirmação de grupos
gays, gritos por uma saúde e uma educação dignas de um país que se
deseja plenamente desenvolvido e integrado. Lembrando o acertado dito
tropicalista dos anos 60, as ruas brasileiras foram invadidas por uma
espécie de “geleia geral” de protestos, que possui, entre seus elementos
básicos, uma agregação confusa de reivindicações de setores
conservadores e progressistas da população, um conjunto de ações de
protesto que são levadas a termo sem lideranças claras, um painel de
reivindicações amplo e muito significativo e, por fim, um recorrente e
sintomático vandalismo.
Por um lado, é de se comemorar que as ruas sejam
invadidas por jovens de uma geração que sempre foi taxada como
irresponsável, alienada, individualista e pouco afeita a reivindicações
de cunho social ou comunitário. As manifestações têm mostrado que há,
latente nessa juventude, algum desejo de transformação e uma
sensibilidade aguda para a história contemporânea, especialmente naquilo
que ela tem de insuportável. Por outro lado, é preciso que todos
aproveitemos o momento para aprender com a dinâmica da história que está
fluindo sob os fatos mais evidentes que a grande mídia tem transformado
em uma espécie de teatro farsesco, sempre, é claro, adequando o
movimento aos seus próprios interesses.
É possível, em princípio, tomar o conjunto de
manifestações que se espalha dia-a-dia no Brasil como a elevação
coletiva de um desejo de simbolizar algo que o mundo capitalista
contemporâneo trata de sufocar dia-a-dia. Salvo engano, esse esforço de
recalque que realizam os aparelhos ideológicos do capital atinge pelo
menos duas características do Brasil de hoje que, sem dúvida, estão
entre os mais legítimos motes da ocupação das ruas brasileiras.
A primeira dessas características está claramente
vinculada ao exaurimento das formas de representação política da
sociedade brasileira. Noutros termos, se temos uma democracia
relativamente mais madura, temos também um conjunto muito grande de
forças conservadoras aliadas ao grande capital ocupando espaços
importantes das esferas de representação política, replicando velhos
métodos da cínica realpolitk tropical, cujo DNA congrega
escravismo, machismo, favor e sanha de acúmulo incomparável em esfera
global. Enfim, queiram ou não, esse exaurimento tem muito a ver com a
maneira como se desenvolveu a modernização capitalista periférica,
processo em que as esferas de representação política e democrática são
sempre, e com mais agudeza, ocupadas pelos interesses do grande capital
local ou internacional.
Outra característica importante do mundo de hoje que
dispara a insatisfação e o movimento é o verdadeiro insuportável da
urbanidade brasileira atual. As nossas cidades são insuportáveis para o
cidadão médio, embora guardem, no imaginário coletivo, a dimensão
utópica de se configurarem como núcleos sedutores de promessas de
realização humana plena. Com a intensificação da modernização à
brasileira e da implantação capenga da economia de serviços aliada à
precarização politicamente dispersiva da força de trabalho, as grandes
cidades brasileiras são grandes selvas dantescas para as classes
populares, onde as poucas migalhas das benesses do mundo do consumo são
cobradas pelos donos do capital à custa de um tráfego caótico, uma
educação pífia, uma saúde depauperada, um conjunto de serviços públicos
que a rigor não funciona para todos da mesma forma.
Os anos de modernização neoliberal acabaram fazendo as
metrópoles do Brasil se configurarem definitivamente como núcleos de
frustração humana em grande escala. Dados recentes mostram, por exemplo,
que São Paulo está entre as campeãs mundiais de patologias psíquicas
como a depressão. Ou seja, algo dói na vida cotidiana das pessoas e a
manifestação é uma oportunidade coletiva de realizar uma espécie de
suspensão ou purgação (ainda que temporária) do sofrimento. Tudo isso
acaba por ilustrar, de uma maneira talvez inesperada pela Escola de
Frankfurt, a boa formulação de Adorno, segundo a qual a ideologia (ou o
capital) não mente pelo que promete, mas por aquilo que não pode
cumprir.
