abril 27, 2016

Debater o poder constituinte é mirar a história e o devir da democracia. Entrevista especial com Francisco de Guimaraens (IHU)

PICICA: "Poder constituinte é um conceito de caráter jurídico ao qual se atribui a função de fundar e garantir a legitimidade da ordem constitucional. No entanto, sua importância se amplia na medida em que é considerada a amplitude dos reflexos que suas ações atingem na sociedade.

Conforme ressalta Francisco de Guimaraens, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, “reduzir a tarefa do poder constituinte, exclusivamente, à fundação do ordenamento constitucional significa negar a natureza política, social e econômica das próprias constituições e também as profundas mutações que as lutas sociais, étnicas, raciais, políticas e econômicas introduziram em constituições longevas, como a Constituição dos Estados Unidos”.

Para o jurista e professor da área, o tema do poder constituinte deve ser analisado de maneira profunda por múltiplos campos do saber uma vez que sua complexidade exige essa atenção. Trata-se de uma categoria que deve ser pensada sempre, pois “exprime uma potência de inovação, atual e expansiva do ponto de vista dos direitos, e um desejo democrático. O poder constituinte é o movimento de intervenção no real em busca da invenção democrática”, ressalta Guimaraens.

Portanto, é uma discussão sempre atual e necessária, principalmente diante do momento político que o país está vivendo, onde, segundo o professor, “as condições de exercício do poder constituinte e de ampliação e aprofundamento dos direitos conquistados desde a promulgação da Constituição de 1988 estão sob evidente ameaça daquilo que há de pior dentre todas as formas constituídas de poder na sociedade brasileira”." 

Debater o poder constituinte é mirar a história e o devir da democracia. Entrevista especial com Francisco de Guimaraens

"Quanto mais houver bloqueio e neutralização da experiência democrática, mais o Estado estará sujeito a conspirações, externas e internas. Portanto, quanto mais distante do processo democrático, mais instável é o poder do Estado. Sem uma multidão potente, autônoma e livre, o Estado é fraco, colonizado e servo", afirma o jurista e professor da PUC-Rio.

Imagem: www.luizcarlosbill.com.br
Poder constituinte é um conceito de caráter jurídico ao qual se atribui a função de fundar e garantir a legitimidade da ordem constitucional. No entanto, sua importância se amplia na medida em que é considerada a amplitude dos reflexos que suas ações atingem na sociedade.

Conforme ressalta Francisco de Guimaraens, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, “reduzir a tarefa do poder constituinte, exclusivamente, à fundação do ordenamento constitucional significa negar a natureza política, social e econômica das próprias constituições e também as profundas mutações que as lutas sociais, étnicas, raciais, políticas e econômicas introduziram em constituições longevas, como a Constituição dos Estados Unidos”.

Para o jurista e professor da área, o tema do poder constituinte deve ser analisado de maneira profunda por múltiplos campos do saber uma vez que sua complexidade exige essa atenção. Trata-se de uma categoria que deve ser pensada sempre, pois “exprime uma potência de inovação, atual e expansiva do ponto de vista dos direitos, e um desejo democrático. O poder constituinte é o movimento de intervenção no real em busca da invenção democrática”, ressalta Guimaraens.

Portanto, é uma discussão sempre atual e necessária, principalmente diante do momento político que o país está vivendo, onde, segundo o professor, “as condições de exercício do poder constituinte e de ampliação e aprofundamento dos direitos conquistados desde a promulgação da Constituição de 1988 estão sob evidente ameaça daquilo que há de pior dentre todas as formas constituídas de poder na sociedade brasileira”.

Francisco de Guimaraens é graduado, mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ, instituição onde atualmente é professor assistente. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Teoria do Estado e Filosofia Política.

A entrevista é publicada na revista IHU On-Line, no. 483, que pode ser acessada clicando aqui.

Confira a entrevista.

