junho 03, 2013

"Ideologia do consumo da “saúde”: epidemia contemporânea", por Graziela Wolfart

PICICA: "IHU On-Line - Que ideias a senhora apresenta no trabalho “A medicalização do fracasso escolar e a infância (mal)tratada”? 

Rosangela Barbiani - Abordo as relações entre a saúde e a educação no processo brasileiro de higienização dos costumes instaurado no início do século XX, quando o Brasil assume a identidade republicana. As escolas nascem incorporando um modelo de ciência e de educação em que os indicadores de desempenho escolar individuais foram se constituindo em mecanismos seletivos e definidores do sucesso e do fracasso dos alunos. A classificação dos comportamentos na relação binária normal-anormal, herdada com a invenção da infância moderna, produz a gestão controlada da exclusão, um dos mais graves mecanismos de violação de direitos. No passado recente, os alunos que não preenchiam os critérios de normalidade na aprendizagem eram objeto de tratamentos especializados, geralmente realizados por profissionais do campo da saúde. Seus diagnósticos: débeis, retardados, instáveis, emotivos, tímidos, deprimidos, tarados, desconfiados, perversos, fatigáveis, neuropatas e psicopatas, desajustados, desatentos, hipostênicos, adenoideanos, precoces, entre muitas outras designações. Hoje, com o vocabulário renovado, nomeamos nossos infantes de crianças e adolescentes “problemas”, colcha de retalhos, despaternalizados, agitados, agressivos, violentos, cacos, trapos, hiperativos, mal-educados, desinteressados, debochados, infratores, enfim, alunos “incomodativos”. Essas expressões, extraídas de encaminhamentos das escolas, aos serviços de saúde que analisei em uma pesquisa revelam a presença do fenômeno, reatualizado. 

A medicalização da saúde escolar endereça as dificuldades dos alunos no processo de ensino a dificuldades exclusivamente pessoais (neurológicas, visuais, auditivas, de fala, psicológicas e/ou nutricionais) ou familiares. A noção de comportamento disfuncional é repassada à família, seja por sua forma de manejo “ao problema”, seja por sua autoridade em resolvê-lo. Entretanto, as famílias contemporâneas ressentem-se de um saber que já não é mais seu, na condução do tratamento às suas necessidades de saúde. O poder-saber é propriedade dos especialistas e dos mecanismos diagnósticos e terapêuticos disponíveis no mercado. Nessa lógica, as drogas do bom comportamento como o ritalin passam a ser desejadas e ministradas como um antídoto ao fracasso escolar. Eis o impasse civilizatório a ser enfrentado: a infância (mal)-tratada!" 
 

 

Ideologia do consumo da “saúde”: epidemia contemporânea

Para Rosangela Barbiani, na esteira dos grandes avanços da ciência biomédica e da biotecnologia, o século XXI protagoniza uma nova forma de relação entre a saúde e a doença

Por: Graziela Wolfart

“Transitamos da cultura do combate às doenças à vigilância eugênica, onde o controle sobre a saúde e a doença estende-se ao controle da própria vida, não só na forma de geri-la, mas na forma de concebê-la e prolongá-la. A saúde passa a ser um produto que se adquire por meio de diversos dispositivos, resultado de um conjunto de investimentos físicos, espirituais e, sobretudo, materiais sobre um corpo social cada vez mais amedrontado com a finitude humana e seus enigmas. No mercado de oferta de serviços e mercadorias, a medicina clássica divide espaço com as ‘novas tecnologias’ que analgesiam o sofrimento humano, propagam a ‘felicidade’ e a vida longeva, quiçá eterna. Os corpos que antes eram necessários para a tarefa civilizatória de erguer uma nação, hoje são cultuados como objetos de consumo para o mercado e mediatizados pela sociedade enquanto veículos da vida humana. No motor dessa nova sociabilidade imposta pelo capital está a indústria do consumismo”. A reflexão é da professora Rosangela Barbiani, da Unisinos. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ela explica que “para todos os males há um ‘remédio’ e para evitá-los basta seguir com disciplina e fé as profecias dos programas propagandeados na mídia televisiva, jornalística, eletrônica, radiofônica. No círculo que se estabelece, observa-se a posição dos sujeitos como seres–pacientes cada vez mais dóceis e receptivos às prescrições e prognósticos provenientes de complexos aparatos diagnósticos, hospitalares e de drogas quimicamente manipuladas”. 

Rosangela Barbiani possui graduação e mestrado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é professora nos cursos de mestrado em Saúde Coletiva e mestrado profissional em Enfermagem e no curso de graduação em Serviço Social da Unisinos. É membro do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Leopoldo, na qualidade de representante da Universidade.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Como podemos definir o conceito de medicalização social?

