PICICA: "Agora
que o governo praticamente acabou, e que o afastamento de Dilma
Rousseff se tornou inevitável, tem ganhado força por aí uma certa tese que coloca nos movimentos de junho de 2013 a "culpa" pelo golpe.
Não deixa de ser curioso e sintomático que esta tese esteja ganhando
força nas hostes de uma certa esquerda mais próxima da defesa do
governo. Este texto, contudo, é um esforço na tese contrária. Em
negrito, para que não falte clareza: não, Junho de 2013 não foi o estopim do golpe.
Os motivos para isso são vários e não são difíceis de entender.
Permitam-me refrescar a memória do pessoal. Senta que lá vem a história."
Junho e o Golpe
Agora
que o governo praticamente acabou, e que o afastamento de Dilma
Rousseff se tornou inevitável, tem ganhado força por aí uma certa tese que coloca nos movimentos de junho de 2013 a "culpa" pelo golpe.
Não deixa de ser curioso e sintomático que esta tese esteja ganhando
força nas hostes de uma certa esquerda mais próxima da defesa do
governo. Este texto, contudo, é um esforço na tese contrária. Em
negrito, para que não falte clareza: não, Junho de 2013 não foi o estopim do golpe.
Os motivos para isso são vários e não são difíceis de entender.
Permitam-me refrescar a memória do pessoal. Senta que lá vem a história.
De
início, os movimentos de rua em São Paulo eram apenas contra a tarifa e
contra o aumento. Na semana do dia 12 de junho, tudo parecia apenas
mais uma da continuidade de uma série de confrontos entre população,
majoritariamente estudantes, e as autoridades da prefeitura e do governo
do estado, em busca de um novo modelo de transporte público no país.
Neste dia, a Folha de São Paulo retratou da seguinte maneira o embate
entre policiais e estudantes.
Todas as imagens a seguir podem ser encontradas no acervo da Folha.
12 de junho
Uma
notícia que não está na capa, mas encontra-se em destaque do caderno
Cotidiano do jornal é, possivelmente, a mais importante do dia. Nesta
terceira noite de confrontos, um policial foi cercado e agredido por
manifestantes. O jornal retrata a cena como um ato de covardia.
Recapitulando:
até aqui, nada de novo. Como em outras cidades como Salvador e
Florianópolis, as revoltas populares contra o aumento das passagens de
ônibus são retratadas com certa má-vontade da mídia que, na tentativa de
garantir um posição de suposta isenção, equipara a violência policial à
dos manifestantes, sem abordar efetivamente o problema da mobilidade
urbana. Enfim, vocês sabem muito bem como é a imprensa com movimentos
sociais.
13 de junho
Acontece
que esse policial é mais importante do que parece. Na quinta-feira, dia
13 de junho, a capa da Folha de São Paulo, dessa vez com a imagem do
policial acossado, dizia o seguinte, em tom de ameaça:
No hoje clássico e famoso editorial "Retomar a Paulista",
o jornal enumera prejuízos à cidade pela paralização da principal
Avenida da cidade de São Paulo, e não só condena a violência dos
manifestantes (apenas dos manifestantes), como posiciona-se a favor do
aumento das passagens. Eu abro aspas para a Folha falar:
"Sua reivindicação de reverter o aumento da tarifa de ônibus e metrô de R$ 3 para R$ 3,20 — abaixo da inflação, é útil assinalar — não passa de pretexto, e dos mais vis. São jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados."
Como
se não fosse o bastante, a Folha endossa as autoridades públicas a
agir, incita o governador e a prefeitura a tomar medidas enérgicas e
garante a legitimidade à corporação policial a agir como sempre quis, do
único jeito que sabe atuar. A Folha sabia o que estava fazendo — ou ao
menos acreditava que sabia. O objetivo era interromper as manifestações
na marra.
"É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais. (…) No que toca ao vandalismo, só há um meio de combatê-lo: a força da lei. Cumpre investigar, identificar e processar os responsáveis. Como em toda forma de criminalidade, aqui também a impunidade é o maior incentivo à reincidência."
O
recado foi recebido. Naquela noite, porém, a emenda saiu pior do que o
soneto. De minha parte, se junho tem um marco inicial, esse início é o
dia 13. Os confrontos daquela noite foram dos mais brutais já
registrados. No dia seguinte, os jornais e as redes sociais seriam
inundadas por imagens e vídeos chocantes. A mudança de tom da Folha é
evidente. No dia seguinte, a capa do Jornal dá foco exclusivo à
violência policial. O destaque fica para a imagem de um policial com
cara de vilão de história em quadrinhos atacando um casal indefeso. Ao
fundo, trabalhadores horrorizados e preocupados com a situação.
Mais
do que isso, o dia 13 de junho marca a mudança da postura da imprensa,
porque finalmente a própria foi obrigada a reconhecer que a instituição
da Polícia Militar no Brasil é uma ameaça à democracia, em especial no
que importa aos jornais: uma ameaça aos princípios da liberdade de
expressão. Mas uma coisa é você escutar uma palestra de algum professor
de alguma universidade em defesa desse argumento. Outra completamente
diferente é quando essa ideia ganha corpo, ou melhor, encontra um corpo.
