junho 03, 2013

"Dos armários nossos de cada dia", texto de Letticia Leite.

PICICA: "[...] entre outras coisas, a autora sublinha que, para muito além de Stonewall, a salvação não viria a ser encontrada nem mesmo num ato único ou coletivo definitivo de “saída do armário”. Na medida em que, assumir ou não, parece constituir-se antes numa escolha que implica atos diários de negociações que se dão a partir de um “dispositivo de regulação” materializado pelas múltiplas significações da metáfora “armário”. Afinal, atuamos numa sociedade em que os discursos em torno do “armário” se foram e são (re)apropriados pelos movimentos militantes, há muito constituem-se em discursos heteronormativos (nem) sempre tácitos. E é por ali que parece a cada dia passar quem dita o que é exibicionismo ou discrição, o que extrapola ou não a esfera do público e do privado, do segredo e da confissão."



Dos armários nossos de cada dia

Texto de Letticia Leite.

Cenário 1

Certa vez, uma moça narrou-me com orgulho que, ao contar sobre o fato de estar/ou ter se relacionado com algumas mulheres, ouvira de uma pessoa que era sua conhecida há um bom tempo, algo do gênero: “Nossa, você é bastante discreta. Pois não dá para saber que você “é”. “É” o quê? Eu perguntaria para ambas? “Lésbica” seria o termo que deveria vir depois do verbo “é”? E eu nunca vou saber quem de fato usou o vago “é”. Se foi a moça que me narrou, toda orgulhosa da sua discrição, o breve diálogo que acabo de relatar acima, ou se foi mesmo sua interlocutora. Ou teria eu mesma inventado? Não fosse o incômodo que me fez reter na memória este pequeno diálogo, cheio de subentendidos, com muito orgulho de o serem, eu poderia apostar nesta última alternativa. Fato é que ambas não pareciam nem um pouco preocupadas, pelo contrário. Afinal, ao menos na altura em que a moça me narrou esta conversa, ela não se definia como “lésbica”. Ah! E nem tampouco definia-se como bissexual. Ela, moça “feminina” padrão está salva de qualquer “suspeita”.

Cenário 2

Um ano e meio antes do “Cenário 1”, em outra conversa, na qual agora era uma das interlocutoras ativas, eu estranhava a pergunta que ouvi sem rodeios enunciada por minha interlocutora, que se definia como lésbica. Ela, logo ao me conhecer perguntara nos primeiros minutos de conversa: “Você é lésbica?”. Ao que eu respondi algo do tipo: “Gosto e apenas desejo ficar com mulheres, mas sinto um certo incômodo com definições, já que nossas identidades passavam por construções históricas e blá, blá, entre outras coisas do gênero”. Quase a resposta comum do tipo “eu gosto de pessoas”. E sim, eu hoje continuo gostando de pessoas “no geral”, assim como continuo gostando e desejando relacionar-me erótica e/ou afetivamente apenas com mulheres. Mas o ponto não é este: o ponto é que, ao me incomodar com o que eu parecia entender como “rótulos” naquela altura, não estava levando muito em conta o mundo para um pouco além de mim. Isto é, eu parecia não considerar nem por um instante, as histórias dos movimentos sociais onde as identidades minoritárias e historicamente há muito estigmatizadas, tinham sido transformadas em causa de luta e de orgulho (pride).

E eu, na ocasião, mal sabia que a moça ali, que fazia questão de se definir como lésbica, tampouco ela se dava muito conta da importância política, individual e coletiva, que a sua postura de se definir com todas as letras enquanto lésbica, representava. Ela, pouco “feminina” para os padrões tão restritos que versam sobre a maneira de se vestir e se impor como “mulher” no mundo; ela sim, que sempre estava sob “suspeita”, parecia nesta altura da sua vida na qual nos encontramos, bem pouco disposta a se submeter ao que se elogia por aí como “discrição”. Porém, embora ela houvesse há muito escolhido arrombar o armário no contexto familiar e social no geral, vez ou outra, ela também se via às voltas com as “boas medidas” e pertinência do assumir/omitir.

Cenário 3

Fiquei pensando bastante na “questão do armário” também por estes dias — e senti-me, por isto, involuntariamente convidada a escrever o presente texto — depois de ler o belo texto escrito e publicado por Idelber Avelar, no seu Facebook (07/04/2013), acerca de uma recente matéria de capa da Revista Veja. Capa em que os holofotes se voltavam para a decisão e o ato politicamente significativo feito por Daniela Mercury, que optou por “sair do armário”.