 Professor Francisco durante sua participação no 
3º Ciclo de Estudos sobre as Metrópoles, no IHU. 
Foto: Fernanda Forner / IHU
IHU On-Line - O que é poder constituinte e sujeito constituinte? De que maneira esses conceitos se articulam?
 
Francisco de Guimaraens - O conceito de poder constituinte, em regra, é associado ao problema da fundação de uma ordem constitucional e à questão da legitimidade dessa ordem, sobretudo para aqueles que desenvolvem reflexões no campo do Direito e para os que lidam com sua aplicação concreta. De acordo com a concepção jurídica mais difundida, o poder constituinte possui tarefas de caráter jurídico: fundar e legitimar toda a ordem constitucional e atribuir competências aos poderes constituídos, limitando-os, por consequência. O poder constituinte gozaria de uma posição superior em relação ao poder constituído e suas determinações serviriam de limites ao exercício regular do poder. A noção jurídica de poder constituinte, portanto, consagra a ideia de que o poder constituinte é uma forma de exercício da soberania do Estado e, por essa razão, o poder responsável pela elaboração da constituição, documento normativo que regula o exercício do poder político.

A concepção jurídica de poder constituinte possui alguns problemas. Três deles me parecem mais relevantes e decorrem das seguintes afirmações: o poder constituinte se exerce extraordinariamente, mediante um ato de vontade que não obedece a qualquer determinação prévia e, completada sua tarefa, desaparece, entra em estado de latência; o poder constituinte, segundo a tradição jurídica, se constituiria em um poder com finalidades exclusivamente jurídicas; o poder constituído é responsável por atribuir sentido à constituição, obra do poder constituinte. Analisemos as consequências problemáticas dessas afirmações.

Segundo a imagem do poder constituinte cunhada pela tradição jurídica, trata-se de um acontecimento extraordinário, sem causa e instaurado pela vontade de quem exerce o poder constituinte, vontade essa que entra em estado de latência após sua manifestação. Não seria impróprio afirmar que um poder deseja recolher-se, que busca seu próprio encerramento? A experiência não demonstra justamente o inverso? O poder não é um fenômeno que busca sua perpetuação? Qual titular de um poder abdicou, por vontade própria, de seu exercício? Não faz sentido essa concepção. Além disso, um poder sem história, indeterminado, traduzido por um ato de vontade excepcional capaz de fundar todo o direito diz muito mais respeito à teologia do que ao Direito e à política.

Tampouco é correto afirmar que o poder constituinte se encontra enclausurado nas malhas das normas jurídicas, ou seja, é inadequado considerar que o poder constituinte se restringe à realidade normativa e tem a função de produzir normas jurídicas. Reduzir a tarefa do poder constituinte, exclusivamente, à fundação do ordenamento constitucional significa negar a natureza política, social e econômica das próprias constituições e também as profundas mutações que as lutas sociais, étnicas, raciais, políticas e econômicas introduziram em constituições longevas, como a Constituição dos Estados Unidos. O poder constituinte é assunto muito sério para ser analisado apenas por juristas. Sua afirmação afeta a organização social e produtiva, as rotinas político-administrativas, práticas sociais e culturais, enfim trata-se de fenômeno cuja complexidade exige uma análise igualmente complexa.
Por último, a relação problemática entre criador e criatura. O poder constituinte, segundo a tradição jurídica, elabora o texto da constituição e transfere o poder de atribuição de seu sentido aos poderes constituídos. Se o poder constituinte confia ao poder constituído a missão de interpretar e atribuir sentido a sua obra, trata-se de um poder ingênuo, para dizer o mínimo.

Por essas razões, a compreensão do conceito de poder constituinte necessita liberar-se da clausura que a interpretação jurídica lhe impôs. Uma adequada percepção do conceito indica que tal noção não possui apenas efeitos jurídicos.

