PICICA: "Com a
finalidade de explicitar a trajetória da luta árdua dos indígenas pela
recuperação de seus territórios tradicionais, pretende-se, inicialmente
descrever os processos históricos de colonização de territórios
indígenas por parte da política indigenista do Estado brasileiro e na
sequencia procura-se relatar o movimento dos povos indígenas para
recuperar seus territórios tradicionais e reivindicar seu reconhecimento
por parte do Governo e da Justiça Federal."
Motivos da reocupação das terras pelos povos indígenas do Mato Grosso do Sul, por Tonico Bentes
do site Combate ao Racismo Ambiental
Tonico Benites Ava Guarani Kaiowá*
O objetivo
deste artigo é analisar os motivos da reocupação ou retomada de parte
dos territórios tradicionais executado pelos povos indígenas do Mato
Grosso do Sul. As comunidades indígenas articuladas em rede, isto é, os
movimentos sociais indígenas pela demarcação e recuperação da parcela
dos territórios tradicionais indígenas desencadearam-se publicamente a
partir de meados de 1970 no atual Estado de Mato Grosso do Sul.
Com a
finalidade de explicitar a trajetória da luta árdua dos indígenas pela
recuperação de seus territórios tradicionais, pretende-se, inicialmente
descrever os processos históricos de colonização de territórios
indígenas por parte da política indigenista do Estado brasileiro e na
sequencia procura-se relatar o movimento dos povos indígenas para
recuperar seus territórios tradicionais e reivindicar seu reconhecimento
por parte do Governo e da Justiça Federal.
A princípio,
é importante destacar que tanto as memórias das lideranças idosas
indígenas quanto à documentação oficial do governo brasileiro, sobretudo
através dos arquivos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), FUNAI e
documentos dos cartórios demonstram que a luta e demanda dos indígenas
pela demarcação das terras indígenas, no atual Estado do Mato Grosso do
Sul são antigas.
Territórios tradicionais na concepção indígena
Antes de
tudo, é fundamental compreender a definição de territórios indígenas, na
visão indígena, significa um espaço territorial de domínio específico, é
definido como o lugar exclusivo onde a comunidade indígena realiza o
seu modo de ser e viver específico. Assim, terra indígena tradicional é
um espaço territorial de uso de indígenas. Território indígena inclui
diversos espaços compartilhados de caça, de pesca, de coleta, de
habitação, de prática agrícola, de ritual religioso e festivo,
constituindo-se como o palco das relações intercomunitárias e
interétnicas. Este espaço territorial muitas vezes é delimitado por
recursos naturais e por micro-bacias hidrográficas. Dessa forma, o
território indígena não é a pequena ilha de terras isoladas e
delimitadas pelos órgãos indigenistas do Estado Brasileiro, como, por
exemplo, Postos Indígenas ou as Aldeias/Reservas Indígenas criadas pelo
SPI entre 1910 e 1930.
É
fundamental lembrar que até o final da segunda metade do século XIX,
diversos povos indígenas do atual Estado do Mato Grosso do Sul, ainda
habitavam em determinados territórios exclusivos onde ainda havia
recursos naturais, como rios e córregos para pescar e fontes d’águas
para o consumo. Na proximidade das habitações indígenas, além de suas
lavouras tradicionais, na floresta e no campo, era possível encontrar
caças, árvores frutíferas, plantas medicinais, mel, etc. Desta forma,
até meados de 1930, várias comunidades indígenas ainda viviam de modo
autônomo nos seus territórios antigos, onde não experimentavam a
miséria, violência, etc. Cada povo indígena pertencia exclusivamente a
um território específico nas margens dos rios e córregos.
Processo de retirada ou expulsão dos indígenas de seus territórios tradicionais
As fontes
documentais demonstram que o primeiro processo de retirada ou expulsão
dos indígenas de seus territórios iniciou-se com a política de
povoamento e colonização da faixa de fronteira entre Brasil e Paraguai.
Assim, a primeira ocupação ou “invasão” dos territórios indígenas
ocorreu, sobretudo, após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). Os
documentos históricos evidenciam que a política oficial de povoamento da
faixa de fronteira avançou, primeiramente, nos territórios indígenas do
atual Estado do Mato Grosso do Sul.
No período
subsequente à guerra, na década de 1880, o Estado brasileiro começou a
abrir a região para o capital privado e concedeu uma enorme concessão de
terras para a Cia. Matte-Larangeira, permitindo a ela a exploração
exclusiva da erva-mate nativa na região em que estavam localizados os
territórios indígenas. Até a metade da segunda década do século XX,
pode-se dizer que os indígenas não sofreram significativas mudanças na
ocupação de seus territórios tradicionais, uma vez que os integrantes
indígenas eram engajados de forma periódica nos trabalhos de extração da
erva-mate e, posteriormente, na derrubada das matas. Desta forma,
puderam permanecer nos seus territórios tradicionais.
