PICICA: 'Conheci' Raul Seixas quando caminhava pela Marechal Deodoro. Havia ali, ao lado do prédio dos Correios e Telégrafos, um desses casarões esquartejados para caber o máximo de lojinhas de tudo que era quinquilharia que aportasse na nascente Zona Franca de Manaus. Numa delas, uma loja de discos anunciava, em tons decibéis até então aceitáveis, as novidades da indústria fonográfica, que estourava no Brasil. A primeira audição de "Ouro de Tolo" me arrebatou em plena calçada. Entrei e comprei o disco compacto que mudaria o cenário musical brasileiro da época. Estávamos em 1973. Já havía sido 'apresentado' a Raul em Coari por uma roqueira inveterada ali residente, numa viagem com meus colegas de turma Abner e Nália, filha do deputado Nathanael Bento Rodrigues, cunhado do poeta Thiago de Mello. Naquela época, o município ainda não engordara o noticiário político e policial com assassinatos, corrupção e pedofilia. Sequer se prospectava petróleo. Hoje a cidade é irrigada a royaltes do 'ouro negro' - fonte do 'bem e do mal'. Muito tempo depois - início dos anos 1980 - Natanael, homem de temperamento amável, crente dos antigos, da velha e boa Primeira Igreja Batista, egresso do MDB e filiado ao PDS- ex-ARENA-futuro PFL-futuro DEM (vixe!) ficaria 'tiririca' comigo. Tudo porque como diretor clínico do velho hospício - atualmente em processo de fechamento (já vai tarde!) -, resolvi levar à posse do novo Secretário de Saúde do Estado, no governo José Lindoso, médico Tancredo Castro Soares, um grupo de internos do hospício amazonense que produziam verduras num projeto de reabilitação psicossocial. Tancredo, além de ter sido uma das poucas autoridades de saúde a por os pés no casarão da Constantino Nery e dialogar com os internos, foi quem, junto com o saudoso Secretario de Saúde Francisco de Paula, reconheceu a importância dos primeiros passos da Reforma Psiquiátrica no Amazonas, quando nem sabíamos que estávamos a fazer história. Quem 'muda casaca', muda de discurso, não é verdade? Pois eis que o ex-oposicionista, agora defensor governista, ao encontrar-me na 'fila do beija-mão', furioso, em meio a autoridades 'empaletozadas' e madames 'empoadas, saiu-se com um: "Tu não sabes viver, meu caro!". Naquela época, amados(as) leitores(ras), andar de braços dados com 'doidos' em festa do hihg-society dava nisso: uma explosão da racionalidade conservadora; a mesma que acreditava que o povo não sabia votar, não sabia o que queria, e coisas do gênero. Vivíamos as vésperas da primeira eleição democrática para os governos estaduais, numa democracia que absorveria a ditadura militar num jogo de interesses que se traduziam em ideologias ou não. "Ouro de Tolo" é uma crítica demolidora de Raul Seixas contra a cultura da classe média brasileira. Quando essa cultura se infiltra na política temos uma regressão da racionalidade cidadã, atualmente exacerbada pelo coronelismo eletrônico e religioso. Esse dispositivo vem sendo perigosamente administrado pelo PT. Vai dar merda... se o rumo não for corrigido!
Há 40 anos, a estreia solo de Raul Seixas: Krig-ha, bandolo!
Milton Ribeiro
No dia 7 de junho de 1973, um sujeito magérrimo, de barba e óculos escuros saiu pelas ruas do Rio de Janeiro entoando uma estranha canção canto-falada que começava assim:
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês…
Naqueles anos, qualquer aglomeração era vista com desconfiança, mas o cortejo comandado por Raul Seixas e seu parceiro Paulo Coelho – ele mesmo, o alquimista – não foi incomodado. Apesar da letra fazer uma demolidora crítica à classe média, a intenção estava longe de ser política. Raul desejava promover aquele que é hoje um clássico do rock brasileiro, o LP Krig-ha, bandolo!, que marcava a estreia de Raul em carreira-solo. A canção que ele cantava, Ouro de Tolo, já era conhecida por ter sido lançada meses antes em compacto simples. O disco marcou época e trazia outros clássicos como Mosca na Sopa, Metamorfose Ambulante e Al Capone.