Há uma história do conceito de poder constituinte. Negri [1], ao investigar tal noção, aponta para a dimensão histórica do conceito e sua relação com os processos revolucionários da modernidade. Essa história abre caminho para uma outra compreensão da própria modernidade. Pensar o poder constituinte, portanto, significa entrar em contato com alternativas da modernidade sepultadas ao longo dos últimos quatro séculos e com o processo de conquista de direitos e de afirmação da democracia.


Neste novo horizonte, o poder constituinte exprime uma potência de inovação, atual e expansiva do ponto de vista dos direitos, e um desejo democrático. O poder constituinte é o movimento de intervenção no real em busca da invenção democrática. Não se trata de um ato de vontade sem causa, mas de um processo de instituição de uma potência multitudinária. A história do poder constituinte, segundo Negri, confunde-se com a própria história da democracia na modernidade.

Negri, em sua obra, pensa o poder constituinte em duas frentes e, da mesma forma, as alternativas da modernidade. De um lado, o poder constituinte é a síntese de uma linhagem teórica maldita da modernidade: o materialismo [2]. Maquiavel [3], Spinoza [4] e Marx [5] representam essa linhagem e suas obras são de grande relevância para a tessitura do conceito. A noção maquiaveliana de virtù, potência de inovação política e de intervenção sobre o tempo, as ideias de potência e de multidão spinozanas e o conceito de trabalho vivo marxista formam as bases teóricas do poder constituinte. Da mesma forma, a noção de fortuna, de poder e de trabalho morto (capital) simbolizam aquilo contra o que se lança o poder constituinte.

Não há poder constituinte sem antagonismo, sem conflito. A tensão entre poder constituinte e poder constituído encontra-se em permanente atualização, não conhece síntese possível e se traduz de vários modos. A igualdade contra o privilégio, a cooperação contra o comando, a multiplicidade contra a unidade, a singularidade contra a uniformidade, a alegria contra o ressentimento: eis as oposições que marcam a relação antagônica entre poder constituinte e poder constituído.

Negri busca demonstrar esse conceito pela leitura que faz dos acontecimentos revolucionários e dos direitos que deles decorrem. O poder constituinte, em cada uma das suas manifestações revolucionárias, exprime uma certa configuração política, jurídica e social. Na revolução inglesa do século XVII, o poder constituinte se exerceu como direito à partilha da terra e pela distribuição da maior parte da mesma em benefício da multidão. Já na revolução americana, o poder constituinte afirmou o direito à apropriação e expansão do território do qual decorre o direito de autogoverno tão caro à federação dos EUA.

Durante a revolução francesa, o poder constituinte estabeleceu uma nova pauta: a questão do trabalho entrou em cena e determinou as lutas no século seguinte. O direito jamais seria o mesmo, pois as lutas da revolução francesa abriram uma nova seara: os direitos sociais. Dali em diante, o poder constituinte inseriu a questão social na agenda política. Por último, a revolução russa abriu uma nova era, a dos direitos econômicos, ou, mais precisamente, o direito de os trabalhadores exercerem poder econômico e organizarem autonomamente a produção. A questão social, posta na agenda política pela revolução francesa, passou a ser acompanhada da questão econômica. Uma questão (social) e a outra (econômica), como se sabe, determinaram os rumos da construção do estado de bem-estar social ao longo do século XX.

Sujeito constituinte

A noção de sujeito constituinte, por sua vez, se encontra intimamente vinculada à de poder constituinte. Não há exercício do poder sem um sujeito que o exerça. As teorias da soberania do monarca, da soberania nacional e da soberania popular já demonstravam esse vínculo entre o poder e o sujeito. Na obra de Antonio Negri, tal questão é central e se constituiu em tema de suas investigações desde a década de 1970. A tese de que a luta contra o capital envolve não apenas condições objetivas, mas, sobretudo, condições subjetivas, ou seja, a formação de uma subjetividade coletiva através da luta contra o domínio capitalista, determinou os rumos da investigação negriana sobre o operário social, sobre a multidão e sobre o trabalho imaterial.

