junho 03, 2013

"Dos Delitos e das Penas", por Parcilene Fernandes

PICICA: "Os dois questionamentos a seguir apresentam a objetividade e sagacidade do pensamento de Beccaria, neles é possível novamente compreender que os argumentos mais simples foram por muito tempo obscurecidos por certos interesses e, de certa forma, em muitas situações ainda o são.

Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país inteiro preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria se preocupe constantemente em destruí-las. Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma fonte nefasta de delitos.

Desejais evitar os crimes? Caminhe a liberdade acompanhada das luzes. Se as ciências produzem alguns malefícios, é quando são pouco difundidas; porém, à proporção que se espalham, as vantagens que propiciam se tornam maiores."


Dos Delitos e das Penas


Por

Bacharel em Psicologia. Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA. 

 


View of Daniel Defoe (1660-1731) – Fonte: The Bridgeman Art Library
 
O livro “Dos delitos e das penas”, de Beccaria, é uma obra que reflete a consciência crítica sobre um tema, em muitos aspectos, de difícil inovação. Foi escrito no século XVIII, em meio à forte influência advinda da inquisição e da tirania de alguns soberanos. Esse livro, antes de qualquer outro aspecto técnico, discorre sobre a liberdade humana. O autor utiliza uma argumentação lógica e sucinta para demonstrar algumas verdades que a ele não são apenas necessárias, mas, em alguns casos, vitais para iluminar o pensamento sombrio que recaía sobre o significado dos delitos e das penas no contexto em que foi escrita a obra.

Um dos pontos enfatizados por Beccaria é que "as vantagens da sociedade devem ser distribuídas equitativamente entre todos os seus membros", desta forma fica evidente que o seu pensamento causaria um mal-estar na sociedade da época. Ele inicia suas argumentações trabalhando com o princípio de que a "verdade é uma e a mesma em toda a parte". Logo, já deixa claro que abomina o fato da lei ser adequada a um dado contexto ou a um certo indivíduo. Sobre isso, ele diz:

Qualquer que seja a conclusão de todas essas questões, apenas direi que as penas das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as dos mais ínfimos cidadãos. A igualdade civil é anterior a todas as diferenças de honras e de riquezas. Se todos os cidadãos não dependerem de modo igual das mesmas leis, as distinções não serão mais legítimas.

O autor construiu suas argumentações a partir de certos questionamentos, desde qual seria a origem das penas, ou em que se baseia o direito de punir, até sobre como diferenciar os crimes e como estabelecer suas penas. Mostrou-se desde o início preocupado com os costumes da época, que atribuíam uma certa divindade ao carrasco que possuía o direito de torturar em nome de uma verdade obscura.
 
Tortura na Idade Média – Fonte: Hulton Archive/Getty Images
 
Numa revisão da história, Beccaria discorreu que "as leis foram as condições que agruparam os homens, no início independentes e isolados, à superfície da terra". Acrescenta ainda que o homem tem uma forte tendência ao despotismo. De certa forma, é observável em todas as sociedades, desde os agrupamentos humanos iniciais, que o mais forte quer impor seu poder sobre o mais fraco. Assim, é mister que tal característica seja relevante ao delinear as leis que regem um povo. Pois, segundo ele, "somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade", então se ele quer ter segurança nessa convivência em comunidade, ao compreender a sua própria natureza, entenderá que é interessante abandonar sua condição de homem livre em termo absoluto, para que o outro, com características tão similares às suas, não venha também a desejar usurpar-lhe algo, ou invadir seus domínios.

A partir dessa reflexão, o autor concluiu que a "reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir". Desta forma, quando no exercício do poder houver um afastamento deste fundamento, tal ato constituirá abuso e não justiça. Como consequências desses princípios, o magistrado, que é parte da sociedade, não pode em nome da justiça aplicar leis que não estão previstas no código. Pois, "se o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado".

Sobre a questão da “interpretação das leis”, Beccaria desenvolveu vários argumentos, especialmente no que tange a questão do direito que um juiz tem de fazer a leitura da lei ao seu bel prazer. Para ele, a lei deve ser definida e interpretada pelos legisladores, cabendo aos juízes executá-las. Sendo assim, o juiz não pode interferir, em nome de suas crenças e valores, para o bem ou para o mal do acusado.

O autor utiliza os fundamentos da Lógica Clássica para estabelecer o silogismo sobre o qual o juiz deveria se ater ao estabelecer a culpabilidade ou inocência de um indivíduo, assim, tem-se que: "a maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena". Logo, o juiz não poderia levantar questões que não estivessem sobre a regência dessa estrutura lógica, evitando, assim, caminhos incertos e reflexões obscuras.

