PICICA: "Apesar da tentação de entrarmos no jogo da mídia
corporativa e de parte da esquerda de encontrarmos, dentre os
manifestantes, culpados para que se possa ser possível separar o joio do
trigo, encontrando vândalos ou golpistas de direita, faz-se necessário
antes termos em mente a positividade da multiplicidade que produziu a
multidão que tomou as ruas recentemente; e que não necessitamos de
instituições hierarquizadas para organizar nossas manifestações e menos
ainda da mídia corporativa para nos dizer quem somos ou deveríamos ser e
fazer."
ALGUMAS NOTAS SOBRE CONFLITO, PRODUÇÃO DE DIFERENÇA, MULTIDÃO E DEMOCRACIA NAS RECENTES MANIFESTAÇÕES; E A ATUAÇÃO DA MÍDIA CORPORATIVA E DA ESQUERDA NESSE ESPAÇO E TEMPO
27/06/2013
Por Bruno Tarin
TEXTO POR BRUNO TARIN
Engana-se terrivelmente quem pensa que para o
exercício da democracia é necessário exilar, anular e extirpar o
conflito e a produção de diferença. Engana-se ainda mais quem só vê
conflito na hora que manifestantes entram em confronto com a polícia, ou
quando lançam sua indignação e revolta contra símbolos do poder, e
dessa maneira se diferenciam da normalidade e diferenciam a própria
normatividade. O conflito e a diferença são as moradas do exercício da
democracia, sem o conflito e a diferença – e o exercício da liberdade
que sempre os acompanha – não há democracia, pois estaríamos todos
condenamos a vivermos presos ao já constituído, à imobilidade e à
totalização unificante. O conflito e a diferença são as linhas que
constroem os espaços onde emergem as possibilidades de criação de novas
maneiras de viver, de constituir novos rumos para a democracia. O
conflito conjugado com a produção de diferença pode ser entendido como a
força que alavanca as possibilidades de fugir e ir sempre além da
tentação de tornar democracia sinônimo de poder de coerção e de capital.
A separação feita entre manifestantes e vândalos,
levada a ferro e fogo, ou melhor, a gás e borracha, pelo poder executivo
retroalimentada pela mídia corporativa durante as recentes
manifestações, faz parte do violento jogo de tentativa de anulação do
conflito e produção de diferença no exercício da democracia. Da mesma
forma é a exigência – feita por essa mesma dobradinha mídia
corporativa/poder executivo – de que a multidão presente nas ruas
reivindique e produza pautas claras, unificadas e que possam ser
facilmente apropriadas e negociadas nos clássicos espaços da política
partidária. A tentativa de anulação do conflito e da diferença passa,
dessa maneira, tentando produzir duas grandes separações: uma é a
produção do sentimento de que existe um movimento legítimo que busca a
“Paz”, enquanto uma minoria de baderneiros violentos se aproveitam para
saquear lojas, atacar a polícia e depredar prédios públicos e
históricos. A outra separação é que existe uma minoria “consciente” e
uma grande maioria de pessoas que participaram das manifestações sem
saber direito porque estavam ali, sendo assim essa “massa disforme”
ameaça tornar-se uma arma para o avanço dos golpistas reacionários. No
primeiro caso a solução encontrada, tanto pela mídia corporativa quanto
pelo poder executivo, é clara e explícita: imposição de autoridade e uso
de força repressiva sobre as “maças pobres” para conter o golpe dado
sobre a normalidade, a lei e a ordem. No segundo caso, a solução não é
tão visível mas nem por isso menos palpável: organização dos
manifestantes em pautas totalizantes e unificadas, ou seja, transformar a
multidão que tomou as ruas em um monólito, enquadrando-a de maneira que
possa dar-lhe uma forma que se encaixe no espaço, já pré-determinado,
da política representativa e da produção de consensos – o que alguns
insistem em chamar de democracia. A partir dessas duas grandes
separações que a mídia corporativa opera o seu jogo clássico: julgando o
bom e o mau e formando opinião, ou em outras palavras conscientizando e
organizando a massa. Separações que da minha perspectiva, diga-se de
passagem, são o verdadeiro golpismo. Contudo, essas separações não são
somente produzidas pela mídia corporativa, elas também são utilizadas
por uma esquerda acomodada em ocupar o poder sem a participação ampla e
irrestrita da população, uma esquerda que vêm se distanciando das lutas e
da vida fora dos espaços tradicionais e institucionais de poder, uma
esquerda que parece ter esquecido - mas que está sendo lembrada – que
suas planificações e pacificações não compõem e transformam nada sem a
presença dos corpos que ocupam cotidianamente ruas e estradas de terra
ao invés de gabinetes e salões.
