junho 13, 2013

"Totalitarismos e democracia e seu nexo político em Agamben", por Márcia Junges (Entrevista com o filósofo Edgardo Castro)

PICICA: "IHU On-Line - Em que aspectos as noções de autonomia e liberdade deveriam ser reinterpretadas a partir do “poder-do-não”?

Edgardo Castro - É uma pergunta interessante, mas respondê-la de maneira adequada exige que se escreva um livro, e bastante volumoso. A primeira coisa que eu diria, de todos os modos, é que, para introduzir a noção de potência-do-não ou de impotência, Agamben se refere a uma tradição, o próprio Aristóteles  e o aristotelismo averroísta, que pensavam em termos muito diferentes aos que servem para a Modernidade – penso em Kant , por exemplo – para falar de liberdade ou de autonomia.

Em segundo lugar, eu esclareceria que a potência-do-não ou a impotência não é uma noção negativa. Não é sinônimo de privação ou de carência. Potência-do-não ou impotência significam, na perspectiva de Agamben, que o homem, posto que se trata sobretudo dele, não só pode fazer determinadas coisas, mas também não fazê-las. Retomando o exemplo mais clássico, um arquiteto pode fazer uma casa (a casa refere-se a uma potência), mas também pode não fazê-la. Nesse caso, ele tem uma impotência, uma capacidade de não fazê-la. Quem não é arquiteto, ao invés, não tem nenhuma dessas capacidades. Como vemos, a impotência ou o poder-do-não é, em si mesma, uma capacidade, uma das forma da potência.

Em terceiro lugar, levando em conta o que eu assinalava no início, isto é, que é preciso marcar as diferenças, retomando um tópico clássico, entre os Antigos e os Modernos, eu diria que as noções de liberdade e de autonomia podem ser interpretadas, embora não necessariamente, a partir dessa capacidade que o homem tem de passar ou não ao ato, de fazer e de não fazer. O poder-do-não é, nesse sentido, uma afirmação da própria subjetividade." 


Totalitarismos e democracia e seu nexo político em Agamben

Edgardo Castro pontua que nem sempre as maiorias têm razão, e nem sempre a razão é das maiorias. Conceito de “potência-do-não” é de grande importância no pensamento desse autor, e deve ser compreendido como uma “afirmação da própria subjetividade”.

Por: Márcia Junges | Tradução: Moisés Sbardelotto


“Que a democracia ou, ao menos, certas formas democráticas podem se tornar totalitárias não é simplesmente uma questão teórica, mas sim um exemplo histórico. Hitler e Mussolini chegaram ao poder mediante mecanismos democráticos. Em outras palavras, foram líderes consensualizados e com consenso”, afirma o filósofo Edgardo Castro na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Segundo ele, “se entendermos por totalitarismo, como defende Michel Foucault, a subordinação do Estado à vontade do líder ou chefe, podemos entender como a democracia pode ser, em determinadas circunstâncias, uma via de acesso a formas totalitárias de exercício do poder”. Sobre o conceito de “potência-do-não”, Edgardo Castro menciona que, na perspectiva de Agambem, o homem ode fazer certas coisas e escolher, inclusive, não fazê-las.

Edgardo Castro nasceu en 1962. É doutor em Filosofia pela Universidad de Friburgo, pesquisador do CONICET e professor da Universidad Nacional de San Martín. Tem trabalhado como professor em diversas universidades argentinas, e é profesor convidado no Istituto Italiano di Scienze Umane de Nápoles, na Universidad Federal de Santa Catarina e na Universidad de Chile. Suas publicações versam sobre a filosofia contemporânea, particularmente francesa e italiana. É um dos principais tradutores da obra de Giorgio Agamben ao espanhol. Entre seus livros, destacamos Pensar a Foucault (Buenos Aires: Biblos, 1995), Giorgio Agamben. Una arqueología de la potencia (Buenos Aires: Unsam Edita, 2008), Diccionario Foucault (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2012) e Introduçâo a Agamben (Belo Horizonte: Autêntica, 2012). Em 2010 foi um dos conferencistas do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como podemos compreender que, para Agamben, lei e exceção se sobrepõem? 

Edgardo Castro - Um dos pontos centrais do pensamento de Agamben é se interrogar sobre o funcionamento do sistema jurídico nas sociedades contemporâneas. Nesse sentido, sem dúvida, é surpreendente que o que pode ser considerado como o acontecimento político dominante do século XX – a produção sistemática e industrial de morte nos campos nazistas de concentração e extermínio – teve como resguardo jurídico as leis de Nuremberg. Em outras palavras, o extermínio de milhões de pessoas por razões fundamentalmente biológicas foi, ao menos em parte, uma operação legal.