Mas, afinal, o que se entende por sujeito? Em termos spinozanos, todo sujeito é fruto de um grau determinado de atividade e de uma potência de resistência às forças externas tendentes a destruir tal potência. O sujeito, portanto, é causa adequada de certos efeitos que produz e adota estratégias de aliança com outras potências convenientes à sua própria, a fim de ampliar sua potência e resistir às forças externas.
O problema a investigar, portanto, é o seguinte: dadas as condições de desenvolvimento do capitalismo contemporâneo e dadas as lutas pela conquista e afirmação de direitos e contra a exploração, como pensar o sujeito constituinte no mundo contemporâneo? A noção de multidão, segundo Negri, consiste no eixo em torno do qual essa pergunta encontra respostas adequadas.

IHU On-Line - O que é metrópole e como essa ideia reorganiza os conceitos de poder constituinte e sujeito constituinte?

Francisco de Guimaraens - Na medida em que a proposta desta entrevista é debater as contribuições ao pensamento de Negri e de Spinoza, buscarei me ater ao que Antonio Negri e Michael Hardt [6] entendem por metrópole. Na última obra da trilogia, Commonwealth (USA: First harvaard University Press paperback, 2011), Negri e Hardt enfrentam a questão da metrópole, cujas características são ambivalentes.

De um lado, a metrópole é o meio no qual a multidão age e resiste e se constitui em um espaço de produção do comum. A metrópole é também o espaço no qual a multidão produz e está para a multidão assim como a fábrica estava para a classe operária. Por essa razão, além da produção, a metrópole é o espaço dos encontros necessários à formação e à organização da própria multidão e também consiste em meio no qual o antagonismo de classe se determina.

Por encontro, Negri e Hardt entendem não encontros planejados e controlados, mas sim encontros imprevistos nos quais as diferenças podem se reconhecer, conviver, formar uma potência comum e se organizar. Os encontros tipicamente metropolitanos são multitudinários, são banhos de multidão, expressão de Baudelaire [7] mencionada por Negri e Hardt. É nesse ambiente que surgem as condições propícias de cooperação e de comunicação da multidão e, por consequência, de sua organização. Tais encontros propiciam a alegria, pois ampliam a potência daqueles que deles participam. Trata-se de uma alegria muito singular, pois não é uma alegria egoica, fundada na uniformidade, mas uma alegria estruturada em torno das diferenças e em busca da instituição do comum.

A metrópole, portanto, representa a forma territorial e institucional da produção no mundo contemporâneo. Por essa razão, o debate sobre o poder constituinte e sobre o sujeito constituinte deve levar em consideração a noção de metrópole, pois os movimentos constituintes dizem respeito à produção, não apenas ao direito, como vimos anteriormente. O sujeito constituinte se forma e se organiza na metrópole, espaço de produção contemporâneo por excelência. A cooperação, a comunicação e a produção constituem atividades necessárias à organização do sujeito e ao exercício do poder constituinte. Por essa razão, falar de poder constituinte e do sujeito que o exerce requer falar da metrópole.

Metrópole, exploração e controle

Mas a metrópole também é o espaço da exploração. Se, na fábrica, a exploração se dava através do lucro, na metrópole, ela assumiu a forma da renda. Na metrópole as estruturas do capital buscam, incessantemente, tornar os indivíduos rentáveis para que a exploração se potencialize. Há controle na metrópole, controle de fluxos populacionais mediante, por exemplo, políticas de gentrificação. Há controle dos desejos, pois a metrópole também é o espaço do consumo, e controle dos encontros, pois nas metrópoles multiplicam-se os espaços de convivência da uniformidade. O que seriam os condomínios e os shopping centers senão formas de controle dos encontros?