Rosangela Barbiani – Segundo a definição de Tesser, Poli Neto, Campos (2010)  trata-se de um processo sociocultural complexo que vai transformando em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que eram administrados de outras maneiras, no próprio ambiente familiar e comunitário, e que envolviam interpretações e técnicas de cuidado autóctones. A medicalização acentua a realização de procedimentos profissionalizados, diagnósticos e terapêuticos, desnecessários e muitas vezes até danosos aos usuários. Há ainda uma redução da perspectiva terapêutica com desvalorização da abordagem do modo de vida, dos fatores subjetivos e sociais relacionados ao processo saúde-doença. 

IHU On-Line - Como a medicalização da vida social se relaciona com a indústria do consumismo? 

Rosangela Barbiani - Na esteira dos grandes avanços da ciência biomédica e da biotecnologia, o século XXI protagoniza uma nova forma de relação entre a saúde e a doença. Transitamos da cultura do combate às doenças à vigilância eugênica, onde o controle sobre a saúde e a doença estende-se ao controle da própria vida, não só na forma de geri-la, mas na forma de concebê-la e prolongá-la. A saúde passa a ser um produto que se adquire por meio de diversos dispositivos, resultado de um conjunto de investimentos físicos, espirituais e, sobretudo, materiais sobre um corpo social cada vez mais amedrontado com a finitude humana e seus enigmas. No mercado de oferta de serviços e mercadorias, a medicina clássica divide espaço com as “novas tecnologias” que analgesiam o sofrimento humano, propagam a “felicidade” e a vida longeva, quiçá eterna. Os corpos que antes eram necessários para a tarefa civilizatória de erguer uma nação, hoje são cultuados como objetos de consumo para o mercado e mediatizados pela sociedade enquanto veículos da vida humana. No motor dessa nova sociabilidade imposta pelo capital está a indústria do consumismo. Entre os vários ramos que a compõem está a indústria farmacêutica. No seu projeto expansivo, além de “vender a saúde” e de prescrever as novidades “revolucionárias” para seus clientes médicos, controla os contextos clínico-hospitalares e os ambientes de pesquisa. Os produtos sob forma de “promessas milagrosas” veiculam de forma silenciosa e permanente os valores da cultura consumista, penetrando no imaginário coletivo e nas relações sociais mais íntimas, agudizando o individualismo, a supervalorização do prazer, dos padrões massacrantes de beleza e saúde. Nessa lógica, a família também se torna um objeto de intervenção do mercado, um meio para facilitar o acesso a esses artefatos que prometem a cura e/ou a felicidade. No desempenho dessa função torna-se, ao mesmo tempo, uma incubadora de indivíduos movidos por essa cultura do consumo desenfreado.

IHU On-Line - A partir da lógica do consumo e do mercado, quais são as necessidades de saúde da sociedade? 

Rosangela Barbiani - As necessidades da sociedade passam a ser aquelas que podem ser “saciadas” pelo mercado. Há aí uma lógica perversa que inverte os sentidos das noções de demanda e necessidade. As necessidades que são por natureza produtos do viver no coletivo, no âmbito dos determinantes sociais da saúde e que remetem à discussão sobre desenvolvimento social e econômico são transmutadas para a ordem do individual, no nível de demandas por um determinado produto ou serviço. Assim, nossas “necessidades” passam a ser vigiadas e tuteladas pelo mercado, que invade nossa intimidade utilizando-se da pedagogia do consumo para nos convencer a resolver nossos problemas, comprando soluções. Para todos os males há um “remédio” e para evitá-los basta seguir com disciplina e fé as profecias dos programas propagandeados na mídia televisiva, jornalística, eletrônica, radiofônica. No círculo que se estabelece, observa-se a posição dos sujeitos como seres–pacientes cada vez mais dóceis e receptivos às prescrições e prognósticos provenientes de complexos aparatos diagnósticos, hospitalares e de drogas quimicamente manipuladas.
IHU On-Line - O que podemos entender pela pedagogia da medicalização?

Rosangela Barbiani - Utilizo este termo para chamar à atenção sobre o caráter histórico e educativo sobre qual os processos civilizatórios se constroem no tempo. As discursividades e seus mecanismos ideológicos incidem diretamente sobre nossos padrões culturais de vida e de consumo. São apreendidas socialmente, seja por transmissão ou por internalização, isto é, passam a ser instituídas e naturalizadas nas práticas sociais e nos comportamentos individuais como legítimas. Um exemplo disso é a automedicação e a proliferação do recurso aos medicamentos como a forma mais eficiente e rápida de resolver e até prevenir qualquer tipo de mal-estar. Essa prática, antes predominante na população idosa e adulta, agora é naturalmente disseminada entre os jovens e as crianças. Outra evidência dos tempos de medicalização da vida social está na geografia dos nossos bairros: ricos ou pobres são invadidos por farmácias, salões de beleza e, mais recentemente, por academias esportivas. Se o mercado se expande é porque há consumo. Se há consumo, um dos mecanismos que o move é a pedagogia da medicalização.  

