junho 25, 2013

"Maracanã: o despertar da alma selvagem", por Richer de Souza

PICICA: "Muito recentemente, os estudantes de Porto Alegre se mobilizaram e conseguiram lograr êxito em suas reivindicações contra o aumento das tarifas do transporte público. Essas mesmas reivindicações se alastraram ao centro do país. Porém, frente à repressão lastimável e desastrosa da polícia militar de São Paulo, que fazendo jus ao nome de uma conhecida quadrilha do Rio Grande do Sul, utilizou inclusive da estratégia de atirar bala na cara de estudantes e jornalistas, a opinião pública brasileira se colocou fortemente ao lado dos estudantes e os protestos ganharam corpo. Assim, as reivindicações, até então restritas à qualidade dos serviços do transporte público, se multiplicaram e se disseminaram com muito mais força para a maior parte das grandes cidades do país."

Maracanã: o despertar da alma selvagem

24/06/2013
Por Richer de Souza


Os caras pintadas que importam são os índios — que podemos ser.
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Por Richer de Souza

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Eduardo Viveiros de Castro é um antropólogo brasileiro cujo trabalho se faz presente em alguns dos principais debates do cenário intelectual contemporâneo. A partir de suas pesquisas de campo com os povos indígenas, sobretudo os da região amazônica, elaborou os conceitos de perspectivismo ameríndio e de multinaturalismo. Em linhas gerais, ele afirma que o multinaturalismo caracterizaria a cosmovisão ameríndia, na qual o conceito de humano pode se referir tanto a nós mesmos, como também aos animais e até mesmo a rios, montanhas e construtos e utensílios em geral. Ou seja, para além da clássica divisão entre natureza x cultura, o multinaturalismo afirma que potencialmente tudo é humano e, portanto, que em todas as coisas pode haver a presença de espírito, alma ou intencionalidade. Mas, o que isso tem a ver com os recentes protestos sociais no Brasil?

Muito recentemente, os estudantes de Porto Alegre se mobilizaram e conseguiram lograr êxito em suas reivindicações contra o aumento das tarifas do transporte público. Essas mesmas reivindicações se alastraram ao centro do país. Porém, frente à repressão lastimável e desastrosa da polícia militar de São Paulo, que fazendo jus ao nome de uma conhecida quadrilha do Rio Grande do Sul, utilizou inclusive da estratégia de atirar bala na cara de estudantes e jornalistas, a opinião pública brasileira se colocou fortemente ao lado dos estudantes e os protestos ganharam corpo. Assim, as reivindicações, até então restritas à qualidade dos serviços do transporte público, se multiplicaram e se disseminaram com muito mais força para a maior parte das grandes cidades do país.

Agora, as ruas de centenas de cidades brasileiras estão sendo diariamente tomadas por uma massa de jovens que encontraram a oportunidade ideal para manifestar todo o tipo de descontentamento com o atual cenário político brasileiro, como vemos no rechaço aos partidos tradicionais que são expressos tanto pelos que se autodenominam de a-partidários como pelos anti-partidários. Bem como, para fazer um número maior de reivindicações como, por exemplo, mais investimentos na saúde e na educação e que são expressas nos cartazes que exigem “estádios e hospitais padrão FIFA”. 

Entretanto, uma parte desses manifestantes, a minoria, está se aproveitando da grande dimensão do movimento e do anonimato proporcionado pela multidão para praticar atos de vandalismo como o incêndio de carros e ônibus e o saqueio de lojas. Boa parte desses atos só foram possíveis por causa do recuo, a meu ver estratégico das polícias militares, que, frente ao impacto da divulgação dessas imagens na mídia, esperam recuperar o apoio perdido da opinião pública para em seguida agirem com ainda mais força e legitimidade.

Qual serão os resultados práticos desses protestos nas instituições sociais brasileiras? Não sabemos. O que parece claro é que estamos diante de um fenômeno social cuja dimensão está surpreendendo a todos. A sociedade, que nas últimas décadas caracterizou-se pela apatia e até mesmo pela recusa à cidadania parece ter enfim despertado. Entretanto, os últimos protestos foram palco de cenas insólitas onde em meio às manifestações, defensores de pautas ligadas aos setores mais radicais da esquerda, da direita, anarquistas e, pasmem, até mesmo fascistas vêem-se subitamente caminhando lado a lado. Não por acaso, um dos integrantes que ganharam mais destaque, o MPL (Movimento Passe Livre) acaba de anunciar a sua saída dos protestos de São Paulo. Além disso, reforçaram em nota que embora sejam a-partidários, jamais foram anti-partidários, pois perceberam a crescente apropriação do movimento pelos setores mais reacionários e ameaçadores à sociedade e à democracia.

Em 1950, o Brasil viu-se diante do famoso ‘Maracanazo”, no qual a derrota na final da Copa do Mundo para a seleção uruguaia emudeceu completamente a sociedade brasileira que até então estivera eufórica por estar sendo sede e finalista do campeonato mundial de futebol. Sessenta e três anos depois, esse mesmo estádio volta a ser sede, desta vez, da Copa das Confederações. Porém, e para a perplexidade da classe política brasileira, em lugar de a sociedade estar novamente eufórica como estivera em 50, agora, o que vemos é um rechaço majoritário aos gastos públicos envolvidos não somente nas reformas bilionárias desse estádio histórico, com também àqueles destinados à construção de novos estádios em cidades que também serão palco da Copa do Mundo de 2014.

Retomando Viveiros de Castro e o conceito de multinaturalismo, vimos que para os povos indígenas da região amazônica o mundo inteiro é constituído por um fundo de humanidade, no qual todas as coisas podem ter alma. Os seres humanos têm alma, os animais têm alma, uma montanha tem alma e, até mesmo, diríamos nós, um estádio de futebol pode sim ter alma. Na língua tupi, Maraca, termo que dá nome ao clássico estádio, refere-se a algo que chamaríamos de chocalho, é um instrumento comumente utilizado nos festejos e rituais das tribos. Já em nossa sociedade, o Maraca, ou melhor, o chocalho, costuma ser utilizado para distrair, mas também para despertar os bebês. Talvez pela força implacável da fortuna que já nos alertara Maquiavel, o estádio Maracanã, que já foi o símbolo maior de um episódio de emudecimento e de perplexidade do Brasil, em nossos dias, parece ter contribuído para nos depertar e para que saíssemos às ruas celebrando e expressando por meio de palavras de ordem nossas reivindicações políticas e sociais.

Quem ainda seria capaz de duvidar de que os estádios também podem ter alma? Nosso povos indígenas já sabiam disso há muito tempo. A sociedade brasileira, assim como fizeram Haddad, Alckmin, Fortunatti, Paes e cia. nas recente reivindicações por melhorias no transporte público, é que insiste em continuar a ignorá-los. Os mais atentos, porém, parecem já ter escutado, junto ao ritmo do Maraca, vozes provenientes de caras pintadas – desta vez não de verde e amarelo, mas sim de urucum, apelando para que voltemos nossa atenção e protestos também à construção da Usina de Belo Monte. Mas, o que mesmo essas almas selvagens estão nos dizendo?

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Richer de Souza é doutorando em filosofia política e ética da PUC-RS

Fonte: Rede Universidade Nômade

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