junho 17, 2013

"O que eu sei e o que não sei sobre as manifestações pelo passe livre", por Luiz Eduardo Soares

PICICA: "Contemplemos o objeto que nos interroga, tanto quanto o interrogamos: os eventos em que milhares ocupam as ruas de várias cidades brasileiras, protestando contra o aumento de tarifa do transporte coletivo. O que ousaria dizer que sei a seu respeito? O que não sei?, ou melhor, que boas perguntas posso formular para as quais não disponho de respostas?"

O que eu sei e o que não sei sobre as manifestações pelo passe livre


Luiz Eduardo Soares

Diante de um fenômeno que rompe a rotina e surpreende a expectativa de estabilidade, as reações individuais são as mais variadas. Entretanto, de um modo geral, o primeiro impulso é defensivo e visa a auto-conservação. Qualquer mudança nos ameaça porque traz consigo a fantasia de que nosso mundo pessoal tão precário e incerto está em risco e pode ruir a qualquer momento. Essa fantasia provém da radical insegurança que nos é constitutiva, seres mortais que somos. Não apenas a vida humana é frágil como aquilo que chamamos “realidade” é débil e movediço. Para sustentar-se, nossa “realidade” precisa dos outros, do olhar alheio, de seu reconhecimento, de sua confiança, da reiteração de manifestações de amor, amizade e respeito. A “realidade” depende das redes sociais que tecem afetos, valores, símbolos e ideias, tudo isso embrulhado em narrativas cotidianas verossímeis para o conjunto dos interlocutores.


Por isso, a ruptura do movimento contínuo e previsível da vida –que só é contínuo e previsível em nossa fabulação amedrontada, insegura e defensiva—suscita em nós respostas que negam ou exorcizam a mudança. Nesse sentido, há um complô conservador em cada um de nós –e entre nós– contra a mudança, ocorra ela em nós, nos outros ou na sociedade –como escrevi em um capítulo conhecido do Cabeça de Porco.

O que significam, nesse contexto, negar e exorcizar? Negar não significa recusar-se a admitir a existência de fatos, mas sua novidade, sua diferença. Exorcizar quer dizer livrar-se do embaraço que assusta e ameaça nossas crenças, nossa estabilidade, interior e exterior. Qual a melhor maneira de fazer ao mesmo tempo as duas coisas, negar e exorcizar? Explicando. Sobretudo, explicando com as categorias já conhecidas, disponíveis em nosso repertório de crenças e teorias. Quando eu explico um fenômeno novo, o teor de novidade deixa de perturbar meus esquemas cognitivos e valorativos, e as ideias que me ligam aos outros e àquilo que considero a realidade. Minha sanidade, a solidez de minhas verdades, principalmente a solidez de mim mesmo como sujeito, tudo isso salva-se com a explicação, quando, insisto, e apenas quando ela não coloca em dúvida seus próprios pressupostos ou métodos, seu próprio estoque de ideias prontas. O evento, em sua novidade, infiltra um excedente em nossa sensibilidade, em nossas ideias, em nossas emoções e percepções. Por outro lado, prestando um serviço a nosso aparato de autodefesa, a explicação domestica a diferença, circunscreve seu potencial subversivo e sua força questionadora. Meu argumento é simples: se um evento coloca um problema para meus esquemas mentais e práticos, deixa de fazê-lo quando estes últimos demonstram a capacidade de descrevê-lo (e integrá-lo) sem que haja resíduos, sem que seja necessária a invenção de novas estratégias descritivas e práticas, novas categorias e procedimentos. Na verdade, em vez de conhecimento, estaria em jogo apenas a confirmação de meu repertório prático, moral, ideológico e cognitivo.

Estas reflexões não pretendem ser o elogio à ignorância ou a crítica obscurantista ao conhecimento. Pelo contrário, visam distinguir a tarefa do conhecimento do comodismo classificatório reassegurador, que nos impede de olhar com os olhos de ver, de escutar para ouvir, projetando menos o que já sabemos ou supomos fazer, e nos abrindo à positividade desafiadora do evento em sua contingência: ação, protagonismos reconfigurando arenas e relações. O ponto a destacar é o seguinte: explicações que funcionam como meras consagrações do que já se sabe –ou se supõe saber—não produzem conhecimento. Se o propósito é conhecer, devemos buscar a compreensão autorreflexiva, a desnaturalização das imagens já constituídas e das descrições correntes. Até porque, nesse campo, todo esforço de entendimento, toda interpretação é também intervenção, é também ação social, uma vez que os intérpretes participamos da atribuição de significado aos fatos. Portanto, a atitude amiga do conhecimento deve exercitar os limites do saber e, onde há limites, há pelo menos dois espaços, ou seja, para abordar o que ignoro, devo afirmar o que sei, ou julgo saber.

Contemplemos o objeto que nos interroga, tanto quanto o interrogamos: os eventos em que milhares ocupam as ruas de várias cidades brasileiras, protestando contra o aumento de tarifa do transporte coletivo. O que ousaria dizer que sei a seu respeito? O que não sei?, ou melhor, que boas perguntas posso formular para as quais não disponho de respostas?

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