Fotos divulgadas por Daniela Mercury em seu perfil no instagram.
Fotos divulgadas por Daniela Mercury em seu perfil no instagram.

Daniela decidiu tornar pública a relação que mantêm com a jornalista Malu Verçosa, em meio a um contexto bastante significativo e turbulento: de um lado os movimentos LGBT’s se batem cada vez mais no Brasil, e em tantos outros países do mundo, para fazer valer seus direitos a uma cidadania efetiva. Paralelamente, o Brasil recebe, não sem reações, a notícia da nomeação do pastor Marcos Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Figura política conhecida por suas famigeradas declarações de cunho abertamente racista, machista e homofóbico.

Trata-se também, como a cantora mesma declara em vídeo divulgado pela Internet — no qual comenta emocionada as repercussões da sua decisão — de uma decisão tomada em conjunto com sua companheira, como uma forma de procurar viver suas próprias vidas de forma mais tranquila, sem medo das “suspeitas” e dos “rumores” sobre os não ditos, porém subentendidos.


No entanto, a matéria da Veja, como bem ressalta Idelber Avelar, é generosa em comentários típicos de uma cultura que prega em tempo quase integral uma espécie de ética do armário. Afinal, a revista considera que “Daniela misturou seu relacionamento com política”, e fazendo isto, ela teria prestado um desserviço ao romantismo e à “seriedade dos seus propósitos”. Idelber ressalta ainda :

Mais escrotidão aparece na capa, que credita ao belo e louvável ato de Daniela o mérito de fazer ‘da união homossexual uma questão inadiável no Brasil’, como se esse mérito não fosse de milhares e milhares de ativistas LGBT anônimos, que estão nesta luta há décadas, e que tornaram possível o próprio ato (belo, insisto) de Daniela.
Discrição/Armário” (Discrétion/Placard), não por acaso é a dupla que podemos encontrar num dos verbetes que compõe o ‘Dicionário da Homofobia’, publicado na França em 2003 (1). Verbete que,  assim como o verbete “Armário” (Placard), de outro dicionário lançado no mesmo ano também na França, o ‘Dicionário das Culturas gays e lésbicas’ (2), destaca a historicidade e, portanto, a complexidade implicada na e pela noção do “armário”.

Ora, a metáfora do armário, fechado, é o lugar da vergonha, dos amores ilegítimos sintetizados na figura bem conhecida dos amantes que ali se escondem. “Armário” também serve de metáfora para o lugar social e psicológico em que por muito tempo, e ainda hoje, — ainda que seja por momentos, e apenas em certos contextos (familiar, trabalho), muitas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais se encontram, mas do qual também fazem uso. Pois, os espaços coletivos criados e restritos para os que “são”, podem ser lidos por um viés de proteção de alguma liberdade, e portanto, como parte de um processo político de resistência. Espaço de sobrevivência, onde por muito tempo se fez possível a vivência e troca de experiências entre os “armariados”.

O ponto de partida de um uso aberto, política e coletivamente subversivo do lugar do armário são os anos 1970, momento pós-Stonewall (1969) (3). Uma vez que, a partir dali, a “saída do armário” (coming out), tornar-se-ia palavra de ordem política que se espalharia mundo afora. Aliás, um traço notório da expansão desse processo político evidencia-se por meio das versões que o vocábulo closet, e as expressões dele derivadas, ganhariam mundo afora: armário (pt.), armario (esp.), placard (fr.), para ficar em alguns exemplos. “Sair do armário” era, portanto, sair lugar do espaço da vergonha, para assumir com orgulho uma identidade. Não por acaso, outro produto deste contexto, e que também ganharia notoriedade mundo afora, são as saídas coletivas, as marchas e paradas: as Gays Prides. Mais tarde, objetos de discussão dentro e fora dos movimentos LGBT’s. Movimentos com frequência acusados como espaço de puro exibicionismo.

Dada tamanha pluralidade de manifestações e significações, não por acaso a noção do “armário”, foi tomada como objeto central de reflexão por parte da estudiosa Eve Kosofsky Sedwig. Ela, no seu livro ‘Epistemology of the closet’, publicado em 1990, desenvolve o que eu vou definir aqui (4) como uma análise que busca identificar e discutir certos traços que, ao longo da história, vêm norteando as estruturas que sustentam o “armários”. Traços/ações que acabam por configurar perfis biográficos de indivíduos, movimentos sociais e de nossa sociedade como um todo — esta constituída sob uma base heteronormativa e homofóbica (5), na qual a preferência heterossexual aparece como uma evidência que não demanda nem confissão nem discrição.

