PICICA: "Os dois questionamentos a seguir apresentam a objetividade e sagacidade
do pensamento de Beccaria, neles é possível novamente compreender que
os argumentos mais simples foram por muito tempo obscurecidos por certos
interesses e, de certa forma, em muitas situações ainda o são.
Desejais
prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país
inteiro preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria se
preocupe constantemente em destruí-las. Que elas não favoreçam qualquer
classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade;
tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis
inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma fonte nefasta
de delitos.
Desejais
evitar os crimes? Caminhe a liberdade acompanhada das luzes. Se as
ciências produzem alguns malefícios, é quando são pouco difundidas;
porém, à proporção que se espalham, as vantagens que propiciam se tornam
maiores."
Dos Delitos e das Penas
Por Parcilene Fernandes
Bacharel em Psicologia. Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.
View of Daniel Defoe (1660-1731) – Fonte: The Bridgeman Art Library
O livro “Dos delitos e das penas”, de Beccaria, é uma obra que reflete a
consciência crítica sobre um tema, em muitos aspectos, de difícil
inovação. Foi escrito no século XVIII, em meio à forte influência
advinda da inquisição e da tirania de alguns soberanos. Esse livro,
antes de qualquer outro aspecto técnico, discorre sobre a liberdade
humana. O autor utiliza uma argumentação lógica e sucinta para
demonstrar algumas verdades que a ele não são apenas necessárias, mas,
em alguns casos, vitais para iluminar o pensamento sombrio que recaía
sobre o significado dos delitos e das penas no contexto em que foi
escrita a obra.
Um dos pontos
enfatizados por Beccaria é que "as vantagens da sociedade devem ser
distribuídas equitativamente entre todos os seus membros",
desta forma fica evidente que o seu pensamento causaria um mal-estar na
sociedade da época. Ele inicia suas argumentações trabalhando com o
princípio de que a "verdade é uma e a mesma em toda a parte". Logo, já deixa claro que abomina o fato da lei ser adequada a um dado contexto ou a um certo indivíduo. Sobre isso, ele diz:
Qualquer
que seja a conclusão de todas essas questões, apenas direi que as penas
das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as dos mais
ínfimos cidadãos. A igualdade civil é anterior a todas as diferenças de
honras e de riquezas. Se todos os cidadãos não dependerem de modo igual
das mesmas leis, as distinções não serão mais legítimas.
O autor construiu suas argumentações a partir de certos
questionamentos, desde qual seria a origem das penas, ou em que se
baseia o direito de punir, até sobre como diferenciar os crimes e como
estabelecer suas penas. Mostrou-se desde o início preocupado com os
costumes da época, que atribuíam uma certa divindade ao carrasco que
possuía o direito de torturar em nome de uma verdade obscura.
Tortura na Idade Média – Fonte: Hulton Archive/Getty Images
Numa revisão da história, Beccaria discorreu que "as leis foram as
condições que agruparam os homens, no início independentes e isolados, à
superfície da terra". Acrescenta ainda que o homem tem uma
forte tendência ao despotismo. De certa forma, é observável em todas as
sociedades, desde os agrupamentos humanos iniciais, que o mais forte
quer impor seu poder sobre o mais fraco. Assim, é mister que tal
característica seja relevante ao delinear as leis que regem um povo.
Pois, segundo ele, "somente a necessidade obriga os homens a ceder uma
parcela de sua liberdade", então se ele quer ter segurança nessa
convivência em comunidade, ao compreender a sua própria natureza,
entenderá que é interessante abandonar sua condição de homem livre em
termo absoluto, para que o outro, com características tão similares às
suas, não venha também a desejar usurpar-lhe algo, ou invadir seus
domínios.
A partir dessa reflexão, o autor concluiu que a "reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir".
Desta forma, quando no exercício do poder houver um afastamento deste
fundamento, tal ato constituirá abuso e não justiça. Como consequências
desses princípios, o magistrado, que é parte da sociedade, não pode em
nome da justiça aplicar leis que não estão previstas no código. Pois,
"se o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois
aumenta um novo castigo ao que já está prefixado".
Sobre a questão da “interpretação das leis”, Beccaria desenvolveu
vários argumentos, especialmente no que tange a questão do direito que
um juiz tem de fazer a leitura da lei ao seu bel prazer. Para ele, a lei
deve ser definida e interpretada pelos legisladores, cabendo aos juízes
executá-las. Sendo assim, o juiz não pode interferir, em nome de suas
crenças e valores, para o bem ou para o mal do acusado.
O autor utiliza os fundamentos da Lógica Clássica para estabelecer o
silogismo sobre o qual o juiz deveria se ater ao estabelecer a
culpabilidade ou inocência de um indivíduo, assim, tem-se que: "a maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena".
Logo, o juiz não poderia levantar questões que não estivessem sobre a
regência dessa estrutura lógica, evitando, assim, caminhos incertos e
reflexões obscuras.