Não é nova a luta de David Harvey para discutir em alto
nível o problema da metrópole pós-moderna com intelectuais, gestores
públicos e membros de movimentos sociais. Esse problema nos diz respeito
hoje, de forma grave, figurado, por exemplo, em um movimento que, a
princípio, pedia menos R$ 0,20 na tarifa do transporte urbano. No fundo,
o que se deseja é reivindicar o direito à cidade. Na bela construção de
Harvey, arma-se assim o problema:
“O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que
já existe na cidade, mas é o direito de transformar a cidade em algo
radicalmente diferente. Quando olho para a história, vejo que as cidades
foram regidas pelo capital, mais do que pelas pessoas. Assim, nessa
luta pelo direito à cidade, haverá também uma luta contra o capital.”i
Parece-me claro, portanto, que esse deve ser o norte
fundamental a ser construído pela manifestações. Não importa mais muito
de onde elas partiram, ou que problemas apresentaram até aqui. É tarefa
de todos aproveitar o espaço de ressignificação do espaço da cidade
provocado pelas manifestações. Não obstante haja interesses
contraditórios em jogo e exista um grande perigo de as manifestações
serem apropriadas por forças conservadoras da sociedade brasileira, até
aqui elas têm o grande mérito de colocar os donos da cidade frente à
frente com aqueles que delas se apossaram e a tornaram infernos de
tráfego e frustrações. Os protestos são sintomas do desejo do direito
que os cidadãos têm de viverem a cidade e não serem por ela
consumidos, enquanto grandes somas de dinheiro são acumuladas por
aqueles que, por exemplo, mantém relações espúrias com o poder público
em nome do capital.
Esse é um direito mais do que legítimo e é bom que ele
possa se tornar palpável a partir das manifestações que vemos crescer a
cada dia. Num texto vigoroso no sentido da defesa da crítica cultural
dialética, a professora Iná Camargo Costaii afirma que:
“O crime de lesa humanidade do capitalismo não é ter
criado uma sociedade materialista em que se desejam bens de consumo, mas
tê-la organizado de modo a impedir que a maioria tenha acesso aos bens
que produz. Nós somos pela saciedade e contra a fome em todos os
âmbitos, inclusive o da cultura”.
Ao que parece, boa parte dos manifestantes retira a
força de sair às ruas desse desejo de plenitude humana, que não exclui
as esferas material, cultural, física, educacional, psíquica etc.
Entretanto, é preciso não perder de vista o adversário. A
dispersão das demandas, nesse caso, pode ser algo muito prejudicial ao
amadurecimento dos movimentos como mecanismos de ressignificação da
representação política e da ocupação do cotidiano das cidades. Roberto
Schwarz, no clássico ensaio “Cultura e política 1964-1969”iii,
lança uma frase que faz arrepiar aos mais conscientes do poder que a
dinâmica histórica tem de fazer sucumbirem as melhores intenções de
transformação social: “A história não é uma velhinha benigna”. Inclusive
o salto revolucionário é feito com acúmulo, estudo, alianças e ordem.
Isso só a maturidade política coletiva pode promover.
Vê-se claramente que uma parte dos manifestantes reclama
da política, mas não entende muito bem o que ela é. Ou seja, embora
seja capaz de sentir claramente a crise do modelo de representação
democrática brasileiro, não é capaz de construir uma alternativa
coletiva a ele, desvinculada dos interesses do capital. Parece bastante
claro que a visão sobre a política na sociedade brasileira está muito vinculada a uma visão que a grande mídia constrói dos políticos.
Essa é uma das formas de contaminação conservadora dos discursos das
manifestações. Um grave problema da política brasileira, não revelado
pelas grandes redes de comunicação (que também ocupam fatias do Estado
com seus próprios interesses financeiros), é a já acima referida
ocupação das esferas democráticas pelos desígnios do capital. Assim,
antes de pensar em queimar bandeiras de partidos políticos nas
manifestações, numa atitude que se aproxima perigosamente de atos
fascistas, é preciso gritar contra o abominável que é haver tanto
enriquecimento ilícito em um país de miseráveis, tanta licitação
fraudada para entregar dinheiro público a grandes corporações
internacionais que acenam com uma pretensa modernização da interação
cidadãos-serviços públicos.