Nas metrópoles estão presentes a violência policial, a hierarquia social, o medo, a tristeza. Nelas há expropriação do tempo do trabalhador, que é submetido a torturantes engarrafamentos, a filas para pagar contas, para comer e até para consumir. Há expropriação do espaço, na medida em que a especulação imobiliária e a indústria da construção civil tomam para si espaços comuns e os transformam em espaços privados ou tomam para si imóveis precariamente ocupados por longo tempo por populações pobres para construir condomínios de luxo.

Em suma, a metrópole é tanto o espaço da atividade constituinte e da organização da multidão quanto o local em que o poder constituído se exerce. Neste sentido, a metrópole consiste no espaço do conflito, das lutas e do antagonismo entre o poder constituinte e o poder constituído. A forma assumida pela metrópole pode propiciar melhores condições de organização constituinte ou de exploração pelo poder constituído, pelo capital. Por consequência, o debate sobre a metrópole e sobre a sua configuração se tornou um ponto de grande relevância para pensar o poder constituinte e o sujeito que o exerce.

IHU On-Line - Como os conceitos trazidos por Spinoza se convertem em categorias válidas para pensarmos as sociedades no século XXI?

Francisco de Guimaraens - Antes de mais nada, gostaria de dizer que todos os grandes pensadores têm algo a falar para nós, seres do século XXI. Spinoza é um deles. Filósofos como Spinoza, acima de tudo, ensinam a pensar, a emendar o intelecto, a produzir conceitos. Além disso, o sistema conceitual de Spinoza possui elementos que estavam à frente de seu tempo. Autores de grande relevância para o pensamento contemporâneo como Marx, Nietzsche [8], Freud [9], Einstein [10], Deleuze [11] reconhecem em Spinoza uma referência teórica de seus sistemas de pensamento.
Há muitos conceitos spinozanos úteis para a reflexão sobre os problemas do século XXI, mas eu gostaria de ressaltar três aspectos de sua filosofia: a ontologia spinozana, sua análise sobre os afetos e sua concepção sobre o direito.

Muito se discute sobre a nova virada ontológica e pouco se menciona acerca da ontologia de Spinoza. Trata-se de ontologia fundada em uma concepção radical de imanência, uma imanência absoluta. Nada existe na natureza que autorize estabelecer hierarquia entre as coisas nela existentes. Tudo o que existe na natureza, para Spinoza, exprime, de um certo modo singular, a potência da própria natureza. A ontologia spinozana recusa a existência de fundamento ontológico da noção de ordem, pois a considera uma imagem formada pelo hábito. Se não há ordem, não existem condições de determinar escalas de civilização, de estabelecer o que é primitivo e o que não é.

Spinoza também considera que as coisas se afirmam positivamente, que suas potências exprimem tudo o que podem e que cada potência é singular. Por consequência, nenhuma coisa envolve uma privação. Não se pode, por exemplo, dizer que o verde falta ao vermelho ou a visão ao cego. Dizer que a visão falta ao cego é o mesmo que dizer que ela falta à pedra, dizia Spinoza. Assim, as sociedades se organizam e exprimem sua própria potência singular. A elas não falta nada em termos ontológicos.

Pierre Clastres foi um pensador fundamental para a defesa dessa tese e, em certa medida, foi spinozano ao afirmar que as sociedades ameríndias não podiam ser definidas como sociedades sem Estado, ou seja, sociedades às quais faltava o Estado, que não conheciam o Estado. Para Clastres, essas sociedades conheciam perfeitamente o Estado, mas resistiam à sua formação. Daí que Clastres não as considerava sem Estado, mas sim contra o Estado. Ainda que Spinoza não tenha influenciado Clastres, eis uma proposta de compreensão das culturas ameríndias de corte spinozano. Essa proposta não busca pensar as sociedades ameríndias a partir do que lhes falta, mas sim a partir de sua própria potência singular mobilizada pelo esforço em resistir à criação do Estado.