A passeata tem um ar modesto de coisa de última hora, mas a impressão é falsa. Não houve improviso. As autoridades foram avisadas do que ocorreria, assim como a imprensa, que aguardava o artista a fim de fazer a cobertura. Por trás do ato público, estava a todo-poderosa gravadora Philips, que mantinha contratos com todos os grandes artistas nacionais com a exceção de Roberto Carlos, sempre fiel a outra multinacional, a CBS, a gravadora dos artistas ditos de segunda linha, com nomes ligados à Jovem Guarda como Jerry Adriani, Wanderléa, etc.
Krig-ha, bandolo! era um disco de estreia, mas estava longe ser um trabalho de um inexperiente. Raul Seixas (1945-1989) já era um homem do meio e não apenas como músico. Na década de 60, o grupo Raulzito e os Panteras acompanhava os artistas da Jovem Guarda em suas excursões por Salvador. Depois, a partir de 1970, Raul Seixas tornou-se um importante produtor e compositor para os artistas populares da CBS. Porém, após gravar um disco com Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Eddy Star, recebeu um ultimato da CBS. Deveria escolher entre a carreira de produtor ou de cantor. Raul não gostou da pressão e cedeu aos convites da Philips, na pessoa de Roberto Menescal.
Ele chegou à nova empresa como um respeitado produtor e compositor vindo da concorrência. Como tal, foi-lhe dada total liberdade para criar seu primeiro disco. E desta liberdade nasceu Krig-ha, bandolo! E tome liberdade! O estranho título veio de um gibi do Tarzan, a foto da capa ignorava o padrão da bela foto posada, a faixa de abertura trazia Raul cantando rock aos 9 anos de idade, aos berros e desafinado, e as canções traziam uma curiosa receita que misturava baladas, rock, súbitas mudanças de ritmos, humor e sarcasmo.
Logo após a abertura, com o menino Raul Seixas esforçando-se para cantar Good Rockin` Tonight, vêm duas canções que se tornaram sucessos e clássicos instantâneos: o meio rock, meio ponto de macumba Mosca na Sopa e o hino Metamorfose Ambulante.
Hoje, com a celebridade de Paulo Coelho como escritor, o público costuma atribuir a ele todas as letras das músicas de Raul. Mas as letras mais significativas de Krig-ha, bandolo! foram escritas pelo próprio Raul Seixas, casos de Ouro de Tolo, Mosca na Sopa e Metamorfose Ambulante. Das principais canções do disco, apenas Al Capone tem a parceria de Coelho, cuja letra termina com uma afirmação pessoal e levemente estranha. Coisas do mago:
Eu sou astrólogo
Eu sou astrólogo
Vocês precisam acreditar em mim
Eu sou astrólogo
Eu sou astrólogo
E conheço a história do princípio ao fim.
A repercussão de Krig-ha, bandolo! foi imensa. Há poucos anos, a revista Rolling Stone elegeu os Cem Maiores Discos da Música Brasileira e lá estava ele em 12º lugar. Rapidamente, Raul Seixas se tornou uma estrela nacional e a imprensa e os fãs da época foram conhecendo um outro lado do cantor e compositor. No ano seguinte, ele e Paulo Coelho criaram a Sociedade Alternativa, uma entidade baseada nos ensinamentos do bruxo inglês Aleister Crowley, onde a principal lei é “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei”. Em todos os seus shows, Raul divulgava a Sociedade. A ditadura militar desconfiou e a dupla foi presa pelo DOPS, pensando que a tal Sociedade Alternativa fosse um movimento contra o governo.
O disco foi gravado nos estúdios da Philips no Rio de Janeiro e contou com produção musical e direção artística do próprio Raul Seixas e de Marco Mazzola. Sua duração é de apenas 29 minutos, mas que 29 minutos!
Ficha técnica de Krig-Ha, Bandolo!
Gravadora: Philips (hoje Universal Music)
Gravado em 1973, no Rio de Janeiro
Produção de Marco Mazzola e Raul Seixas
Duração: 28’56″
Músicas:
1. “Good rockin’ tonight” (introdução) [Roy Brown]
2. “Mosca na Sopa” (Raul Seixas)
3. “Metamorfose Ambulante” (Raul Seixas)
4. “Dentadura Postiça” (Raul Seixas)
5. “As Minas do Rei Salomão” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
6. “A Hora do Trem Passar” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
7. “Al Capone” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
8. “How Could I Know” (Raul Seixas)
9. “Rockixe” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
10. “Cachorro Urubu” (Raul Seixas/Paulo Coelho)
11. “Ouro de Tolo” (Raul Seixas)
Fonte: Sul 21
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