Para o autor,
"se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade, a
sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão", pois "a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes". Nesse
ponto, ele remete sua argumentação à teoria do Contrato Social, de
Rousseau, e discorre sobre a balança tênue que existe equilibrando as
relações sociais a partir dos direitos e deveres das partes que as
constituem.
O homem muitas vezes é levado, segundo o autor, pelo axioma comum de que há um espírito na lei a ser consultado, tal qual um oráculo que tudo sabe, tudo entende e que para tudo tem uma resposta. O grande problema em interpretar livremente uma lei é se deixar levar pela emoção de axiomas gerados pela ignorância, pois "cada homem tem a sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmos objetos". Assim, por essa diversidade de visões sobre um mesmo tema, é que não se pode construir verdades tendenciosas. Pois, cada homem carrega em si um conjunto de verdades que pode ser aplicado segundo seu interesse e sua necessidade. Ainda que não haja uma verdade universal, é necessário o estabelecimento de regras gerais que poderão nortear e sustentar a vida em sociedade. Acrescenta ainda, que "com leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do crime".
Um ponto ressaltado no livro de Beccaria e que é uma evidência cada vez
mais latente nos dias atuais, é o fato de que "as leis e os usos de um
povo estão sempre atrasados em vários séculos em relação aos progressos
atuais".
Como exemplo, é possível citar os avanços na área da informática que fizeram surgir novas formas de crimes e de vítimas. No entanto, existem poucas leis que lidam com tal situação. Isso dá margem a necessidade de buscar nas analogias formas eficazes para a compreensão de um crime. No entanto, uma analogia inadequada pode acarretar em inúmeros problemas e afastar a lei do seu objetivo maior, o alcance da justiça.
Ao tratar dos indícios do delito e da forma dos julgamentos, Beccaria
estabeleceu um teorema geral que permite calcular a certeza de um fato e
o valor que alguns indícios têm para um dado crime. No teorema ele
demonstra que:
Quando
as provas de um fato se apóiam todas entre si, isto é, quando os
indícios do crime não se mantêm senão apoiados uns nos outros, quando a
força de inúmeras provas depende de uma só, o número dessas provas nada
acrescenta nem subtrai na probabilidade do fato: merecem pouca
consideração, porque, se destruís a única prova que parece certa,
derrocareis todas as demais.
Quando,
porém, as provas independem umas das outras, isto é, quando cada
indício pode ser provado separadamente, quanto mais numerosos forem
esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de
uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes.
A coerência desse raciocínio é observada no fato de que o teorema é
baseado numa regra que apresenta o quanto as provas que se condicionam
em outras podem ser frágeis e passíveis de refutação. É evidente que
fatos encadeados podem ser usados para solidificar uma dada
consequência, no entanto, é preciso que aquele que julga tal ato
compreenda que um fato falso desmorona o encadeamento e impossibilita
que se encontre o consequente final dos condicionais.
Ainda que seu raciocínio seja extremamente lógico e, em alguns casos,
ele tenha a tendência de buscar quase uma demonstração matemática, o
autor admite que, sendo o Direito uma ciência subjetiva, "toda certeza
moral não é senão uma probabilidade, que merece, porém, ser considerada
como uma certeza, quando todo homem de bom senso é obrigado a lhe dar o
seu consentimento".
Beccaria distinguiu as provas de um delito em duas categorias: provas
perfeitas e provas imperfeitas. "As provas perfeitas são aquelas que
demonstram positivamente que é impossível ser o acusado inocente. As
provas imperfeitas derivam-se do fato de que a possibilidade de
inocência do acusado não é excluída". Então, pode-se concluir
que basta uma prova perfeita para condenar um indivíduo e que é
necessário um número muito grande de provas imperfeitas para provar que,
juntas, constituem a certeza (ainda que relativa) de que o acusado é
culpado.
Seguindo sua tendência em
explicar suas teorias de forma lógica, Beccaria discorre sobre uma
proposição que, segundo ele, é muito simples, que diz: "ou o crime é
certo, ou é incerto. Se é certo, apenas deve ser punido com a pena que a
lei fixa, e a tortura é inútil, porque não se tem mais necessidade das
confissões do acusado. Se o crime é incerto, não é hediondo atormentar
um inocente? Efetivamente, perante as leis, é inocente aquele cujo
delito não está provado". Com essa proposição, ele demonstra
sua aversão à tortura como forma de identificar a culpa ou inocência de
um acusado. Essa proposição simples (vale ressaltar que o simples não é
simplório, mas carrega em si uma certa “suficiência” que refuta muita
argumentação complexa) deve ser a máxima de qualquer código penal (“o
acusado é inocente até que se prove o contrário”, Código Penal
Brasileiro).