Outra contribuição importante envolve a concepção de Spinoza sobre os afetos e sua relação com a razão. Spinoza não propõe o controle dos afetos pela razão. Para Spinoza, existem certos afetos que estimulam a razão. A experiência racional é simultânea a um certo tipo de experiência afetiva. Os afetos de alegria, para Spinoza, reforçam a potência de pensar e, portanto, são condições para a experiência da razão. A filosofia de Spinoza não exclui os afetos, na medida em que os considera efeitos necessários da própria experiência cognitiva. Toda ideia que nos afeta produz em nós um afeto determinado. Conhecer é afetar-se. Não existe, portanto, conhecimento sem afeto.

No campo do direito, Spinoza abre caminho para uma outra percepção do fenômeno jurídico, pois não pensa o direito e legitimação do poder a partir da figura do contrato. Sua concepção de direito envolve a noção de potência da multidão, cuja instituição demanda um processo contínuo de tessitura de relações entre as potências singulares. Não há um momento de decisão ou de acordo racional responsável pela fundação do direito e do poder, mas um movimento incessante de formação de relações entre as potências singulares em busca da constituição de uma potência comum. Por essa razão, Spinoza reconhece a causa dos direitos no auxílio mútuo; eles dependem de um esforço comum voltado para sua instituição, conservação e defesa. Mesmo os direitos dos indivíduos dependem de um processo de formação de uma potência coletiva que os institua, os conserve e os defenda de violações.

Spinoza recusa a lógica individualista e competitiva, que marca as teorias contratualistas, e aposta em uma concepção de direito orientada pela noção de socialização e de cooperação. Os direitos são, neste sentido, modos de fazer e viver socializados, instituídos e conservados por uma determinada sociedade e é necessário um esforço comum, uma constante cooperação, a fim de afirmar tais modos de fazer e viver.
IHU On-Line - Qual a leitura que Negri faz de Spinoza?

Francisco de Guimaraens - Sem dúvida, uma leitura criativa e original. Negri enxerga dois Spinozas: de um lado, o representante da mais alta cultura do renascimento e do humanismo e, do outro, o filósofo do porvir.

O primeiro Spinoza ainda é o filósofo da era clássica, um filósofo que estruturou um sistema extremamente sofisticado e original, mas que não rompeu definitivamente com a filosofia de seu tempo. Esse Spinoza estaria presente nas partes I, II e V da Ética.

Já o segundo Spinoza, que construiu uma filosofia do porvir e a registrou nas partes III e IV da Ética, no Tratado Teológico-Político e no Tratado Político, rompeu com a filosofia de seu tempo, despiu-se de todo idealismo e elaborou um pensamento genuinamente materialista e uma filosofia política radicalmente democrática.

Essa interpretação negriana, muito questionada nos circuitos de intérpretes do pensamento de Spinoza, se encaixa perfeitamente em sua análise da filosofia política spinozana, que é, para Negri, marcada pelo antagonismo entre potência e poder. Ou seja, no primeiro Spinoza existem resíduos das estruturas constituídas de poder e de pensamento, ainda que esse primeiro Spinoza já tenha ensaiado críticas contundentes ao pensamento de seu tempo. O segundo Spinoza simboliza uma anomalia filosófica. É responsável por uma radical reorientação do pensamento e por um sistema filosófico fundado na resistência ao poder e que inspirou experiências constituintes futuras.

Para além das querelas hermenêuticas spinozistas, o que me parece importante na obra de Negri sobre Spinoza são dois aspectos. O primeiro é o reconhecimento de que a filosofia de Spinoza diz respeito à resistência, à liberdade e à democracia, que se traduzem não em um fim a alcançar, mas se experimentam pelo processo de instituição permanente de direitos e impõem a necessidade de formação de uma potência comum para o exercício dos direitos. A liberdade e a democracia não são utopias nem promessas, são atual e materialmente constituídas. Não se trata de obras da vontade ou de uma decisão, pois são experiências vivenciadas em um processo de organização dos desejos e de afirmação de uma potência comum.

