PICICA: "Como sabemos, o processo violento de higienização social remonta às próprias bases de constituição da nação brasileira. Nosso país nasceu da violência, tornou-a institucionalizada, e agora banalizada. Não é por acaso que assistimos às diversas exposições de cadáveres na hora do almoço e pouco nos chocamos com isso. A violência assumiu uma centralidade tão grande que passou a ser a principal forma de lidar com a diferença. Habita o imaginário da população em geral a noção de que a segurança e a pluralidade constituem duas dimensões inversamente proporcionais. É mais ou menos isso que mostra o estudo de vários autores do urbanismo, apontando para o problema de se pensar a cidade como um corpo consensual e harmônico. De certa maneira, a cidade que está sendo idealizada para Copa é mais do espetáculo do que da democracia, mais do consumo do que da cultura."
O cinismo do discurso securitário
22/06/2013
Por Eledison de Souza
“A presença dos
usuários de crack, das prostitutas e dos subalternos em geral, é algo
de extrema importância para o espaço público. Reforça aquilo que todos
nós brasileiros já sabemos há um bom bocado de tempo: não temos uma
democracia consolidada.”
Por Eledison de Souza Sampaio
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
(Bertold Brecht)
Existe um cinismo no discurso securitário atual. Certamente, uma dose
de cinismo é importante na vida, principalmente no relacionamento
amoroso, já dizia Nelson Rodrigues. No entanto, a perspectiva assumida
aqui é a do cinismo em sua dimensão eminentemente negativa, a de quando,
mesmo ensejando violências, assume a faceta de algo positivo e
necessário.(Bertold Brecht)
No mundo contemporâneo, os limites entre segurança e violência estão cada vez mais tênues. É assim que o estado, através de seu aparelho policial, invade os bairros periféricos das cidades brasileiras e deixa um saldo terrível de mortos e feridos. É em nome da segurança que o Estado de São Paulo decretou a internação compulsória dos usuários de crack. Nesse caso, verifica-se um dos efeitos mais controversos da Copa do Mundo de 2014. A percepção dos que são a favor da “limpeza social” vai no sentido de que o estado estaria protegendo os “anormais” de sua situação de anormalidade. O argumento dos que são contra, e aqui nos posicionamos, tende a observar essa medida dita “resolucionária” do Estado de São Paulo como cínica e ineficaz, principalmente por ignorar as formas de poder arcaicas que geraram os problemas de violência que vive a cidade.
Como sabemos, o processo violento de higienização social remonta às próprias bases de constituição da nação brasileira. Nosso país nasceu da violência, tornou-a institucionalizada, e agora banalizada. Não é por acaso que assistimos às diversas exposições de cadáveres na hora do almoço e pouco nos chocamos com isso. A violência assumiu uma centralidade tão grande que passou a ser a principal forma de lidar com a diferença. Habita o imaginário da população em geral a noção de que a segurança e a pluralidade constituem duas dimensões inversamente proporcionais. É mais ou menos isso que mostra o estudo de vários autores do urbanismo, apontando para o problema de se pensar a cidade como um corpo consensual e harmônico. De certa maneira, a cidade que está sendo idealizada para Copa é mais do espetáculo do que da democracia, mais do consumo do que da cultura.
A presença dos usuários de crack, das prostitutas e dos subalternos em geral, é algo de extrema importância para o espaço público. Reforça aquilo que todos nós brasileiros já sabemos há um bom bocado de tempo: não temos uma democracia consolidada. Fazer desaparecer esses desviantes ou subalternos das ruas é uma forma de forjar uma cidade segura e feliz, onde os “verdadeiros cidadãos” se divertem nos seus grandes templos de consumo.
O capitalismo é um circuito de poder tão instigante que fez com que hoje também a segurança se tornasse um produto. Por outro lado, se isso aconteceu, é porque interiorizamos a violência e, junto com ela, a paranóia do medo e da insegurança. Isso explica a expansão descentralizada e desordenada das câmeras de vigilância na cidade e, como consequência a sua banalidade, bem expressa pelo fato de termos que sorrir enquanto estamos sendo filmados.
A lógica dos dispositivos de vigilância e segurança é a de proteger o dito “cidadão de bem” daquele a quem o estado nega a cidadania. Através da vídeo-vigilância o estado pode detectar aqueles que se destacam do fluxo na multidão. Pode, assim, fazer com que a presença dos indesejáveis seja plenamente vigiada e guardada, para quando da sua conveniência, confiná-los em seus criadouros especializados.
Alguns diriam que violência maior seria o estado deixar as populações continuarem em situação de rua. Mas esse argumento é superficial e, com certeza, esconde um racionalismo/individualista/moralista bem devastador. Essa maneira de pensar aponta um aprisionamento intelectual e, além disso, uma desvalorização das utopias; um pensar rasteiro que pretende reduzir a cidade e a cultura ao institucionalizado, ao limite do que é possível.
O discurso securitário, amplamente apoiado na lógica consumista, é cínico por sintetizar os problemas históricos de pobreza e desigualdade social por que passou e ainda passa a sociedade brasileira. O discurso da segurança tende a esconder uma degradação substancial da esfera pública no Brasil. Com a questão da internação compulsória dos usuários de crack, uma lição fica bem clara: muitas vezes, a busca por segurança, pode ser por si só, uma fonte geradora e legitimadora da violência.
Não podemos, porém, jogar a toalha e desistir de encarar o problema. Cabe-nos criticar essa cultura da violência, trabalhar para desmontar algumas ilusões e armadilhas que estão subjacentes ao discurso securitário. Ah, e só para não esquecer: “A Copa do Mundo não é nossa”!
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Eledison de Souza Sampaio é mestrando em Desenho, cultura e interatividade pela Uefs
Fonte: Rede Universidade Nômade
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