abril 15, 2016

Ode à cozinha. POR Dênis Matos (OBVIOUS)

PICICA: "Quando comemos algo feito para nós, ou preparamos algo para o outro, revisitamos a dedicação que nos foi entregue na cozinha de casa por nossos pais e avós" 


Ode à cozinha


Quando comemos algo feito para nós, ou preparamos algo para o outro, revisitamos a dedicação que nos foi entregue na cozinha de casa por nossos pais e avós

Tinha oito anos quando cozinhei meu primeiro arroz. À época, morava numa casa no entremeio da zona Oeste de São Paulo e o município de Osasco. Meus pais ainda formavam um casal.
Desde que tenho notícia do mundo, minha mãe cozinhava aos montes. Minha irmã e eu, ainda crianças, participávamos disso e tínhamos na cozinha parte do quintal da vida.

Naquele espaço doméstico minha mãe preparava, no final dos anos 1980, os bolos de aniversário para toda a família, regados com Guaraná Antarctica pra ficar “bem molhadinho”. A cobertura era de glace, uma poção de preço módico que mistura água, açúcar e ovo – e nessa altura anda meio em desuso. Chantili era coisa para gente bem abastada naquele tempo.

Era ali que as bolotas de nhoque deveriam ser retiradas da panela quando subissem à superfície. Era ali que se preparava e se perguntava sobre a “mistura”, porque arroz, feijão e salada eram e ainda são comidas sine qua non na mesa do brasileiro médio – e o que muda diariamente é o acompanhamento, pra usar o termo técnico.

Hoje, quando cozinho – e procuro fazê-lo no mínimo dia sim, dia não – me surpreendo com a capacidade de tocar de alguma forma todos esses meandros intensos da minha memória afetiva. Reencontro simbolicamente minha mãe à distância e às milhões de coisas que, sem dizer palavra, ela me ensinou na cozinha.

Por muito tempo, já adulto, quando colocava a panela no fogo para preparar algo, pouco compreendia que aquele processo quase instintivo de fazer arroz aos oitos anos era invocado, tirando algum sulco desse fruto quase impossível que foi meu début culinário.

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Tenho alguns fragmentos dessa passagem: minha mãe não chegou do trabalho no horário costumeiro. Minha irmã então com cinco anos falou que tinha fome. Senti um estalo de responsabilidade e reproduzi como máquina viva os rituais de picar a cebola, de medir a quantidade exata de água para ferver, de escolher duas xícaras de arroz e lavar com bastante água corrente. Errei a mão no sal, mas minha mãe fez questão de seguir o jogo, e comemos essa salmoura de ingenuidade.

De alguma maneira, naquele momento estava tocando toda a generosidade que a cozinha pode nos ensinar, em especial a capacidade de forjar cuidado às pessoas que são importantes. Se há um instante possível para o término de nosso espaço enquanto criança no mundo, acredito que este simbolize o meu. Daí guardo a alegria de ter tocado uma herança tão simples e tão necessária, meu melhor presente materno. 

Sempre que posso refaço esta sensação de cuidado que a comida carrega. Me animo com a vontade de produzir algo para suprir um desejo de outro ser – e consequentemente suprir o meu, ao ver felicidade naquele que consome algo meu. É um exercício que não está preso à produção prática ou concreta, e sim à retomada desse sentimento de afeto que um prato de comida pode trazer.

Quando comemos algo feito para nós, ou preparamos algo para o outro, revisitamos a dedicação que nos foi entregue na cozinha de casa por nossos pais e avós. Percorremos o que se aprendeu nesse universo culinário em que as trocas subjetivas estão ocorrendo a todo tempo e partem do capricho que se coloca numa receita. Isso, ainda que pouco aparente, segue nos afetando de forma profunda.
Toda essa poesia de mesclar cheiros, tempos, texturas, cores e sabores é convocada quando você se dispõe a acender o fogo e prover algum conforto para alguém. É um reencontro com uma ancestralidade que está guardada em nossas casas da memória.

Tenho a sensação de que cozinhar é um ato contraditório. Principalmente num tempo em que os detalhes são sucumbidos a todo momento por imposições modernas. 

Como bem observa Michael Pollan na série Cooked, encabeçada pelo Netflix, nunca se viram tantos programas culinários num momento em que quase ninguém possui tempo e paciência para fazer sua própria comida. O que comemos foi terceirizado, a grosso modo.

É um grande contrassenso, principalmente quando se encontram inúmeras referências bibliográficas, séries, documentários, programas de TV e até best sellers em que o ato de preparar o alimento se torna espetáculo e arte. 

Não que ele não seja: de fato, cozinhar é um fenômeno de contemplação e divertimento que pode ser compreendido como algo espetacular. No entanto, o que se vê é apenas seu uso espetacularizado e pouco concreto, numa produção irrefreável de pratos que não serão comidos por ninguém e que atendem a um papel de adorno televisivo. Ninguém quer cozinhar de forma real, mas parecer que cozinha vai bem, obrigado.

Me parece que todo esse excesso imagético do cenário culinário está mais para uma tentativa de tamponar alguma verdade desconfortável. Estamos cada vez mais distantes de um processo básico de preparar nossa própria comida, de ser autossuficiente em coisas simples – e isso perpassa o universo alimentício e se estende em toda e qualquer esfera contemporânea.

Isto porque, e novamente chamo a fala de Pollan, seguimos um cotidiano que não permite “perda de tempo”, em que o imediatismo precisa ser respondido da maneira mais prática e rápida. Por isso nos contentamos em comer mais coisas que nos fazem menos, e que pouco exigem alguma paciência sagrada que nenhum celular permite encontrar.

Há qualquer coisa de rural e simples quando cruzamos com os modos de fazer de uma sociedade no que tange à culinária. É um encontro para produzir a própria comida, para escolher quais os ingredientes melhor cabem no paladar, de se perguntar qual é a amálgama de sensações que determinada combinação pode produzir. Não é um ato controlável, previsível e tampouco rápido. É um ato de arte, com o perdão do clichê.

Cozinhar, escreveu Mia Couto, é no mínimo arriscado. “No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Cozinhar não é serviço. Cozinhar é um modo de amar os outros”. Talvez a poesia explique, ou complique, o motivo de estarmos tão longe da cozinha.

Dênis Matos

se fumar é uma maneira discreta de ir queimando as desilusões perdidas, e o café é uma poção mágica para ler e entender o mundo, escrever com nicotina & cafeína pode ser o caminho para reproduzir o irreproduzível.

Fonte: OBVIOUS

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