Foi somente a
partir das décadas de 1940 e 1950 que teve início um novo período mais
violento de retirada das comunidades indígenas de suas terras. Esse novo
período é marcado tanto pelo fim do monopólio da Cia. Matte-Larangeiras
quanto pelo aumento do loteamento da região quando se abre a região
para a instalação de inúmeras fazendas privadas.
É importante
observar, no entanto, que desde o ano de 1915 as primeiras Reservas
Indígenas no atual Estado de Mato Grosso do Sul foram instituídas,
pressionando os indígenas a se transferirem para o interior delas.
Contudo, foi só a partir da década de 1970 que se assistiu ao maior
processo de expropriação das terras de ocupação tradicional dos
indígenas, em favor de sua titulação privada. As terras indígenas foram
consideradas como “terra devoluta” e “terra vazia” “terra de ninguém”,
por isso, o território tradicional indígena se tornou objeto legal de
comércio do Governo, ou melhor, as terras indígenas foram griladas pelo
Governo Militar. Neste contexto histórico os indígenas foram
progressivamente expulsos de seus territórios tradicionais. Os
compradores dessas terras começaram a explorar a mão de obra indígena e
depois os expulsaram de suas habitações, passando a devastar a floresta e
a construir fazendas sobre esses mesmos espaços.
Entre as
décadas de 1950 e 1970, nessa operação histórica de expulsão dos
indígenas de seus territórios, envolveram-se os novos compradores das
terras indígenas com agentes políticos locais, missionários e militares,
etc. Estes agentes sociais oficialmente passaram a operar com violência
no atual de Mato Grosso do Sul e contaram também com a participação de
funcionários dos órgãos indigenistas do Estado, como o antigo SPI e,
posteriormente, a atual FUNAI.
Desta forma,
inúmeras comunidades indígenas começaram a ser expulsas de seus
territórios antigos, tendo sido transferidas e confinadas nas Reservas
Indígenas criadas entre 1915 e 1930 pelo SPI. Para o Governo, essas
reservas eram consideradas como os únicos espaços oficiais doados e
destinados aos indígenas que perdura até os dias de hoje.
É importante
destacar que, por conta do processo histórico oficial de colonização
dos territórios indígenas, aproximadamente 20 mil indígenas dos que hoje
reivindicam seus territórios tradicionais encontram-se residindo ou nas
margens das rodovias (BRs) ou nas pequenas áreas reocupadas e
retomadas. Além desses, aproximadamente cinquenta mil outros indígenas,
ou seja, a maioria dos indígenas do Mato Grosso do Sul estão assentados
nas pequenas Reservas Indígenas que foram oficialmente reservadas
respectivamente pelo SPI entre 1915 e 1930.
É relevante
considerar que o Estado de Mato Grosso do Sul apresenta, hoje, a maior
população indígena do Brasil. São aproximadamente noventa mil
indivíduos, pertencentes às oitos etnias, que estão distribuídas em
pequenas áreas reservadas, boa parte delas em conflito, totalizando
somente sessenta mil hectares de terras em posse dos indígenas. Todos os
territórios em conflitos/litígios encontram-se em diferentes etapas de
regularização fundiária (identificadas, demarcadas, homologadas, em
acampamentos aguardando reconhecimento do Governo e Justiça Federal.)
Iniciativa de movimento e luta árdua dos indígenas para recuperar os seus antigos territórios
Importa
destacar que diante das expulsões e dispersões dos indígenas de seus
territórios tradicionais se originaram, desde o final da década de 1970,
o movimento indígena, articulação e luta de indígenas para recuperar os
seus antigos territórios. As narrações de várias lideranças idosas
evidenciam que as realizações de várias grandes assembleias interétnicas
foram e são fundamentais para os indígenas expulsos se articularem e se
envolverem nos processos de reocupação/retomadas de parte dos seus
territórios tradicionais reivindicados.
Os relatos
de idosos indígenas confirmam que a partir do final da década de 1970
até os dias de hoje, as lideranças articuladas, reivindicantes das
terras tradicionais, começaram a se reunir trimestralmente nas
assembleias gerais, buscando discutir e deliberar a respeito da
demarcação e a reocupações/retomadas das terras. Ao mesmo tempo, no seio
de cada assembleia geral, os líderes e os articuladores políticos
também começaram a elaborar documentos escritos e petições destinadas ao
governo e à justiça federal. Nestes documentos formularam por escrito
as reivindicações, indicando a delimitação e demarcação urgente das
terras indígenas antigas.