Para o autor, "se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade, a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão", pois "a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes". Nesse ponto, ele remete sua argumentação à teoria do Contrato Social, de Rousseau, e discorre sobre a balança tênue que existe equilibrando as relações sociais a partir dos direitos e deveres das partes que as constituem.
 

O homem muitas vezes é levado, segundo o autor, pelo axioma comum de que há um espírito na lei a ser consultado, tal qual um oráculo que tudo sabe, tudo entende e que para tudo tem uma resposta. O grande problema em interpretar livremente uma lei é se deixar levar pela emoção de axiomas gerados pela ignorância, pois "cada homem tem a sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmos objetos". Assim, por essa diversidade de visões sobre um mesmo tema, é que não se pode construir verdades tendenciosas. Pois, cada homem carrega em si um conjunto de verdades que pode ser aplicado segundo seu interesse e sua necessidade. Ainda que não haja uma verdade universal, é necessário o estabelecimento de regras gerais que poderão nortear e sustentar a vida em sociedade. Acrescenta ainda, que "com leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do crime".

Um ponto ressaltado no livro de Beccaria e que é uma evidência cada vez mais latente nos dias atuais, é o fato de que "as leis e os usos de um povo estão sempre atrasados em vários séculos em relação aos progressos atuais".
 

Como exemplo, é possível citar os avanços na área da informática que fizeram surgir novas formas de crimes e de vítimas. No entanto, existem poucas leis que lidam com tal situação. Isso dá margem a necessidade de buscar nas analogias formas eficazes para a compreensão de um crime. No entanto, uma analogia inadequada pode acarretar em inúmeros problemas e afastar a lei do seu objetivo maior, o alcance da justiça.

Ao tratar dos indícios do delito e da forma dos julgamentos, Beccaria estabeleceu um teorema geral que permite calcular a certeza de um fato e o valor que alguns indícios têm para um dado crime. No teorema ele demonstra que:

Quando as provas de um fato se apóiam todas entre si, isto é, quando os indícios do crime não se mantêm senão apoiados uns nos outros, quando a força de inúmeras provas depende de uma só, o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai na probabilidade do fato: merecem pouca consideração, porque, se destruís a única prova que parece certa, derrocareis todas as demais.

Quando, porém, as provas independem umas das outras, isto é, quando cada indício pode ser provado separadamente, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes.

A coerência desse raciocínio é observada no fato de que o teorema é baseado numa regra que apresenta o quanto as provas que se condicionam em outras podem ser frágeis e passíveis de refutação. É evidente que fatos encadeados podem ser usados para solidificar uma dada consequência, no entanto, é preciso que aquele que julga tal ato compreenda que um fato falso desmorona o encadeamento e impossibilita que se encontre o consequente final dos condicionais.
 
 
Ainda que seu raciocínio seja extremamente lógico e, em alguns casos, ele tenha a tendência de buscar quase uma demonstração matemática, o autor admite que, sendo o Direito uma ciência subjetiva, "toda certeza moral não é senão uma probabilidade, que merece, porém, ser considerada como uma certeza, quando todo homem de bom senso é obrigado a lhe dar o seu consentimento".

Beccaria distinguiu as provas de um delito em duas categorias: provas perfeitas e provas imperfeitas. "As provas perfeitas são aquelas que demonstram positivamente que é impossível ser o acusado inocente. As provas imperfeitas derivam-se do fato de que a possibilidade de inocência do acusado não é excluída". Então, pode-se concluir que basta uma prova perfeita para condenar um indivíduo e que é necessário um número muito grande de provas imperfeitas para provar que, juntas, constituem a certeza (ainda que relativa) de que o acusado é culpado.

Seguindo sua tendência em explicar suas teorias de forma lógica, Beccaria discorre sobre uma proposição que, segundo ele, é muito simples, que diz: "ou o crime é certo, ou é incerto. Se é certo, apenas deve ser punido com a pena que a lei fixa, e a tortura é inútil, porque não se tem mais necessidade das confissões do acusado. Se o crime é incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Efetivamente, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não está provado". Com essa proposição, ele demonstra sua aversão à tortura como forma de identificar a culpa ou inocência de um acusado. Essa proposição simples (vale ressaltar que o simples não é simplório, mas carrega em si uma certa “suficiência” que refuta muita argumentação complexa) deve ser a máxima de qualquer código penal (“o acusado é inocente até que se prove o contrário”, Código Penal Brasileiro).