A esquerda, diante do tempo e espaço atual, necessita
reconhecer e lidar com o fato que a multidão que emergiu durante as
recentes manifestações é dotada de um princípio auto-formativo, ou seja,
a multidão ao criar está ao mesmo passo se criando. Em movimentos de
alta velocidade e numa espiral virtuosa a multidão, composta pela
diferença, através do conflito transforma e se transforma
autoorganizado-se. No estrato do sentimento de autonomia de instituições
já constituídas está ocupando progressivamente as ruas do Brasil,
delineando em movimento os caminhos de novas instituições e de uma nova
democracia. Analisar e avaliar as recentes manifestações a partir de
pautas específicas e categorias não é mais materialmente possível e
mesmo desejável, afinal o que se viu nas últimas semanas foi a luta
por melhores condições de vida em seus mais múltiplos aspectos e,
principalmente, por diferentes modos de vida que se materializam na
desconstrução de certos tipos de relações de poder codificadas, para a
afirmação de outras relações mais horizontais e democráticas, relações
estas que tem sua finalidade e método o desejo de transformação e
participação do governo. Trata-se, portanto, para essa esquerda que
vimos nos últimos tempos assumir uma posição arrogante e autoritária,
urgentemente, rever suas posições e acelerar a guinada rumo uma
radicalização democrática e uma democratização radical. Com efeito,
trata-se de afirmar e embarcar no caráter conflituoso e constituinte da
multidão e das diferentes – até mesmo contraditórias – incontáveis e
incomensuráveis lutas que marcam as vidas de todos aqueles que recusam
viver sobre o domínio da violência institucionalizada – criminalização
da pobreza e da liberdade – e das segmentações produzidas pelas
desigualdades econômicas, políticas e sociais.
No tempo e espaço – atravessados pelo levante da qual
somos todos parte e testemunho mesmo os que não foram às manifestações –
emergem as possibilidades para todos e não só para os partidos,
políticos e militantes de esquerda – que estão em um grau ou outro no
governo e no Estado – fugirmos e irmos além da neutralização do conflito
e da diferença. Passar do estrato da neutralização desses elementos
para um estrato de sua afirmação como primordiais para o exercício pleno
da democracia. Irmos além da atuação da mídia corporativa e de uma
parte da esquerda que não mostram, debatem e atuam sobre as verdadeiras
violências as quais somos, cotidianamente, expostos e que sentimos
diretamente sobre nossos corpos. Violências que sem o conflito e a
diferença como bases de uma nova composição de governo e de
radicalização democrática e democratização radical não poderão ser
transformadas. A violência de sermos submetidos a viver de salários ou
de projetos que nos precarizam, ou seja, a violência da exploração; que
são ditadas de forma verticalizada políticas econômicas
desenvolvimentistas; que partidos políticos – a política representativa –
não tem, a algum tempo, nenhuma ancoragem com a população a não ser
eleitoral; que tentam transformar nossos destinos e vidas em negócios
extremamente lucrativos para políticos e empreiteiras; que a polícia é
extremamente violenta e passeia com os bicos dos fuzis para fora das
janelas de seus carros produzindo um estado de medo generalizado; que
são feitas chacinas no campo e nas favelas induzidas pela mídia
corporativa através do sentimento de ódio aos pobres, negros e
indígenas; que a especulação imobiliária está nos expulsando de nossas
casas; que os novos regimes trabalhistas e o sistema financeiro estão
nos afogando em dívidas; que o sistema de transporte público é uma
verdadeira máfia que junta Estado e mercado etc.
Apesar da tentação de entrarmos no jogo da mídia
corporativa e de parte da esquerda de encontrarmos, dentre os
manifestantes, culpados para que se possa ser possível separar o joio do
trigo, encontrando vândalos ou golpistas de direita, faz-se necessário
antes termos em mente a positividade da multiplicidade que produziu a
multidão que tomou as ruas recentemente; e que não necessitamos de
instituições hierarquizadas para organizar nossas manifestações e menos
ainda da mídia corporativa para nos dizer quem somos ou deveríamos ser e
fazer. Falando, especificamente, sobre as manifestações da qual
participei, posso afirmar que os confrontos ocorridos no Rio de Janeiro
durante as manifestações de 17 e 20 de junho não foram atos isolados de
vândalos, para ver isso basta atentarmos para o fato que os principais
alvos dos manifestantes foram prédios públicos, bancos e a própria
polícia. Não é por acaso que foram estes os alvos, afinal estes são os
maiores símbolos e atores da opressão e da violência a qual somos
submetidos todos os dias, símbolos máximos da dupla mafiosa
Estado/mercado – base da revolta generalizada expressa por todos os
manifestantes de diferentes formas. Cantar o hino e pintar a cara de
verde e amarelo também não me parecem ser uma demonstração da ascensão
do fascismo revigorado por uma massa disforme tropicalizada, e sim uma
forma de se manifestar daqueles que não estão acostumados ou não desejam
as práticas militantes da esquerda, mas nem por isso são despolitizados
ou incapazes de se manifestar criticamente, e levado a última instância
de governar a si mesmo. Estas são expressão da multidão assim como as
cirandas, a entrega de flores aos policiais, as bandeiras e cartazes, a
carnavalização, os carros de som com palavras de ordem, as bandeiras
etc. Expressão da potência da diferença conflituosa que marca a multidão
que ocupa todos os espaços e tempos que convivemos em comum.
As manifestações não começaram e não se encerram em
junho de 2013 – apesar desses dias terem entrado para a história do
Brasil e com certeza terem marcado nossos corpos – novas manifestações
virão, novos desafios e impasses aparecerão, e a força da multidão se
mostrará, em grande parte, em não aderir as grandes separações do
discurso conservador. Os corpos tropicais mestiçados encontraram a
maneira de penetrar o governo, agora é avançar buscando na produção de
diferença e conflito os caminhos para a autodeterminação de nossas vidas
e os novos rumos em movimento da democracia.
Fonte: Rede Universidade Nômade
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