Indóceis e inúteis: o que podem os corpos?
14/06/2013
Por Murilo Corrêa
“Na medida em que, contra o Estado, produz-se a revolta profunda de todos os corpos, esses corpos transformam sua fenomenologia da revolta em uma ontologia da liberdade.”
Primeiro foi Porto Alegre; depois, São Paulo, Goiânia e o Rio de Janeiro… Uma multidão de corpos indóceis e inúteis impede as vias públicas, pára o tráfego eternamente estagnado das seis da tarde dessas grandes capitais e, paradoxalmente – dirão alguns – em nome da liberdade de circular insujeitos pela cidade. Quem teria lhes dado esse direito – por tanto tempo exclusivo dos automóveis?
Os corpos jovens, liberados e frenéticos que nos últimos dias ocuparam as praças e as principais avenidas de grandes cidades, em um movimento meta-regional, interromperam os fluxos do capital que as sucessivas e recentes isenções de IPI possibilitaram. Eis os corpos indóceis e inúteis, insubmissos e nada comportados, que constituem o princípio de prova das articulações de poder, dissimuladas sob a questão da tarifa do transporte público nas grandes metrópoles. É preciso lançar luzes sobre os protestos, para muito além das frases efectistas e midiáticas, das gritas reativas medioclassistas de um Arnaldo Jabor – ou de qualquer outro ex-comunista arrependido que hoje ocupa postos discursivos por meio dos quais a grande mídia, a serviço do Estado e, sobretudo, dos interesses corporativos, tenta incessantemente controlar as margens de crítica social.
As vidraças quebradas – alvo aparentemente preferido desses corpos anarquistas – são, ao lado das máscaras e do lixo incendiado, as três grandes marcas simbólicas – ou melhor, demasiadamente inconscientes e reais – das passagens revoltas dos corpos. Eis alguns dos signos que permitem produzir uma genealogia dos acontecimentos de superfície que via a romper com os quadros de inteligibilidade que estão dados, e enxergar um pouco além do que, no movimento pelo passe livre e pela tarifa zero, é acidental. Trata-se de desentocar a própria potência política vital de que a coragem desses corpos se tornou depositária.
As vidraças quebradas nada mais são do que o atentado contra o princípio de uma sociedade disciplinar e de controle em que os corpos são constantemente vigiados e controlados nas margens virtuais de seus gestos – basta um esboço ou um descuido para que o poder que transforma cada corpo em um sujeito, ou em um indivíduo, torne-se sutilmente eficaz e maquinal. Assim, a disciplina vai moldando, em um nível infralegal e infrajudiciário, os corpos dóceis e úteis cotidianament. Tudo o que ameaça a tranquila normalidade do retorno para casa após um dia extenuante de trabalho só pode ser um atentado à liberdade dos “cidadãos de bem” (esses efeitos de poder) que se comprazem em se comprimem uns contra os outros nos infinitos engarrafamentos ou no interior dos coletivos; ao menos, o seria do ponto de vista de qualquer sujeito constituído pelas finas malhas de poder dos panoptismos que jamais deixaram de integrar as estratégias das sociedades disciplinares ou de controle. Como as vidraças estilhaçadas não seriam, também, o signo do contrapoder que circula em corpos que se desejam anônimos, impessoais e inindividualizáveis?
Esses corpos indóceis usam máscaras. Estratégia de terroristas e bandidos que não querem ser reconhecidos e identificados – dispararam alguns. No entanto, o gesto de dissimular o rosto no espaço público consiste na mais radical afirmação de democracia – especialmente quando um Estado que se pretende democrático não dá outra alternativa a seus cidadãos senão dissimular o rosto para ganhar as ruas e ver o enxame amorfo que pouco a pouco ganha o nome impronunciável, impessoal e politicamente monstruoso da multidão. Tecida apenas de singularidades impessoais e precárias, é a própria multidão, constituída pela revolta profunda dos corpos, que ocupa as ruas, negando as identidades que o poder não cessou de tentar fixar sobre seus corpos.
Eis as táticas simbólicas, afetivas e, a um só tempo, inconscientes mobilizadas a fim de liberar os corpos do jugo normalizante dos poderes de uma sociedade de controle que ainda conserva muitos dos aparatos de poder das sociedades disciplinares. Romper seu princípio de transparência (as vidraças, os rostos, as identidades), destruir seu princípio de registro e controle contínuo (depredar câmeras de segurança ou a iluminação pública), apor seus signos e palavras de ordem que denunciam que, no limite, a partição entre o lícito e o ilícito, das formas jurídicas do Estado esconde, sob sua pele verminal, a repartição maquinal em que o poder selciona certas ilegalidades – circunstancialmente capitalísticas, como a máfia dos transportes públicos, das montadoras de automóveis, dos empresários do petróleo e dos combustíveis fósseis, ou da mídia – para receberem a forma legalizadora e a despesa do direito de Soberania.