Este fato traz à tona o problema da relação entre a lei e a aplicação da lei. Com efeito, como assinala Agamben em Homo sacer I, a vigência da lei pressupõe uma decisão sobre quando ela se aplica e quando não, sobre qual é o caso normal e qual, ao contrário, é a exceção, sobre o incluído e o excluído. A tese de Agamben é que toda decisão soberana pressupõe uma exclusão, uma exceção. Mas, na sociedade contemporânea, como mostra a experiência histórica do nazismo, a zona de exclusão é cada vez maior, a ponto de sobrepor-se com a de inclusão. Em seu bunker, assediado pelas tropas soviéticas, Hitler, com efeito, decidiu o extermínio do próprio povo alemão, para cuja proteção ele havia previamente decidido exterminar os judeus, os ciganos, os deficientes etc.

IHU On-Line - Em entrevista  à nossa revista em 2010, o senhor afirmou que governar no Ocidente é exercer o poder como exceção. Que exemplos dessa constatação poderiam ser apontados nos dias de hoje?

Edgardo Castro - Pode-se entender em vários sentidos a tese, sustentada por Agamben, de que o exercício do poder nas sociedades contemporâneas implica a decisão sobre a exceção, sobre, em última análise, o que está em relação com a lei ao ser posto fora dela. Guantánamo e as zonas de retenção dos aeroportos, com as diferenças que existem entre essas experiências, são exemplos disso. Trata-se, em suma, de espaços que, por lei, estão fora da lei, onde aqueles que se encontram neles não são cidadãos, por fim, pois estão submetidos a uma vontade que pode dispor deles, inclusive de sua vida, sem as garantias que são reconhecidas aos cidadãos, como a intervenção de um juiz, a publicização dos atos que lhes concernem politicamente etc.

Outro exemplo também é a tendência que pode ser vista como um dos desenvolvimentos da instituição jurídica do estado de exceção ou de sítio a governar por decreto, isto é, quando o Executivo assume as competências próprias do poder legislativo e inclusive do poder judiciário. A prática dos decretos-leis, dos decretos de necessidade e urgência, não só por razões de uma ameaça bélica, mas também por razões econômicas, certamente é frequente nos países ocidentais.

IHU On-Line - Em que aspectos as noções de autonomia e liberdade deveriam ser reinterpretadas a partir do “poder-do-não”?

Edgardo Castro - É uma pergunta interessante, mas respondê-la de maneira adequada exige que se escreva um livro, e bastante volumoso. A primeira coisa que eu diria, de todos os modos, é que, para introduzir a noção de potência-do-não ou de impotência, Agamben se refere a uma tradição, o próprio Aristóteles  e o aristotelismo averroísta, que pensavam em termos muito diferentes aos que servem para a Modernidade – penso em Kant , por exemplo – para falar de liberdade ou de autonomia.

Em segundo lugar, eu esclareceria que a potência-do-não ou a impotência não é uma noção negativa. Não é sinônimo de privação ou de carência. Potência-do-não ou impotência significam, na perspectiva de Agamben, que o homem, posto que se trata sobretudo dele, não só pode fazer determinadas coisas, mas também não fazê-las. Retomando o exemplo mais clássico, um arquiteto pode fazer uma casa (a casa refere-se a uma potência), mas também pode não fazê-la. Nesse caso, ele tem uma impotência, uma capacidade de não fazê-la. Quem não é arquiteto, ao invés, não tem nenhuma dessas capacidades. Como vemos, a impotência ou o poder-do-não é, em si mesma, uma capacidade, uma das forma da potência.

Em terceiro lugar, levando em conta o que eu assinalava no início, isto é, que é preciso marcar as diferenças, retomando um tópico clássico, entre os Antigos e os Modernos, eu diria que as noções de liberdade e de autonomia podem ser interpretadas, embora não necessariamente, a partir dessa capacidade que o homem tem de passar ou não ao ato, de fazer e de não fazer. O poder-do-não é, nesse sentido, uma afirmação da própria subjetividade.

IHU On-Line - Que nexos podem ser observados entre totalitarismos e democracia? Como podemos compreender esse paradoxo?

Edgardo Castro - Que a democracia ou, ao menos, certas formas democráticas podem se tornar totalitárias não é simplesmente uma questão teórica, mas sim um exemplo histórico. Hitler e Mussolini chegaram ao poder mediante mecanismos democráticos. Em outras palavras, foram líderes consensualizados e com consenso.