O segundo aspecto relevante é a releitura que Negri faz da modernidade através de Spinoza. Com Spinoza, Negri demonstra que a modernidade não foi homogênea, foi um espaço temporal de conflitos entre projetos políticos, epistemológicos, ontológicos e éticos. Nesse conflito, os mais modernos dentre os modernos, aqueles que propuseram levar a modernidade às últimas consequências, foram abandonados, esquecidos. Seus projetos não se realizaram. Negri retoma as alternativas não realizadas da modernidade e muitas delas remetem à filosofia de Spinoza. Em suma, não é necessário ser pós-moderno para criticar a modernidade. Muitos modernos já o fizeram e, como é o caso de Spinoza, deixaram um legado inestimável ao pensamento contemporâneo.

IHU On-Line – Como podemos pensar as categorias de democracia e Estado tendo em perspectiva o conceito de multidão em Spinoza?

Francisco de Guimaraens - Essa pergunta dá uma tese de doutorado. Vou tentar sintetizar. A multidão é o sujeito político e sua potência determina o que Spinoza chama de “direito da cidade”, que corresponde ao poder e às prerrogativas do Estado. Não é o Estado, portanto, que dá forma à multidão, como em Hobbes, e constitui um povo. É a multidão que constitui o Estado. O direito e o poder do Estado têm seu fundamento real e efetivo na potência da multidão.

Há, portanto, na origem do Estado o princípio democrático e o desejo da multidão de se governar. Não que a multidão não possa se deixar levar pelo medo e transferir excessivamente poderes para um ou alguns indivíduos ou grupos. Isso não só é possível como é habitual, reconhece Spinoza. O regime mais raro é a democracia, a experiência ensina.

O processo de afirmação da democracia requer o reconhecimento do conflito, seja ele social, político, econômico, de gênero, racial ou de qualquer outra ordem. Spinoza, ao tratar do fim das aristocracias, sinaliza que sua causa é o desejo da multidão de reivindicar para si as prerrogativas dos aristocratas. A multidão e o conflito são causas, portanto, do processo democrático que, para Spinoza, consiste na única forma de o Estado reforçar seu próprio poder. Se o poder do Estado é determinado pela potência da multidão e se a democracia se constitui no processo de ampliação da potência da multidão e de seus direitos, a única forma de o Estado alcançar autonomia é abrir-se ao processo democrático e à instituição de direitos.

Quanto mais houver bloqueio e neutralização da experiência democrática, mais o Estado estará sujeito a conspirações, externas e internas. Portanto, quanto mais distante do processo democrático, mais instável é o poder do Estado. Sem uma multidão potente, autônoma e livre, o Estado é fraco, colonizado e servo.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Francisco de Guimaraens - Gostaria de dizer que o momento político e social do país é muito preocupante do ponto de vista do exercício do poder constituinte. Considerando os diversos tipos de discurso de ódio e de intolerância difundidos no Brasil, as frequentes exceções judiciárias quanto à aplicação das garantias penais, a maré montante punitivista que atinge a sociedade brasileira e se exprime legislativamente, como no caso da lei contra o terrorismo, e o julgamento de exceção sobre um crime de responsabilidade inexistente. Julgamento esse conduzido por um parlamentar que, além de desconsiderar normas constitucionais reguladoras do procedimento de reforma constitucional por duas vezes em 2015, é réu em processo criminal em trâmite no STF. Nesse cenário as condições de exercício do poder constituinte e de ampliação e aprofundamento dos direitos conquistados desde a promulgação da Constituição de 1988 estão sob evidente ameaça daquilo que há de pior dentre todas as formas constituídas de poder na sociedade brasileira.