IHU On-Line - Quais as características do processo de medicalização da família brasileira? Como entram aqui nessa questão o Estado, a higiene e a moral?

Rosangela Barbiani - Quando analisei o processo de medicalização da família brasileira, encontrei o fenômeno “enraizado” em um curso civilizatório alicerçado em cinco configurações sócio-históricas: 
a) na própria história da sociabilidade brasileira, onde a “família” é educada e moralizada de acordo com os ícones da “higiene cidadã”, impulsionadores do modo capitalista de pensar;

b) na contextualização histórica de como essa cidadania foi sendo produzida, ou seja: na forma como higiene, saber médico e controle social foram emoldurando perfis de infantes e jovens aptos à civilidade societal;

c) na forma como a ciência se legitimou nesse modelo biologizador do social e na produção de conhecimentos ratificadores da ordem posta;

e por fim

d) na história da criação e operacionalização das políticas sociais, especialmente às de saúde e educação, como dispositivos estratégicos de afirmação da ideologia hegemônica de regulação pela via da medicalização da vida social;

Essas configurações determinaram a convergência de um cenário propício à intervenção na família colonial brasileira onde três fenômenos se associaram: a emergência da categoria infância “desvalida”, isto é, à mercê de uma família sem competências ao cuidado e proteção; a união estratégica das disciplinas educação e saúde, como instrumentos de combate à ignorância e doenças e, na sequência, a medicina e seus agentes como guardiões da proteção social na vigilância higiênica e sanitária. Na mediação política dessa rota civilizatória, estava o Estado, alinhavando a ideologia higienista, não só com o seu apoio político, como na instituição de políticas e legislações correlatas. Essa ordem social atravessa os séculos, sofrendo mudanças, porém subsistindo no tecido social sua lógica e racionalidade. 

IHU On-Line - Que ideias a senhora apresenta no trabalho “A medicalização do fracasso escolar e a infância (mal)tratada”? 

Rosangela Barbiani - Abordo as relações entre a saúde e a educação no processo brasileiro de higienização dos costumes instaurado no início do século XX, quando o Brasil assume a identidade republicana. As escolas nascem incorporando um modelo de ciência e de educação em que os indicadores de desempenho escolar individuais foram se constituindo em mecanismos seletivos e definidores do sucesso e do fracasso dos alunos. A classificação dos comportamentos na relação binária normal-anormal, herdada com a invenção da infância moderna, produz a gestão controlada da exclusão, um dos mais graves mecanismos de violação de direitos. No passado recente, os alunos que não preenchiam os critérios de normalidade na aprendizagem eram objeto de tratamentos especializados, geralmente realizados por profissionais do campo da saúde. Seus diagnósticos: débeis, retardados, instáveis, emotivos, tímidos, deprimidos, tarados, desconfiados, perversos, fatigáveis, neuropatas e psicopatas, desajustados, desatentos, hipostênicos, adenoideanos, precoces, entre muitas outras designações. Hoje, com o vocabulário renovado, nomeamos nossos infantes de crianças e adolescentes “problemas”, colcha de retalhos, despaternalizados, agitados, agressivos, violentos, cacos, trapos, hiperativos, mal-educados, desinteressados, debochados, infratores, enfim, alunos “incomodativos”. Essas expressões, extraídas de encaminhamentos das escolas, aos serviços de saúde que analisei em uma pesquisa revelam a presença do fenômeno, reatualizado. 

A medicalização da saúde escolar endereça as dificuldades dos alunos no processo de ensino a dificuldades exclusivamente pessoais (neurológicas, visuais, auditivas, de fala, psicológicas e/ou nutricionais) ou familiares. A noção de comportamento disfuncional é repassada à família, seja por sua forma de manejo “ao problema”, seja por sua autoridade em resolvê-lo. Entretanto, as famílias contemporâneas ressentem-se de um saber que já não é mais seu, na condução do tratamento às suas necessidades de saúde. O poder-saber é propriedade dos especialistas e dos mecanismos diagnósticos e terapêuticos disponíveis no mercado. Nessa lógica, as drogas do bom comportamento como o ritalin passam a ser desejadas e ministradas como um antídoto ao fracasso escolar. Eis o impasse civilizatório a ser enfrentado: a infância (mal)-tratada!

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Rosangela Barbiani - Vivemos uma epidemia contemporânea que podemos nomear de ideologia do consumo da “saúde” irradiada no seio da família, sendo seus efeitos ainda ignorados do ponto de vista civilizatório. Nesse sentido, na dialética das rupturas e continuidades, a regularidade na qual a medicalização social se reconfigura é a silenciosa permanência da ideologia eugênica, nesse tempo alinhada à pedagogia do consumo, a serviço da avidez da sociedade do capital, forjada lado a lado à constituição de nossa formação social. 

Fonte: IHU On-Line

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