junho 02, 2013

"Pessimista alegre x otimista desencantado", por Bruno Cava

PICICA: "Para o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a tarefa que se impõe hoje é conseguir acomodar no pensamento, ao mesmo tempo, a previsão (indiscutível?) de que o mundo já tenha acabado, com a ideia oswaldiana que a alegria é a prova dos nove. Como se pode viver alegre num mundo em extinção? Há algo de verdadeiramente pregnante no paradoxo, independente das condições de contorno da formulação."
 
Pessimista alegre x otimista desencantado
 


O pessimista alegre acorda de manhã com uma ressaca terrível. Um pilão de dor afunda-lhe a testa, os olhos estão inchados e vítreos e a língua adquiriu a consistência de uma toalha. Tem de ir trabalhar em trânsito de segunda-feira. Ele ri. É uma merda, mas é bom. Como viver no Rio de Janeiro, para Tom Jobim. O pessimista alegre compreende que a ressaca repõe, renovada, a festa de ontem. As crônicas e o pouco de prazer e loucura daquela noite restauram a serenidade, enquanto se prepara para mais um dia sair à rua. É um pessimista, mas desse afeto curtido como arte não brota a resignação. Tampouco lhe interessam as preguiças doces da melancolia. Renova-se para seguir lutando, certo de que quanto maior a ressaca, maior a alegria.

O otimista desencantado, na festa, não pára de pensar na ressaca. Não sai da cabeça a ideia de que terá de acordar cedo para trabalhar. Essa ideia o esmaga, inafastável. Ele quase não sorri. É bom, mas é uma merda. Como Nova Iorque, para Tom Jobim. O otimista desencantado nunca se ilude. Está feliz, mas resignado. Percebe que a vida lhe confere pequenos prazeres, apenas para furtá-los posteriormente. É otimista na medida em que valoriza essas pequenas joias, o que verdadeiramente vale a pena, sob o pano de fundo de uma existência insatisfatória. De que adianta agitar-se com barulho? A marcha da vida se dirige para um fundo opaco, aonde escoam todas as coisas e quaisquer felicidades. O fim é sempre a morte. Toda juventude acaba, soterrada por pás de escuridão. É difícil renovar-se, uma vez que quanto maior a festa, maior a ressaca. Mas ele continua lutando.

Militante, o pessimista alegre reconhece as derrotas. Compreende o cerco se fechando sobre si, a pouca eficácia das ações e organizações. Exaspera-se frequentemente. Sente-se sozinho, prova o sabor das decepções, e não sabe se, no fim, venceremos. Provavelmente não. E ele ri. Mas não afirma que é assim mesmo. Não se recolhe na interioridade, nem passa a cultivar cosmovisões privadas contra o entusiasmo ignorante das massas. Jamais fatalista ou preguiçosamente melancólico. Se é assim, ou talvez por que seja assim, por isso mesmo, é preciso continuar, é preciso morrer tentando. A alegria, afinal, está na luta mesmo, nos seus dias de loucura e liberdade. Industriosamente, ele continua lutando, uma triste figura.

O otimista desencantado, por sua vez, enxerga nas derrotas o gérmen da vitória. Entende que, de erro em erro, se errará mais e melhor, até o acerto derradeiro. De derrota em derrota, até a vitória final. Mas nunca a vitória sem a derrota. Desdenha silenciosamente dos jovens que acreditam que o futuro esteja logo ali na esquina, inebriados por uma facilidade revolucionária que só existe na utopia. Porém, ultimamente desiludido, está preparado para perder, mesmo quando se reúnem as condições necessárias para vencer. Lamenta-se que, vencendo, já terá perdido, pois o aliado de hoje é o inimigo de amanhã. Será preciso matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. O otimista desencantado faz, mas jamais se confunde com o que faz. Não se apaixona pelo que faz. Uma disciplina estoica move o seu ânimo, ciente das dores que terá de passar a cada vez. Industriosamente, ele continua lutando, uma figura triste.

————– PS. François Zourabichvili (que se matou) atribui a postura pessimista alegre a Gilles Deleuze (que, doente terminal, também se matou), e o otimismo desencantado a Antonio Negri (que foi aos porões do inferno e voltou). Para Deleuze, o sentimento trágico do mundo não consiste unicamente em ter de defrontar-se com o sofrimento e a morte, mas, sobretudo, no fato degradante de só haver este mundo, o mesmo dos estúpidos. Dizer sim a este mundo só pode ser um ato de intensa alegria diante do intolerável. Para Negri, outro pessimista alegre, a passione não depende propriamente da vitória ou da derrota, e não está associada a alguma teleologia para a história. Está associada, sim, ao desejo e à cupidez que impelem as pessoas a cooperar, imaginar juntas e construir a própria liberdade. Não garantem muita coisa, senão o sentido preenchido por uma força interna que nem mesmo prisões, mortes e campos podem calar. Para o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a tarefa que se impõe hoje é conseguir acomodar no pensamento, ao mesmo tempo, a previsão (indiscutível?) de que o mundo já tenha acabado, com a ideia oswaldiana que a alegria é a prova dos nove. Como se pode viver alegre num mundo em extinção? Há algo de verdadeiramente pregnante no paradoxo, independente das condições de contorno da formulação.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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