Quando os corpos destroem o princípio de controle sutil a que se encontram submetidos – as disciplinas infinitesimais que produzem o sujeito e sua bela alma, que os colam a uma singularidade orgânica como efeito da insidiosa inscrição desses poderes nos corpos, e que classificam o bom e o ruim, repartem o normal e o anormal –, tudo o que resta é apenas fazer valer as estratégias de poder de um direito de Soberania. Isto é, só resta ao Estado – e as afirmações cínicas de Haddad, direto de Paris (corpo ausente do soberano), o provam – aplicar à massa informe, rebelde e perigosa, na qual os indivíduos se tornaram, as prerrogativas de violência, fiadoras de primeiro tempo das disciplinas fustigadas pelos contrapoderes, que corpos indóceis e inúteis descobriram sob a superfície artificial e verminal de seus eus sociais. Assim, o Estado pode transformar-se em máquina de abolição – como não raro se transforma – e fazer da justiciabilidade dos “vândalos, anormais e insubmissos” um desnecessário e, sob todos os aspectos, injustificável e criminoso espetáculo de crueldade.
Sob o eu social, superfície construída por mil e uma microssujeições (como andar em ônibus lotado, ou pagar mais do que um serviço público vale, ou dar-se conta dos lucros astronômicos dos empresários do setor de transportes, ou saber das grandes ilegalidades convalidadas pelo direito que tornam essas malhas de poder cada vez mais tesas e imutáveis…), residem os contrapoderes de corpos indisciplinados, indóceis e (do ponto de vista dos poderes que se organizam para sujeitá-los) inúteis.
Na medida em que, contra o Estado, produz-se a revolta profunda de todos os corpos, esses corpos transformam sua fenomenologia da revolta em uma ontologia da liberdade. Descobrem que a única consistência da liberdade é a práxis da rebelião e, ao mesmo tempo, que a única forma de fazer uma rebelião que seja também uma festa de destruição de todos os valores contestados é tomando parte nessa experiência de liberdade. Sob a práxis está a descoberta revolucionária de todos os corpos indisciplinados: jamais fomos sujeitos! O poder que circula pelos nossos corpos – seus fluxos domados e axiomatizados pelo capital, pelo Estado, pelos aparatos micrológicos e microfascistas das sociedades de controle – é desejo esquizo. Em profundidade, todos os corpos poderão, um dia, descobrir-se anarquistas, questionando a repartição do lícito e do ilícito a partir das ações borderlines como a de quebrar vidraças, usar máscaras, incendiar lixo ou pichar palavras de ordem – travar discursivamente, também, esse combate pelo sentido e pelos signos.
O lixo incendiado é o signo último desse combate: de um lado, a recusa das dejeções que o sistema de exploração capitalista pôde produzir; de outro, o princípio incendiário e contaminador que comunica a indisciplina e a insubmissão como princípio de abertura e questionamento radical de um corpo a outro; já não podermos falar em comunicação do aberto entre almas, porque a alma foi queimada com o fogo. Ela também é, de alguma forma, o dejeto incendiado que o poder fabricou.
Eis o que todo corpo insubmisso, indócil e inútil que ocupa – e ainda ocupará por muito tempo – as vias públicas coloca em jogo: um devir indomável de nossas formas de viver e de pensar para o mercado. As estases nos corpos sujeitados. Impedindo o trânsito violentamente com a mesma intensa doçura de quem escreve em um cartaz: “Desculpe o incômodo. Estamos lutando por seus direitos.”, é o devir de todo um modelo de exercício de poder que esses corpos jovens, indóceis e inúteis tentar manifestar no aberto. O devir é o novo, o interessante, o vital que está em jogo. Finalmente, é o princípio vital, virtual e inorgânico que suas existências políticas mobilizam. Eis o próprio tempo a colocar em xeque e afetar irremediavelmente a totalidade das formas de vida que o poder produziu e produz como seus dejetos cotidianos.
O que podem esses corpos rebeldes não é pouco – sob nenhum aspecto.
Fonte: Rede Universidade Nômade
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