abril 09, 2016

Memória e presença de um cinema em ruínas. Por William Hinestrosa (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Ao iluminar história de uma sala de rua no interior de Pernambuco, “O que se memora” propõe instigante reflexão sobre o que a arte cinematográfica foi e o que é" 



O Que Se Memora from Caio Dornelas on Vimeo.

Memória e presença de um cinema em ruínas


Ao iluminar história de uma sala de rua no interior de Pernambuco, “O que se memora” propõe instigante reflexão sobre o que a arte cinematográfica foi e o que é

Por William Hinestrosa

As imagens de um cinema abandonado no município de Goiana, localizado na Zona da Mata Norte de Pernambuco, podem nos convidar ao saudosismo de uma época em que os cinemas de rua eram realidade ou à reflexão mais apurada perante o descaso com a própria memória de uma cidade. Porém, considerarei que essas imagens que compõem o curta O Que Se Memora, de Caio Dornelas e Ernesto Rodrigues (PE), nos impulsionam para outra direção, onde encontramos especificamente duas perguntas: O que é cinema? e o que era cinema?

Enxergo um caminho não muito simples ao tentarmos compreender a palavra cinema nos dias de hoje. É o espaço físico onde ocorre a exibição de filmes que chamamos de cinema e onde vamos ao cinema? É o conjunto de obras realizadas com imagens em movimento para serem exibidas nesse tipo de espaço físico? É algum tipo de indústria? É algum tipo de arte? É algum tipo de linguagem? Uma série produzida para exibição na plataforma Netflix vista no celular é cinema? Se essa mesma série for exibida no espaço físico conhecido como cinema, ela passa a ser cinema? Se durante a exibição dessa mesma série numa sala de cinema alguém passar pelo lado de fora e ao ser perguntado o que está sendo projetado lá dentro, a resposta automática desse alguém é “um filme”?

Parando por aqui o rol de perguntas, buscarei me basear nesse questionário como se cada pergunta fosse um pilar, que não precisam ser demolidos como os antigos prédios que abrigavam os cinemas de Goiana e de muitas outras cidades no Brasil e no mundo, mas talvez deslocá-los para servirem como alguns suportes das nossas relações com as imagens. E como o assunto é cinema, me refiro obviamente às imagens em movimento, cujo marco inicial, considerado de forma geral mas não unânime, são as obras produzidas pelos irmãos Lumière a partir de 1895. Curiosamente, uma dessas obras é usada como marco final do filme de Dornelas e Rodrigues, logo voltaremos a esse ponto.

Verifico com frequência que um dos fatores que nos aproxima ou afasta de uma imagem é o efeito que ela tem sobre nosso imaginário. Os avanços tecnológicos permitiram novos tipos de acessos às imagens em movimento, o cinema como arte e entretenimento, e compreendido como exibição de obras cinematográficas dentro de um prédio em uma tela coletiva, ficou claramente no centro de um fogo cruzado do bem e do mal, pois ele não se estabelece mais como o único acesso ou meio (medium) capaz de produzir efeitos no nosso imaginário a partir de imagens em movimento.

Assim, lanço uma reflexão sobre o apego, às vezes excessivo, que é produzido nas nossas relações com o cinema, este que como cinema praticamente deixou de existir, o que possuímos é o cinema como um termo flutuante. Proponho nessas linhas que nos dias atuais evitemos nos apegar ao cinema como uma entidade de caráter único. Na verdade, considero importante não deixarmos de compreender que a sua premissa material de imagens em movimento, aquela que é capaz de atingir nosso imaginário violentamente como um trem desgovernado, continua firme, seja dentro de um prédio numa tela coletiva seja em qualquer lugar nas infinitas telas particulares.

Em O Que Se Memora temos uma abordagem sobre essa concepção de cinema de caráter único, que de forma bem simbólica está falecido já na sinopse desse curta: “A memória viva de cinemas mortos”. O que nos leva a entender que o cinema rememorado por meio das imagens atuais de um prédio abandonado onde funcionava um cinema e também por meio dos dois depoimentos presentes no curta, está num tempo que não acessamos mais, porém o curta em si, como obra de imagens em movimento, busca afetar nosso imaginário sobre esse período em que o cinema possuía caráter único. Eis o seu trabalho de memória.

O curta propõe um desafio interessante na sua ativação da memória: entender as continuidades e descontinuidades entre esse caráter único do cinema e seu aspecto flutuante nos dias de hoje. E esse desafio é lançado exatamente jogando com o espectador por meio de uma relação imagética e sonora no espaço físico de um cinema desativado. Condição presente já no seu prólogo de dois minutos antes do letreiro com o título do filme, onde passeamos por ruínas com uma proposta sensorial dada pelas formas das cenas e da trilha, ambas flertando com o experimental.

Surge então o título “O Que Se Memora”, um misto de pergunta e afirmação ao som forte de uma sirene. Ao longo do filme soam mais duas sirenes, tal qual nos remotos tempos de funcionamento daquele prédio, quando três toques de sirenes soavam antes do início da projeção. Estruturalmente cada toque indica o início de cada bloco do filme, dividido rigorosamente em três partes. A partir do primeiro toque somos levados ao mesmo tempo em duas direções, uma afetiva e outra material.