Só posso falar, aqui, da jornalista da Folha Giuliana Valone. Bonita,
branca, jovem e inofensiva, ela apareceu da seguinte maneira na parte de
baixo da capa do jornal. O bumerangue que a imprensa jogou contra os
manifestantes voltou e atingiu o olho dessa jornalista — e muitas outras
pessoas.
14, 15 e 16 de junho
A
sensação no Brasil era de perplexidade. Aos poucos, foram surgindo mais
e mais vídeos, fotos, imagens e relatos. As redes sociais foram
inundadas por um sentimento de impotência e indignação com a violência policial.
Eu gostaria de usar negrito aqui, mas um itálico cumpre a função. Não
vou me cansar em repetir: todo o final de semana foi de intensa
mobilização dentro das redes sociais. A minha TL, em específico, parecia
um episódio de Master Chef no Twitter. O assunto era único. O país
estava em polvorosa. Hoje falamos em golpe, mas naqueles dias o
sentimento também era de democracia ameaçada. Todo o histórico de
violência policial nas periferias, a campanha de figuras como Marcelo
Freixo e Luiz Eduardo Soares pela reestruturação completa das polícias, o
fim da instituição da Polícia Militar, um legado obsceno da Ditadura…
tudo isso estava em pauta. Pela primeira vez, escutamos a palavra de
ordem "não é só por 0,20 centavos". O que estava em questão era a
própria democracia, o próprio direito de se manifestar.
Nos
jornais, o assunto foi deixado um pouco de lado. Neste momento a
internet começou a mostrar seu poder de mobilização, para a surpresa de
alguns. Aos poucos, pipocavam eventos de chamada para manifestações. Pra
piorar a situação, a Copa das Confederações havia começado e as
primeiras manifestações aconteciam no Rio de Janeiro, o que se tornaria
um padrão ao longo das cidades sede da competição. Ninguém, porém,
poderia imaginar ou prever o que aconteceria no dia 17 de junho.
17 de junho
Esqueça
os números. Nesse dia, 12 capitais foram às ruas. Não havia movimento
centralizado organizado, não havia pauta coesa, havia uma simples e
unânime indignação. Essa indignação, contudo, teve um estopim, teve uma
causa primordial: a revolta contra a brutalidade policial.
Qualquer um que pretenda interpretar junho sem este dado fundamental só
pode desconhecer as manifestações (nesse caso é muito provável que
tenha assistido às manifestações do sofá de sua casa, sintonizado na
Globo News). Para muitos, "não há explicação" para o que ocorreu no dia
17 de junho. No entanto, mesmo que o acontecimento permaneça um mistério
(por quê agora? Como pode tanta gente ficar tanto tempo sem fazer nada,
de repente reivindicar as ruas dessa maneira? enfim, perguntas que não
podem ser respondidas definitivamente), há muito que pode ser dito sobre
o que aconteceu: é inegável que o clima criado na cidade de São Paulo
trouxe à tona o desejo de respeitar o direito de reivindicar as ruas.
Mais do que isso, lembraram a elas que havia muito pelo quê se
manifestar. Guardarei este dia como um dos dias mais genuínos e
surpreendentes da minha vida. Eu sabia que as coisas mudariam
profundamente a partir dali.
18 de junho
A
partir daqui as coisas começam a ficar ainda mais complicadas. Não foi
só a esquerda que encontrou nas manifestações de junho um meio para
externalizar suas demandas. Parcelas mais à direita também o fizeram,
bem como uma série de pessoas que jamais havia participado de qualquer
tipo de mobilização social. Num gesto inicial de repulsa, em resposta
aos primeiros conflitos internos às manifestações (principalmente à
demanda, muitas vezes mediante violência física, sintetizada pela
palavra de ordem dos "sem partido"). É curioso notar que mesmo bandeiras
não relacionadas a partidos, como a UNE e a própria CUT foram
rechaçadas. Há aí, claro, no "sem partido" uma recusa a muitos símbolos
da esquerda e do governo, não só uma crítica à ideia de
representatividade em crise dos modelos liberais democráticos. É
importante, contudo, tomar o cuidado de não jogar fora o bebê junto com a
água suja. Movimentos como o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe e
mesmo na Espanha têm em comum maiores demandas por democracia direta em
busca de outras formas de representação. A recusa de partidos de
bandeiras nas manifestações não é, nem pode ser encarada como
inerentemente reacionária.
Esse
dia também é importante porque a "Revolta do Vinagre" passou a se
transformar na "Revolta dos Coxinhas". Evidentemente, a parcela da
população que jamais havia ido às ruas é superior aos que se mobilizam
cotidianamente. Ao meu ver, num erro tático, a esquerda optou por
colocá-los no colo da direita ao chamar todo esse conjunto complexo da
população de "coxinhas". É aqui, neste momento em específico, que a
memória de Junho começou a ser mascarada e desconstruída. Por um lado, a
imprensa tenta transformá-lo num gesto "contra tudo e contra todos", de
outro o governismo tenta desqualificar a luta das ruas como "pessoas
que querem desestabilizar o governo".
