PICICA: "O desespero e o maniqueísmo
que temperam algumas análises ao redor dos últimos acontecimentos
focalizam toda a nossa atenção no impeachment, deixando-nos numa
situação de dependência e expectativa do que os políticos e instituições
podem fazer por nós. Na história da esquerda, há toda uma tradição de
lutas reivindicativas que tiveram os partidos institucionalizados e o
Estado como principais mediadores para a transformação social. Contudo,
no vazio de representação em que giram as instituições, esse tipo de
ação se tornou limitado demais. É preciso aprofundar o pensamento e a
estratégia para uma ação política mais autônoma e produtiva
institucionalmente, que encontre na sociedade os protagonistas das
mudanças. Uma construção política de baixo para cima, a partir do social
em seus pontos de atrito e antagonismo. É o que tem acontecido, por
exemplo, na luta dos estudantes que ocuparam suas escolas em São Paulo,
Goiás e Rio de Janeiro, reinventado a rotina escolar e revitalizando os
espaços da educação."
Contra o desespero, construir a autonomia
Por Renan Porto, UniNômade—
—
Com a aprovação do
impeachment na Câmara de Deputados, as redes sociais foram tomadas por
uma onda de desespero e maniqueísmo. Porém, um maniqueísmo débil, sem
um lado realmente “bom”. Nesta disputa pelo laço suicida, a sociedade é
mobilizada numa luta que não vai produzir nada de alternativo para o
terreno institucional ou, quiçá, social. Os discursos que se propõem
como desvios ao furacão em que fomos engolidos acabam abafados pela
própria força de seu sopro.
Já é bastante repetido que
foi o próprio PT quem cavou a sua cova durante os mandatos à frente do
governo federal, fazendo diversas alianças e concessões com o PMDB, que
agora o apunhala pelas costas. Que Eduardo Cunha e a sua trupe sejam um
bando de vigaristas e que todo esse processo de impeachment uma grande
tramoia, disso todos já sabemos. Só não enxerga quem não quer. Mas
precisamos de um debate que vá além desta constatação e apresente outros
horizontes para a transformação, que encare de uma vez que o governo do
PT já acabou de qualquer jeito, antes da efetivação do impeachment. O
que importa, agora, é lidar com o cenário pós-PT.
É preciso resistir ao
desespero que reduz a percepção da conjuntura a uma grande cena de
devastação. Cair nessa percepção pode imobilizar possibilidades de
pensamento e agenciamento social a partir dos acontecimentos. É claro
que a situação não é boa e que as forças conservadoras se esforçam para
hegemonizar o espaço público. Não devemos realmente permitir esse
avanço, mas essa constatação não pode significar uma perda de
perspectiva produtiva: precisamos investir nossa potência de ação num
caminho que não seja vazio. Lutar pela conservação de um governo já
derrotado só vai permitir que a indignação e o desejo social sejam
canalizados pelos movimentos contrários ao projeto que esse governo
busca simbolizar e representar politicamente. Uma canalização que tem
feito, por exemplo, o Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por Kim
Katiguiri.
Além disso, a conservação do
governo do PT não seria garantia sequer para a manutenção do estado
atual das coisas, já que ao longo dele têm avançado políticas tão
retrógradas como, por exemplo, a lei antiterrorismo, proposta em regime
de urgência pela própria Dilma e por ela sancionada (uma de suas últimas
medidas). Enquanto isso, mesmo depois de 13 anos da estrela vermelha no
poder, as chacinas nas favelas continuam, a reforma agrária não
aconteceu, o desastre em Mariana (o “Chernobyl brasileiro”) foi
praticamente ignorado, a construção da usina de Belo Monte continua
avançando, os direitos trabalhistas e sociais vêm sendo erodidos em nome
do ajuste fiscal, as tarifas de energia elétrica e combustíveis seguem
elevadas, a taxa de desemprego sobe e a inflação se mantém alta, os
grandes cortes na educação comprometem bolsas, projetos, pesquisas. Não
podemos esquecer que, em pouco mais de um ano do segundo mandato de
Dilma, vimos todo esse retrocesso ocorrer. Apesar da possibilidade de
uma aceleração desse programa já em curso por um governo encabeçado pelo
ex-aliado PMDB, a continuação do governo Dilma não seria sinônimo de
barrar tal avanço conservador.
Muitas pessoas temem a
possibilidade de volta aos anos de chumbo da ditadura, com o retorno de
um Estado autoritário. Ora, em muitas favelas e periferias do Brasil, a
presença do Estado se dá através da intervenção militar do exército e da
polícia militar, fazendo desses territórios zonas de produção de morte
(tanatopolítica). Também já é uma realidade a repressão violenta aos
protestos de rua que reivindiquem direitos e não obedeçam à ordem
autorizada de identidades polarizadas que, uma contra a outra, têm
permissão para protestar porque participam do jogo da cena política
esvaziada. Com isso, vivemos uma situação em que não parece mais
possível o dissenso e a intervenção por aqueles fora do jogo da
polarização, desautorizados a protestar porque não assumem “um lado”,
segundo o policiamento de si e dos outros imposto pelo consenso em
vigor. O fato é que o golpe à democracia já acontece nas ruas faz tempo.