Esses são nossos grandes adversários, são eles que
trocam educação por “inovação tecnológica”; que trocam saúde pública e
saneamento básico por novos softwares de gerenciamento de pessoas nos
hospitais; que trocam a urgência de celeridade e de ampliação da justiça
aos desvalidos por mecanismos de informatização de resultado luminoso,
mas pouco substanciais no que se refere à ampliação da esfera real de
cidadania.
Um dos riscos que correm as manifestações, a se manter a
dispersão de demandas, é que elas se esgotem mais rapidamente. As
demandas devem, portanto, ser construídas dentro do movimento, sobretudo
tendo em conta anseios daqueles que nem sequer podem estar nas ruas,
pois, por exemplo, temem perder o emprego ou estão presos à miséria no
campesinato. É preciso estar na rua por aqueles que sofrem o massacre
radiante do capital todos os dias, enquanto empresários pensam em
faturar mais um ou dois milhões numa negociata de bastidores trivial, à
revelia da sociedade civil que, dispersa, é incapaz de desentocar das
instituições democráticas os grandes ratos do capital.
As manifestações que vimos nos últimos dias, portanto,
combinam reivindicações legítimas porque emanam de uma raiva verdadeira.
É preciso, todavia, construir nos movimentos, que vemos cada vez mais
articulados, um conjunto de estratégias que mantenha o estado consciente
de mobilização (Fóruns? Aulas? Debates? Conferências? Sessões de
terapia? Teatro? Rodas de Leitura?), capazes de oportunizar a construção
de uma consciência crítica coletiva em relação ao modelo de
desenvolvimento brasileiro. Antonio Candido falava em “Literatura e
subdesenvolvimento”iv,
retomando Mário Vieira de Mello, sobre formas de consciência que a
literatura e, por extensão, a sociedade ia construindo coletivamente em
relação à experiência de atraso e subdesenvolvimento dos períodos
iniciais de nossa história. Os anos de apequenado desenvolvimento
neoliberal construíram aos poucos uma espécie de “consciência amena do
desenvolvimento”, pautada pela ilusão de que teríamos “chegado lá”.
Desejo sinceramente que o conjunto de manifestações dos
últimos dias seja uma janela para uma construção, em grande escala, de
uma “consciência dilacerada do desenvolvimento neoliberal à periferia do
capitalismo”. E isso exige negociação, entrega pessoal e formulação de
novos meios de representação democrática. Um “eu” não pode
representar-se democraticamente a si mesmo, não é possível haver uma
manifestação de cem mil demandas. Isto dizia-nos o Marx do 18 Brumário de Luis Bonaparte: “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem”v.
Não nos esqueçamos nunca do que nos ensinaram, com seus
fracassos e acertos, os movimentos pelas “Diretas Já” e “Fora Collor”. A
raiva de cada um com a desordem geral precisa, agora, ser transformada
em demanda política concreta e viável. Uma dessas saídas, parece-me ser o
trabalho coletivo (muito difícil e utópico) no sentido de amadurecer a
ideia de uma nova constituinte no Brasil, com um texto capaz de
expressar a dor cotidiana dos que sofrem o capital, nas cidades e
no campo. Lembrando o velho Shakespeare: “Todos podem controlar uma
dor, exceto quem a sente”. As manifestações dão uma simbolização à nossa
dor, o que já é muito…mas elas precisam se transformar em ato político
organizado, para que tal dor não seja, outra vez, subsumida pelas
inteligentes e articuladíssimas estratégias de empulhação do capital.
iHARVEY,
David. “Alternativas ao neoliberalismo e o direito às cidades”. Novos
Cadernos NAEA, v. 12, n. 2, p. 269-274, dez. 2009, ISSN 1516-6481.
iiCOSTA, Iná Camargo. “Por uma crítica dialética”. In: Nem uma lágrima – teatro épico em perspectiva dialética. São Paulo: Expressão Popular/Nankin Editorial, 2012.
iiCOSTA, Iná Camargo. “Por uma crítica dialética”. In: Nem uma lágrima – teatro épico em perspectiva dialética. São Paulo: Expressão Popular/Nankin Editorial, 2012.
vDe leitura imprescindível, o texto de Marx pode ser encontrado em português neste link: http://neppec.fe.ufg.br/uploads/4/original_brumario.pdf
Fonte: Outras Palavras
Fonte: Outras Palavras
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