Pois bem, se entendermos por totalitarismo, como defende Michel Foucault, a subordinação do Estado à vontade do líder ou chefe, podemos entender como a democracia pode ser, em determinadas circunstâncias, uma via de acesso a formas totalitárias de exercício do poder. A democracia, com efeito, requer consenso para que o exercício do poder seja legítimo; mas, quando essa legitimidade prescinde da legalidade e, sobretudo, da divisão de poderes que define o sistema republicano, então, o consenso deixa de estar a serviço da democracia, embora, aparentemente, mantenha algumas de suas formas, e abre espaço para formas totalitárias.

A partir dessa perspectiva, a relação entre democracia e consenso passa, em última instância, pelo alcance e pelos limites ao consenso legitimante do exercício do poder. Em termos simples, nem sempre as maiorias têm razão, nem a razão é sempre das maiorias.

Pessoalmente, penso que a noção de hegemonia não foi politicamente feliz. Os governos que, para obter o consenso, promovem a inclusão social e, ao mesmo tempo, a exclusão política, para alcançar precisamente a hegemonia, são dificilmente conjugáveis com uma democracia plena.

IHU On-Line - Em que medida o campo como paradigma político moderno continua a ser uma categoria importante para compreendermos a política no Ocidente?

Edgardo Castro - É interessante notar como as categorias espaciais, o campo ou a globalização, por exemplo, passaram a ocupar o lugar que as categorias temporais frequentemente desempenharam no século XIX e na primeira metade do século XX. O campo de concentração, esse espaço que por lei encontra-se fora da lei, no qual por lei pode-se dispor da vida biológica dos homens, sem ser obrigado a responder a responder perante qualquer lei, serve, precisamente, para mostrar de maneira paroxística o que está em jogo na categoria de soberania, isto é, dispor da vida dos homens, como se fosse vida nua (nuda vita, diz Agamben), vida exposta à morte violenta.

IHU On-Line - Como podemos compreender o projeto filosófico de Agamben? Quais são suas obras fundamentais e o que está no horizonte desse pensador para os próximos anos em termos de pesquisas?

Edgardo Castro – A obra de Agamben ainda está em curso e, às vezes, o percurso da investigação, se for realmente uma investigação, não é totalmente previsível. É claro que 1995 representa um ano decisivo na sua obra. Com efeito, nesse ano foi publicado Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Agamben retoma, nesse trabalho, a noção de biopolítica, reintroduzida por Foucault em meados da década de 1970 e a qual, além disso, ele também havia dedicado três de seus cursos no Collège de France. Mas quando aparece o livro de Agamben, nenhum desses cursos de Foucault haviam sido publicados. Agamben retoma essa noção de Foucault, que até então não tinha a importância que nós hoje lhe reconhecemos, e a interpreta à luz da noção schmittiana de exceção soberana. O conceito de vida nua (nuda vita), a vida da qual podemos dispor porque não está protegida nem pelas leis dos homens nem pelas dos deuses, transforma-se em um tópico frequente de pensamento político.

A repercussão do livro, sem dúvida, contribuiu para que ele acabasse se tornando uma série da qual apareceram outros seis volumes: O que resta de Auschwitz, sobre o problema do testemunho dos sobrevivente do extermínio; Estado de exceção (São Paulo: Boitempo, 2004), que estuda precisamente as formas históricas e as dimensões filosóficas dessa instituição jurídica; O Reino e a Glória (São Paulo: Boitempo, 2011), que desloca a análise biopolítica da noção de soberania para as de governo e economia; O sacramento da linguagem (Belo Horizonte: UFMG, 2011), sobre a noção de juramento e a relação entre linguagem e política. E os mais recentes: Opus Dei: arqueologia do ofício (São Paulo: Boitempo, 2013) e Altíssima pobreza. Regole monastiche e forme di vita (Vicenza: Neri Pozza 2011). A série não está concluída, e uma análise sobre a noção de uso parece necessária.
Para além dessa série, há outros trabalhos do autor, a meu ver muito relevantes. Pessoalmente, me interessam muito A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006), um seminário sobre a noção de negatividade, em que aparece a problemática da pós-história e, pela primeira vez, a figura do homo sacer; e O tempo que resta (Torino: Bollati Boringhieri, 2000 ), sobre as concepções do messianismo, a modo de comentário à Carta aos Romanos de Paulo.

A obra de Agamben é ampla e variada, impossível de classificar ou de ordenar com as categorias acadêmicas das disciplinas, de um grande cuidado literário e, sem dúvida, apaixonante.

Leia mais...

Edgardo Castro já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira.

* Governar no Ocidente é exercer o poder como exceção. Edição 343, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/1aqgaVL

Fonte: IHU-online

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