Assim, entre outras coisas, a autora sublinha que, para muito além de Stonewall, a salvação não viria a ser encontrada nem mesmo num ato único ou coletivo definitivo de “saída do armário”. Na medida em que, assumir ou não, parece constituir-se antes numa escolha que implica atos diários de negociações que se dão a partir de um “dispositivo de regulação” materializado pelas múltiplas significações da metáfora “armário”. Afinal, atuamos numa sociedade em que os discursos em torno do “armário” se foram e são (re)apropriados pelos movimentos militantes, há muito constituem-se em discursos heteronormativos (nem) sempre tácitos. E é por ali que parece a cada dia passar quem dita o que é exibicionismo ou discrição, o que extrapola ou não a esfera do público e do privado, do segredo e da confissão.

É neste espaço que a imprensa, como bem vimos no “Caso Daniela Mercury”, e já em tantos outros, não se cansa de jogar o jogo e dar as cartas por meio de um discurso contraditório e sempre limitante. Daí, se de um lado este tipo de imprensa expõe na capa a “saída do armário”, e a destaca como ato político “desbravador”; paralelamente ela mesma se encarrega de rechaçá-lo pelo que seria uma sua falta de medida que anda a misturar as esferas da política e do privado.

Como forma de concluir, opto por compartilhar uma reflexão bastante preciosa, acerca de fatos “banais”, de Eve Kosofsky Sedwig. Fica, assim, o convite para continuarmos pensando:

Mesmo num nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas. (…) Cada encontro com uma nova turma de estudantes, para não falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, médico, constrói novos armários cujas leis características de ótica e física exigem, pelo menos da parte de pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e demandas de sigilo ou exposição. Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente com interlocutores que ela não sabe se sabem ou não. É igualmente difícil adivinhar, no caso de cada interlocutor, se, sabendo, consideram a informação importante. No nível mais básico, tampouco é inexplicável que alguém que queira um emprego, a guarda dos filhos ou direitos de visita, proteção contra violência, contra ‘terapia’, contra estereótipos distocidos, contra o escrutínio insultuoso, contra a interpretação forçada de seu produto corporal, possa escolher deliberadamente entre ficar o voltar para o armário em algum ou em todos os segmentos de sua vida. O armário gay não é uma caractesrítica apenas da vida de pessoas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora. (“A epistemologia do armário”, p. 22)
Referências bibliográficas
(1) MANGEOT, Philippe, « Discrétion/Placard ». In : TIN, Louis-Georges (dir.), Dictionnaire de l’homophobie, Paris : PUF, 2003, p. 130-133.
(2) ERIBON, Didier, « Placard ». In : ERIBON, D. (dir.), Dictionnaire de cultures Gays et Lesbiennes, Paris : Larousse, 2003, p. 365-366.
(3) Em junho de 1969, a invasão policial do bar Stonewall Inn deflagraria uma rebelião nas ruas de Nova York. Este evento posteriormente seria tomado como marco mundial de fundação dos movimentos LGBT’s.
(4) As pessoas interessadas num acesso mais imediata às ideias desta autora, podem encontrá-las no artigo “A Epistemologia do armário”, traduzido e disponibilizado aqui: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/03.pdf
(5) Embora eu use o adjetivo derivado do termo “geral”: ‘homofobia’, destaco a pertinência e especifidade implicada no/pelo uso dos termos: lesbofobia, gayfobia, transfobia e bifobia. Para uma discussão em torno da constituição da noção de “homofobia”, fica a dica de leitura do artigo escrito por Felipe Fernandes, disponível na internet: http://www.apebfr.org/passagesdeparis/editione2012/articles/pdf/PP7_artigo10.pdf.

Indico ainda o documentário “Homofobia, Lesbofobia e Transfobia”, 2008, realizado por Felipe Fernandes e disponível no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=gIxx8Zd5TuU. A França, desde 1994, conta com as atividades da Associação SOS Homophobie: http://www.sos-homophobie.org/

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Letticia Leite tem 31 anos e ultimamente tem apreciado os barulhos que consegue ouvir nos momentos de silêncio. É doutoranda em História.


Letticia Leite

Tem 31 anos e ultimamente tem apreciado os barulhos que consegue ouvir nos momentos de silêncio. Faz doutorado em História.

Fonte: Blogueiras Feministas

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