A partir de Beccaria,
foi apresentada com mais clareza a necessidade de se estabelecer a
duração dos processos e, principalmente, o tempo necessário para sua
prescrição. Segundo o autor, esses fatos já devem ser definidos a priori,
por lei, assim, evitaria que os juízes exercessem a função de
legislador, ou que algumas situações injustas viessem a ocorrer. Para
ele, podem ser distinguidas duas espécies de crimes: a dos crimes
horrendos, que se inicia com o homicídio e engloba toda a progressão das
formas mais terríveis de assassinatos; e a dos crimes menos hediondos
do que o homicídio. No código penal brasileiro, também comete crime
hediondo aquele que subtrai a vida de outrem e, para esses crimes, a
pena é mais dura e o tempo de prescrição é maior. No entanto, há
inúmeras críticas com relação ao Código Penal Brasileiro, especialmente
no que tange às questões relativas à progressão da pena.
Ao demonstrar sua opinião contrária à pena de morte, Beccaria constrói seu melhor argumento, como pode ser verificado adiante:
A
soberania e as leis nada mais são do que a soma das pequenas partes de
liberdade que cada qual cedeu à sociedade. Representam a vontade geral,
que resulta da reunião das vontades individuais. Mas quem já pensou em
dar a outros o direito de lhes tirar a existência? Será o caso de supor
que, por sacrificar uma parte ínfima de sua liberdade, cada indivíduo
tenha desejado arriscar a própria vida, o bem mais precioso de todos?
Ou tem o homem o direito de suicidar-se, ou não pode passar tal direito a outrem nem à sociedade toda.
A
pena de morte, pois, não se apóia em nenhum direito. É guerra que se
declara a um cidadão pelo país, que considera necessária ou útil a
eliminação desse cidadão.
A partir do entendimento de como se dá a doação da liberdade para o
alcance da justiça, o autor desenvolve uma disjunção que implica,
necessariamente, em dois caminhos obscuros. Assim, ele demonstra que a
pena de morte não nos remete a nenhuma consequência justa, qualquer
caminho que se segue para validá-la é por si só um caminho vicioso e
sombrio.
O autor enfatiza, ainda,
que o rigor do castigo não determina a sua eficácia em coibir novos atos
da mesma forma ilícitos. Ou seja, que não adianta executar uma ação
brutal e rápida (como a pena de morte) se a continuidade de um ato
possibilita mais recordação do que a violência instantânea. Maquiavel já
argumentou sobre isso em “O Príncipe”, que o mal deve ser feito de
forma rápida, se a pessoa não quiser ser lembrada por ele. Já as boas
ações devem ser realizadas com calma e de forma constante, assim dará a
impressão que o homem que a faz é melhor do que talvez seja. É claro que
as situações supramencionadas são diferentes, no entanto, a ideia é
semelhante. A visão de permanecer preso numa cela por trinta anos é
menos poética e mais apavorante do que uma morte rápida. A natureza
humana tende a desafiar o perigo extremo, mas teme a dor constante e a
ausência de liberdade.
Sobre a pena aplicada a crimes aparentemente semelhantes, é observado
que no código penal brasileiro há uma diferenciação entre a pena para o
roubo que é feito com violência e aquele em que é retirado o bem do
cidadão, sem, no entanto, atacá-lo fisicamente. Beccaria, diz que "o
roubo com violência e o roubo com astúcia são crimes totalmente
diversos; e a política sã deve admitir, mais ainda do que a matemática, o
axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos há uma distância
infinita".
Um ponto em que
Beccaria sempre retorna é a questão da igualdade civil, desta ser
"anterior a todas as diferenças de honras e de riquezas". Essa
preocupação constante é explicável especialmente tendo em vista a época
em que o livro foi escrito. Num mundo em que a barbárie é pregada pela
mesma fonte de conforto e amor, que é a igreja, é compreensível que há
uma inversão de valores e quem percebe isso e tenta confrontar tal
situação, tem que fazê-lo de forma insistente. Mas, também, parece ser
uma temática atemporal, dada as inúmeras discussões e protestos atuais
em torno das questões relacionadas aos Direitos Humanos.
Os dois questionamentos a seguir apresentam a objetividade e sagacidade
do pensamento de Beccaria, neles é possível novamente compreender que
os argumentos mais simples foram por muito tempo obscurecidos por certos
interesses e, de certa forma, em muitas situações ainda o são.
Desejais
prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país
inteiro preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria se
preocupe constantemente em destruí-las. Que elas não favoreçam qualquer
classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade;
tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis
inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma fonte nefasta
de delitos.
Desejais
evitar os crimes? Caminhe a liberdade acompanhada das luzes. Se as
ciências produzem alguns malefícios, é quando são pouco difundidas;
porém, à proporção que se espalham, as vantagens que propiciam se tornam
maiores.
A inteligência está
na sensibilidade de perceber que, "sob boas leis, o homem apenas perdeu a
nefasta liberdade de cometer o mal". O ponto mais interessante nessa obra está na constatação tão atual de que "a
maneira mais segura, porém ao mesmo tempo mais difícil, de tornar os
homens menos propensos à prática do mal é aperfeiçoar a educação".
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas – tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002.
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