Assim, uma
das táticas mais recentes para pressionar o governo federal sobre a
demarcação das terras antigas foi e é a solicitação de audiências com
autoridades federais em Brasília, capital do país. Nessas ocasiões são
entregues vários documentos escritos às autoridades federais (presidente
da FUNAI e ministro da justiça e presidente da República do Brasil).
Para isso, comitivas de lideranças indígenas se deslocam de Mato Grosso
do Sul à Brasília-DF. Essas viagens das lideranças indígenas a Brasília
ocorreram e ocorrem esporadicamente, a cada seis meses. Desde 1980, essa
prática esporádica de viagem tem por objetivo cobrar e pressionar a
demarcação dos territórios tradicionais.
Assim, é
evidente que a partir da década de 1970, as várias comunidades indígenas
expulsas de seus territórios, que viviam nas margens da estrada ou nas
“reservas indígenas”, começaram a reivindicar ao governo a demarcação e
devolução de suas terras tradicionais. Mas as demandas indígenas não
foram e não são atendidas ainda pelo Governo do Brasil. Por essa razão,
já ao longo de 1980 e 1990 começaram a reocupar ou retomar a parte de
seus territórios antigos com o claro objetivo de pressionar a devolução
de seus territórios reivindicados. Essa situação de conflito começou em
1970 e perdura até os dias de hoje com grau extremo de violência.
A luta
indígena pela demarcação de terras indígena é definida como uma resposta
ou reação organizada através da assembleia geral frente à expulsão
violenta das comunidades indígenas de seus territórios, objetivando
reocupar e recuperar esses territórios perdidos em favor dos
fazendeiros. Dessa forma, movimento de reocupação/retomada de terras
tradicionais indígenas foi e é sempre o resultado da articulação própria
e da luta legítima de povos indígenas. O movimento de
retomada/reocupação de terras tradicionais também é visto por indígenas
como uma forma de resistência étnica contra as violências dos
fazendeiros e do Estado brasileiro.
É
fundamental registrar que o processo de reocupação/retomada das terras
tradicionais na década de 1990 e 2000 ocorreu, em certos casos, diante
da demora na demarcação, homologação e devolução das Terras Indígenas
pelo Governo e Justiça Federal. Em outros casos, quando as terras já
estavam demarcadas e homologadas, o processo de reocupação se dava pela
judicialização do processo demarcatório, que atrasava e ainda atrasa a
devolução total e definitiva das terras indígenas já reconhecidas e
homologadas pelo Estado brasileiro.
Foi nesses
contextos que se desencadeou o movimento da retomadas das terras
reconhecidas pelo Governo e Justiça Federal. Conforme proclamação dos
povos indígenas do Mato Grosso do Sul envolvidos, uma das táticas das
reivindicações das terras indígenas é e será a reocupação/retomada da
parte dos territórios indígenas que já foram postas em prática nas
décadas de 1980, 1990 e 2000.
Observamos
que as lideranças e comunidades indígenas engajadas na reocupação usaram
rigorosamente as mesmas táticas que foram decretadas pelos povos
indígenas durante a assembleia geral da década de 1970. Com essas
táticas e estratégias já foram reocupadas uma pequena parte de três
dezenas de territórios tradicionais. Todos os processos de reocupação
desses territórios antigos foram coordenados pelos líderes indígenas
religiosos.
Por fim, é
relevante destacar que desde meados de 1970, tanto as lideranças dos
povos indígenas do Mato Grosso do Sul, quanto os integrantes das
comunidades e famílias extensas (crianças, mulheres, homens e idosos)
dos territórios antigos reocupados já foram e são ainda isolados,
atacados e retirados com a violência pelos pistoleiros das fazendas e
várias vezes foram despejadas pelas autoridades policiais do Estado a
mando da justiça. Porém, os indígenas expulsos e violentados voltaram a
reocupar ou retomar os seus territórios antigos. Além disso, nesse
contexto de reocupação, desde a década de 1970 e até os dias de hoje,
milhares de indígenas estão ameaçados de morte coletiva, ou seja, em
processo de genocídio e mais de duas centenas de lideranças religiosas e
políticas já foram torturadas e assassinadas de modo cruel pelos
pistoleiros contratados pelos donos das fazendas, em decorrência da
demora da demarcação e devolução das terras indígenas reivindicadas.
Apesar dessas violências históricas em curso exercidas contra os líderes
indígenas; contra membros dos povos indígenas, os povos autóctones
sobreviventes do atual Estado do Mato Grosso do Sul desde 1970 e até
junho de 2013, continuam resistindo e demandando a demarcação de suas
terras ao Governo e Justiça Federal.
*Antropólogo
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