Por Leslie Chaves
Notas:
 
[1] Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 publicou o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Em seguida, publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005), também com Michael Hardt – sobre esta obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. O último livro da “trilogia” entre os dois autores, Commonwealth (USA: First harvaard University Press paperback, 2011), ainda não foi publicado em português. (Nota da IHU On-Line)

[2] Materialismo histórico: Tese do marxismo segundo a qual o modo de produção da vida material condiciona a vida social, política e espiritual. É um método de compreensão e análise da história, das lutas e das evoluções econômicas e políticas. Essa tese foi definida e utilizada por Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo e Lênin. (Nota da IHU On-Line)

[3] Nicolau Maquiavel (1469-1527): historiador, filósofo, dramaturgo, diplomata e cientista político italiano do Renascimento. É reconhecido como fundador da ciência política moderna por escrever sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser. Separou a ética da política. Sua obra mais famosa, O Príncipe, foi dedicada a Lourenço de Médici II. Confira a edição 427 da IHU On-Line de 16-09-2013, A política desnudada. Cinco séculos de O Príncipe, de Maquiavel. (Nota da IHU On-Line)

[4] Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632–1677): filósofo holandês. Sua filosofia é considerada uma resposta ao dualismo da filosofia de Descartes. Foi considerado um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da Filosofia Moderna e o fundador do criticismo bíblico moderno. Confira a edição 397 da IHU On-Line, de 06-08-2012, intitulada Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamento. (Nota da IHU On-Line)

[5] Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Leia a edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx. Também sobre o autor, confira a edição número 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. Leia, igualmente, a entrevista Marx: os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira à edição 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010. A IHU On-Line preparou uma edição especial sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central da obra de Marx O Capital. (Nota da IHU On-Line)

[6] Michael Hardt (1960): teórico literário americano e filósofo político radicado na Universidade de Duke. Com Antonio Negri escreveu os livros internacionalmente famosos Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003) e Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005). (Nota da IHU On-Line)

[7] Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867): poeta e teórico da arte francês. É considerado um dos precursores do Simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX. Em 1857 lança As flores do mal, contendo 100 poemas. O livro é acusado de ultrajar a moral pública. (Nota da IHU On-Line)

[8] Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do martelo e do crepúsculo. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença — Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência, concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia. Na edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à tirania do sentido, com Danilo Bilate. (Nota da IHU On-Line)

[9] Sigmund Freud (1856-1939): neurologista, fundador da psicanálise. Interessou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como método a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas pulsões, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da associação livre. Estes elementos tornaram-se bases da psicanálise. Freud nos trouxe a ideia de que somos movidos pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes foram controversos na Viena do século XIX, e continuam ainda muito debatidos hoje. A edição 179 da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mestre da suspeita. A edição 207, de 04-12-2006, tem como tema de capa Freud e a religião. A edição 16 dos Cadernos IHU em formação tem como título Quer entender a modernidade? Freud explica.(Nota da IHU On-Line)

[10] Albert Einstein (1879-1955): físico alemão naturalizado americano. Premiado com o Nobel de Física em 1921, é famoso por ser autor das teorias especial e geral da relatividade e por suas ideias sobre a natureza corpuscular da luz. É, provavelmente, o físico mais conhecido do século XX. Sobre ele, confira a edição nº 135 da Revista IHU On-Line, sob o título Einstein. 100 anos depois do Annus Mirabilis e a edição 141, de 16-05-2005, chamada Terra habitável: um desafio para a humanidade. A Unisinos produziu, a pedido do IHU, um vídeo de 15 minutos em função do Simpósio Terra Habitável, ocorrido de 16 a 19-05-2005, em homenagem ao cientista alemão, do qual o professor Carlos Alberto dos Santos participou, concedendo uma entrevista. (Nota da IHU On-Line)

[11] Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos, singularidades, conceitos que nos impelem a transformar a nós mesmos, incitando-nos a produzir espaços de criação e de produção de acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line)

Fonte: IHU

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