Vou
dar um exemplo e, para isso, nada melhor do que duas figuras muito
conhecidas na internet, a dupla do Jovem Nerd, Alexandre Ottoni e Deive
Pazos. Ambos são criadores do maior podcast do Brasil, o Nerdcast, com
aproximadamente 2 milhões de acessos semanais. Não é pouca coisa. São
figuras que muito facilmente poderiam ser chamadas de "coxinhas": evitam
ao máximo polêmicas políticas, se recusam a defender um ou outro
partido e defendem ideais de empreendedorismo. Enfim, a prioridade dos
caras sempre foi criar conteúdo humorístico e de discussão sobre
assuntos de relevância para os nerds. Estou usando este exemplo
aparentemente esdrúxulo porque, por incrível que pareça, no dia 18 de
junho a dupla optou por publicar um vídeo em seu canal do YouTube para se posicionar em defesa das manifestações. É digno de nota, contudo, os comentários feitos por eles:
"A gente pode resumir bastante o que tá acontecendo agora como insatisfação. Insatisfação de.. como assim vocês vão agredir meia dúzia de pessoas? Como assim vocês vão atacar jornalistas? Como assim eu não posso sair na rua para falar?"
É
impressionante que essa fala, feita por duas pessoas que jamais
poderiam ser consideradas de esquerda, em defesa do direito de
manifestação, hoje pareça não ter mais nenhuma relação com a origem de
Junho. Algum tipo de obra política muito forte teve que entrar em cena
para barrar esta narrativa. Junho tomou muitos caminhos nos últimos
anos, mas é de entristecer que muitas das frestas abertas tenham sido
suturadas. Considero estarrecedor a mera necessidade de ter de escrever
este texto, de lembrar às pessoas que a origem das manifestações não foi
uma revolta repentina, mas o combate à brutalidade policial.
Depois de tudo isso
Junho
não foi simplesmente um movimento contra a corrupção, contra os gastos
da copa do mundo, contra os políticos que não nos representam, foi tudo
isso, mas foi muito mais. Seu início está na luta pela consolidação das
instituições democráticas neste País. Seu início está relacionado à
violência sentida nas periferias, na violência policial, uma das que
mais mata no mundo.
Junho
foi (e ainda é) uma grande oportunidade, um momento que permite
repensar a relação de todos com a política a partir de um consenso
democrático. O que hoje chamamos de golpe, na verdade, não é a
continuidade do que teve início em 2013, mas a destruição de seu legado.
Se observarmos os comentários do vídeo acima, veremos que a maior parte
deles são da ordem do: "e nada mudou", e é bem verdade. Junho foi uma
oportunidade, também, para o governo. Uma oportunidade para o país
começar a falar grosso com a FIFA, se recusar à chantagem barata de uma
das organizações mais corruptas do esporte internacional. Uma
oportunidade para o PT retomar suas bases de Direitos Humanos e propor
uma ofensiva contra os excessos das polícias militares — nunca houve,
como naquele momento, uma revolta tão grande com a atuação desmesurada
dos policiais militares. Foi a oportunidade única de construir um
projeto de Reforma Urbana, em conjunto com uma sociedade mobilizada,
investir mais em Saúde e Educação. Junho é, hoje, infelizmente, o nome
de uma série de chances jogadas fora justo no momento em que o Brasil
aprendeu a voltar às ruas.
Do
contrário, o que vimos foi mais do mesmo: o Brasil havia sido tomado de
assalto pelo maior movimento de ruas desde a queda da ditadura, e sua
classe política, em especial o partido no governo (sempre em nome da
"governabilidade") foi incapaz de dar respostas satisfatórias. Estou
exagerando: o governo Dilma deu respostas inexistentes. Muitos dos que
pedem impeachment, hoje, o fazem porque vêem a paralisação deste governo
em todas as áreas.
Por
isso, senhores, sinto muito, mas Dilma cairá pelo impeachgolpe
articulado por uma conspiração organizada por Temer e Cunha, é verdade.
Mas essa conspiração só pôde funcionar porque houve erros cruciais e
primários na administração de Dilma Rousseff. A começar com a empáfia de Mercadante ao propor Arlindo Chinaglia na presidência da Câmara (o que permitiu a Eduardo Cunha alcançar o poder que tem hoje). Sem contar as apostas totalmente equivocadas dos Bancos Públicos em campeões nacionais, ou a desoneração de impostos para a indústria, que hoje enche a boca para falar que "não vai pagar o pato".
Enfim,
antes de acusar Junho e "sua origem fascista", membros do PT e do
governo deveriam antes reconhecer os próprios erros e responsabilidades
no desastre que nos espera. A disputa por Junho ainda está em aberto.
Oxalá a esquerda consiga retomá-la.
Fonte: MEDIUM
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