Também é interessante observar que a
forma como o capitalismo contemporâneo opera requer um mínimo de
liberdades individuais. No livro “O governo das desigualdades: crítica
da insegurança neoliberal”, Maurizio Lazzarato reflete a partir do
pensamento de Foucault:
“O
neoliberalismo é, segundo Foucault, um modo de governo que consome a
liberdade, e que, para se fazer, deve primeiro produzi-la e organizá-la.
A liberdade não é para os neoliberais um valor natural que preexiste à
ação governamental e a qual se trataria de garantir o exercício (como no
liberalismo clássico), mas é algo que o mercado tem necessidade para
poder funcionar. A liberdade que o liberalismo incita, solicita, produz é
simplesmente o correlato dos dispositivos de segurança” (p. 29).
Na atual forma do
capitalismo, cada indivíduo é transformado numa “empresa individual”,
empreendedor de si mesmo, e para tanto requer um mínimo de liberdade
para investir em sua subjetividade, numa subjetividade ajustada para as
demandas do mercado por eficiência e competividade. O poder de sujeição
do indivíduo se reinventa, sendo que agora “o homem não é mais o homem
confinado, mas o homem endividado”, diz Deleuze, em seu “Post-scriptum
sobre as sociedades de controle”. Nesse denso ensaio, Deleuze fala da
passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle.
Para além do par repressão e ideologia, o capitalismo atual trabalha
investindo e organizando os desejos através de modulações das liberdades
permitidas, de regulações desde dentro da formação dos próprios
sujeitos, mais penetrante do que somente reprimindo e disciplinando.
O mercado é hoje o principal
financiador da política e usurpa o Estado para se fortalecer, criando
uma indiferenciação entre o que é Público e Privado. O que acontece, por
exemplo, através do financiamento privado das campanhas eleitorais,
como também em qualquer outra instituição em que o sujeito que ocupe uma
função pública e dela faça uso de acordo com interesses privados.
Então, sendo as empresas (o mercado, a sociedade-empresa) as principais
representadas na política, as quais necessitam deste contingente de
liberdade para seu funcionamento, seria difícil uma redução total das
liberdades individuais protegidas pelo Estado, sob pena de paralisar o
funcionamento do capital. Claro que a liberdade requerida pelo mercado é
limitada, sobretudo é a liberdade para consumir. Mas, o paradoxo é que
este mínimo de autonomia individual, esta brecha do sistema, possibilita
um ponto de partida para a reinvenção de formas de resistência e o
agenciamento de novas lutas.
Digo isso não para garantir
alguma segurança, mas, a título de contra-argumento aos discursos
desesperados e maniqueístas que estão aparecendo por aí. Tento afirmar a
possibilidade de esperança, um afeto que potencializa a capacidade de
ação. Apesar da história não seguir um roteiro progressivo e linear,
sendo possível, sim, um grande retrocesso na direção de uma sociedade
menos livre, tal retrocesso não vem sem resistência, inclusive, em
alguns casos, por parte de organizações do mercado.
O desespero e o maniqueísmo
que temperam algumas análises ao redor dos últimos acontecimentos
focalizam toda a nossa atenção no impeachment, deixando-nos numa
situação de dependência e expectativa do que os políticos e instituições
podem fazer por nós. Na história da esquerda, há toda uma tradição de
lutas reivindicativas que tiveram os partidos institucionalizados e o
Estado como principais mediadores para a transformação social. Contudo,
no vazio de representação em que giram as instituições, esse tipo de
ação se tornou limitado demais. É preciso aprofundar o pensamento e a
estratégia para uma ação política mais autônoma e produtiva
institucionalmente, que encontre na sociedade os protagonistas das
mudanças. Uma construção política de baixo para cima, a partir do social
em seus pontos de atrito e antagonismo. É o que tem acontecido, por
exemplo, na luta dos estudantes que ocuparam suas escolas em São Paulo,
Goiás e Rio de Janeiro, reinventado a rotina escolar e revitalizando os
espaços da educação.
Não seria possível fazer isso
com outras instituições, no grande horizonte de ocupar as nossas
cidades? Por exemplo, pensar numa reapropriação de um hospital por parte
dos seus usuários, amigos e familiares, e debater seus gastos, as
políticas voltadas para ele, inclusive agir diretamente sobre a
instituição de saúde para melhorar as condições de acesso, de cuidado,
de gestão democrática. Não seria também possível a construção de
plataformas eleitorais municipalistas que possibilitem mandatos com mais
participação social, como aliás se vem tentando em algumas cidades,
como em Belo Horizonte ou Nova Iguaçu?
Por fim, realmente
não podemos deixar de lado as tensões da macropolítica, como se nada
tivéssemos a ver com elas. Porque também estamos sujeitos a ela.
Contudo, este texto objetiva justamente descentralizar a atenção deste
plano que parece ocupar espaço demais nos últimos tempos, e chamar a
atenção para outros caminhos, em que possamos voltar a ser agentes das
lutas e não apenas espectadores. Enquanto não formos capazes de
reconquistar espaços de mais autonomia, a esfera macropolítica da
disputa do Estado continuará sendo um grande centro de poder que nos
sequestra a agência, um poder capaz de mandos e desmandos sobre as
nossas vidas. Enquanto isso, os mesmos dramas poderão estar sempre se
repetindo.
Fonte: UNINÔMADE
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