A afetiva se estabelece em especial pelos depoimentos que ouvimos sobre as imagens, um deles é de uma mulher que por muito tempo frequentou os cinemas de Goiana, e o outro é de um ex projecionista de uma das salas da cidade. Ambos nos contam sobre o aspecto social e cultural de uma sala de cinema e como cada um se relacionou com esse tipo de sala de exibição. Gostaria de destacar aqui como sobreviveram sentimentos distintos entre esses dois personagens.

A mulher, Lenita Carneiro Belém, insere de forma precisa aqueles cinemas no seu passado, está bem definido para ela que hoje a relação entre cinema e espectador se alterou, o exemplo está nos seus netos que frequentam salas de cinema no shopping, porém o conteúdo ao qual eles têm acesso já não acessam mais o seu gosto pessoal, e ela caracteriza o ir ao cinema como uma atitude de pessoas jovens, apesar de saber que “tem filmes que pessoas idosas também gostam de assistir”.

O divisor entre presente e passado está muito bem definido para Lenita, que não expõe nem saudosismo nem repulsa a nenhum dos dois tempos, mesmo criticando que os filmes de hoje são “tudo uma besteira”. Outro fator é essa senhora ter uma compreensão própria de sua relação com as imagens em movimento, ela diz que não aguenta nem mais ver televisão, já viu tanto filme “no mundo” e que pra ela “já passou, já tá bom demais”. Aqui, o afeto que se memora é dotado de um desapego, aparentemente saudável para essa senhora que deseja que os seus netos desfrutem de ver filmes no cinema.

O outro entrevistado, José Arlindo dos Santos, nos traz uma relação mais apegada. Pela sua voz reconhecemos um prazer em nos narrar o funcionamento das sirenes, das cortinas que se abriam, do carregamento da película no projetor, do conserto às pressas da película velha que se arrebentava e a reação do público nessa situação. Porém ao nos reportar o seu sentimento sobre a realidade daqueles estabelecimentos desativados, percebemos o quanto isso borra as fronteiras entre passado e presente.

A revolta desse projecionista aposentado perante um descaso das instituições públicas que poderiam manter o cinema em funcionamento, e diante da demolição onde “cada uma martelada dessa que estão botando na parede desse cinema abaixo, é uma pancada no meu coração, é um ano de vida a menos que eu vou ter”, é também um afeto que traz o seu passado para muito perto do presente. Isso é um gesto capaz de nos provocar sobre como apreendemos nossa relação com o próprio passado, lançando questões como quais aprendizados poderíamos destacar numa aproximação como essa?

É onde o filme nos dá a direção material de sua composição. Ao longo de seus dez minutos de duração não saímos de dentro do espaço físico onde funcionava um cinema. Vemos suas ruínas, suas cadeiras empoeiradas, seus projetores desativados e uma parede sem tela. Uma das imagens mais marcantes é quando vemos uma mão carregando num dos projetores abandonados uma película invisível, como se ela fosse um fantasma. O projecionista ajusta as lentes, olha pela janelinha e vemos uma luz saindo da cabine de projeção.

Aqui o curta se torna um ato de resistência. Projeções de filmes são lançadas nas paredes daquele prédio, vemos a luz reverberando nas cadeiras vazias, mais fantasmas sentindo em suas peles a força daquela luz como nos velhos tempos. Surge uma película real sendo carregada no projetor, o passado está no presente. Se os fantasmas representam o divisor nítido entre passado e presente, como indicado por Lenita, o ato de resistir que o curta estabelece é a fronteira borrada de José Arlindo.

O Que se Memora termina com as imagens em movimento de um filme dos irmãos Lumière, “A Demolição de um Muro”. No fim reencontramos o início, o primitivo. O passado está grudado em nós. Sobrevive. O muro entre passado e presente pode sim ser martelado e as pancadas de sua demolição nos leva a crer que nossa compreensão de continuidades e descontinuidades se aperfeiçoará sempre com afetos, desapegos e resistências.

O QUE SE MEMORA”

(10 minutos, 2014, Zona da Mata de Pernambuco)

Sinopse: A memória viva de cinemas mortos.

Direção: Caio Dornelas e Ernesto Rodrigues

Roteiro: Caio Dornelas

Produção: Thiago Laranjeiras e Bell Nunes

Direção de Fotografia e Operação de Câmera: Raphael Malta Clasen

Son Direto: Caio Dornelas

Montagem e Desenho de Som: Felipe Ferraz

Eletricista: Anderson Roberto

Projeto Gráfico: Camila Storck

Entrevistados: José Arlindo dos Santos, Lenita Carneiro Belém

Atuação: Sérgio Ricardo Clementino da Costa “Serginho da Burra”

Especial na TV NBR sobre o filme e entrevistas com o diretor Caio Dornelas e a presidente do IPHAN Jurema Machado: https://www.youtube.com/watch?v=TduP5s0Fmhg

William Hinestrosa

William Hinestrosa é formado em filosofia. Atualmente é mestrando em Artes Visuais na Unicamp, onde desenvolve sua pesquisa em memória e narrativas de curta-metragem nas obras dos diretores Cláudio Marques e Marília Hughes (BA). Entre 2005 e 2014 participou da Associação Cultural Kinoforum como coordenador dos programas brasileiros e membro do comitê de seleção do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, no mesmo período foi coordenador da pesquisa de conteúdo para o Guia Kinoforum de Festivais de Cinema e Vídeo. Atualmente é professor na Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André e no Centro de Audiovisual de São Bernardo do Campo, co-diretor do festival Goiamum Audiovisual (RN), e produtor local em São Paulo do Cinefoot – Festival de Filmes de Futebol.

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