A partir de Beccaria, foi apresentada com mais clareza a necessidade de se estabelecer a duração dos processos e, principalmente, o tempo necessário para sua prescrição. Segundo o autor, esses fatos já devem ser definidos a priori, por lei, assim, evitaria que os juízes exercessem a função de legislador, ou que algumas situações injustas viessem a ocorrer. Para ele, podem ser distinguidas duas espécies de crimes: a dos crimes horrendos, que se inicia com o homicídio e engloba toda a progressão das formas mais terríveis de assassinatos; e a dos crimes menos hediondos do que o homicídio. No código penal brasileiro, também comete crime hediondo aquele que subtrai a vida de outrem e, para esses crimes, a pena é mais dura e o tempo de prescrição é maior. No entanto, há inúmeras críticas com relação ao Código Penal Brasileiro, especialmente no que tange às questões relativas à progressão da pena.

Ao demonstrar sua opinião contrária à pena de morte, Beccaria constrói seu melhor argumento, como pode ser verificado adiante:

A soberania e as leis nada mais são do que a soma das pequenas partes de liberdade que cada qual cedeu à sociedade. Representam a vontade geral, que resulta da reunião das vontades individuais. Mas quem já pensou em dar a outros o direito de lhes tirar a existência? Será o caso de supor que, por sacrificar uma parte ínfima de sua liberdade, cada indivíduo tenha desejado arriscar a própria vida, o bem mais precioso de todos?

Ou tem o homem o direito de suicidar-se, ou não pode passar tal direito a outrem nem à sociedade toda.

A pena de morte, pois, não se apóia em nenhum direito. É guerra que se declara a um cidadão pelo país, que considera necessária ou útil a eliminação desse cidadão.
 
 
A partir do entendimento de como se dá a doação da liberdade para o alcance da justiça, o autor desenvolve uma disjunção que implica, necessariamente, em dois caminhos obscuros. Assim, ele demonstra que a pena de morte não nos remete a nenhuma consequência justa, qualquer caminho que se segue para validá-la é por si só um caminho vicioso e sombrio.

O autor enfatiza, ainda, que o rigor do castigo não determina a sua eficácia em coibir novos atos da mesma forma ilícitos. Ou seja, que não adianta executar uma ação brutal e rápida (como a pena de morte) se a continuidade de um ato possibilita mais recordação do que a violência instantânea. Maquiavel já argumentou sobre isso em “O Príncipe”, que o mal deve ser feito de forma rápida, se a pessoa não quiser ser lembrada por ele. Já as boas ações devem ser realizadas com calma e de forma constante, assim dará a impressão que o homem que a faz é melhor do que talvez seja. É claro que as situações supramencionadas são diferentes, no entanto, a ideia é semelhante. A visão de permanecer preso numa cela por trinta anos é menos poética e mais apavorante do que uma morte rápida. A natureza humana tende a desafiar o perigo extremo, mas teme a dor constante e a ausência de liberdade.
 
 
Sobre a pena aplicada a crimes aparentemente semelhantes, é observado que no código penal brasileiro há uma diferenciação entre a pena para o roubo que é feito com violência e aquele em que é retirado o bem do cidadão, sem, no entanto, atacá-lo fisicamente. Beccaria, diz que "o roubo com violência e o roubo com astúcia são crimes totalmente diversos; e a política sã deve admitir, mais ainda do que a matemática, o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos há uma distância infinita".

Um ponto em que Beccaria sempre retorna é a questão da igualdade civil, desta ser "anterior a todas as diferenças de honras e de riquezas". Essa preocupação constante é explicável especialmente tendo em vista a época em que o livro foi escrito. Num mundo em que a barbárie é pregada pela mesma fonte de conforto e amor, que é a igreja, é compreensível que há uma inversão de valores e quem percebe isso e tenta confrontar tal situação, tem que fazê-lo de forma insistente. Mas, também, parece ser uma temática atemporal, dada as inúmeras discussões e protestos atuais em torno das questões relacionadas aos Direitos Humanos. 

Os dois questionamentos a seguir apresentam a objetividade e sagacidade do pensamento de Beccaria, neles é possível novamente compreender que os argumentos mais simples foram por muito tempo obscurecidos por certos interesses e, de certa forma, em muitas situações ainda o são.

Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país inteiro preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria se preocupe constantemente em destruí-las. Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma fonte nefasta de delitos.

Desejais evitar os crimes? Caminhe a liberdade acompanhada das luzes. Se as ciências produzem alguns malefícios, é quando são pouco difundidas; porém, à proporção que se espalham, as vantagens que propiciam se tornam maiores.

A inteligência está na sensibilidade de perceber que, "sob boas leis, o homem apenas perdeu a nefasta liberdade de cometer o mal". O ponto mais interessante nessa obra está na constatação tão atual de que "a maneira mais segura, porém ao mesmo tempo mais difícil, de tornar os homens menos propensos à prática do mal é aperfeiçoar a educação".
 

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas – tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002.


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