abril 16, 2016

Freud e Charcot. POR Clícia Marina Magalhães Pereira (STYLETE LACANIANO)

PICICA: "Freud compara Charcot a Pinel, pois considera que ele trouxe um estatuto de dignidade às histéricas, consideradas como “doentes detestáveis”, frase atribuída a Griesinger - fundador da psiquiatria alemã - por Ilza Veith (Quinet, 2005). Charcot confere autenticidade aos sintomas, pois, naquela época, nenhum médico respeitável se dispunha a trabalhar com a histeria. Segundo Freud (1910), os histéricos são privados da simpatia dos médicos." 


Freud e Charcot 

 

Clícia Marina Magalhães Pereira

clicia.magalhaes@uol.com.br


Vejamos um pouco da história de Freud. Na juventude, Freud sente necessidade de compreender alguma coisa dos enigmas do mundo. Entra para a faculdade de Medicina e se dedica a pesquisas, inicialmente no campo na Zoologia e da Química, pois a prática médica não desperta o seu interessa. Em seguida, vai para o laboratório de fisiologia de Brücke, fisiologia essa ligada à histologia na época, e se põe a estudar tecidos nervosos dos animais inferiores. Se a tarefa de pesquisa o interessa, outro aspecto da ciência, a entediante exatidão não estava em sua natureza. Contudo, de alguma forma a influência de Brücke se mantém através da Escola de Helmholtz, segundo a qual “nenhumas forças, a não ser as físico-químicas comuns, acham-se em ação ativa no interior do organismo” (Du bois apud Jones). Entende-se que a psicologia deveria estar sujeita às mesmas leis que regem a química e a física. Freud mantém concepções ligadas a essa escola e as aplica ao organismo, contudo passa a rejeitar quaisquer bases anatômicas para as mesmas.



Retomando a história de Freud, no curso de medicina, ele se interessa pelas aulas de psiquiatria de Meynert. Posteriormente, tendo em vista razões pecuniárias, é orientado a estudar as doenças nervosas e iniciar a prática médica, pois como pesquisador não obtinha seu sustento. Todavia, não havia, em Viena, especialistas nesse ramo da medicina. “À distância, brilhava o grande nome de Charcot” (Freud, 1925). Faz o plano de ir lá. Por outro lado, continuava, nos anos seguintes, a saber tudo sobre as doenças orgânicas do sistema nervoso. Sobre as neuroses nada compreendia, mas já se colocava questões, pois tomara conhecimento de Anna O. (Bertha Pappenheim) através de Breuer. Em 1885 consegue uma bolsa de estudos, em função do inestimável testemunho de Brücke, e vai para Paris. Torna-se aluno na Salpêtrière, como um dos numerosos alunos estrangeiros. Todavia, Charcot só passa a lhe dar atenção quando Freud diz que faria a tradução de suas Leçons para o alemão.



Essa experiência com Charcot é fundamental para Freud transferir-se da neuropatologia para a psicopatologia. Da ciência física para a psicologia. Foi a personalidade de Charcot que marcou Freud, como ele comenta em uma carta para sua noiva. Dono de uma personalidade fascinante, com um toque de gênio, suas aulas eram inesquecíveis. Sente-se profundamente abalado em suas metas e opiniões ao perceber que Charcot demonstrava que havia uma verdade no sintoma histérico.



Segundo Quinet (Charcot, 2003), até Charcot, a palavra histeria permanecia presa à concepção de Charles Lasègue (1816-1883) que afirma que a histeria nunca poderia vir a ser definida, pois seus sintomas não eram constantes e por isso nunca constituiriam um tipo. A apreensão da histeria era feita com base em sinais negativos de doença orgânica, em múltiplos preconceitos - irritação da genitália, inespecificidade, simulação. Charcot, por sua vez, propõe um tipo para a histeria e descreve-a à exaustão tanto em mulheres, quanto em homens e até em crianças.



Vejamos, agora, um pouco da história de Charcot. Ele estuda medicina em Paris e conclui seus estudos com uma tese sobre reumatismo crônico, vindo posteriormente a publicar diversos artigos sobre medicina em geral. Naquela época, não havia as especialidades médicas bem definidas. Em 1862, torna-se médico no hospício da Salpêtrière - tratava-se de um hospital de mulheres, casos crônicos, mas que, mais adiante, sob a influência de Charcot, passa também a atender homens em ambulatório. Homem de grande influência, a partir de 1882 aparelham o seu serviço, colocando à sua disposição, laboratório de fotografia, exame oftalmológico, otorrinológico e até um museu de patologia com moldes em gesso de paralisias, contraturas, etc. Ele fotografava, media, examinava, estudava milimetricamente os espasmos, paralisias, contraturas.



Inicialmente, Charcot havia constituído o seu campo de estudo na neurologia, em que se mantém até 1870, ficando conhecido na França e no exterior. Mas, “em meio a toda a desconsolação das paralisias, espasmos e convulsões” (Freud, 1893), a maioria não constituíam quadros orgânicos. Em 1870 considera concluídos seus estudos sobre a neurologia e passa a dedicar-se à neurose e, em especial à histeria. Descreve e classifica os fenômenos e propõe um tipo para a histeria, a “grande histeria”, baseado no que seria hoje chamado pela medicina de “pseudocrise”. Como num teatro, ele apresenta os pacientes semanalmente, hipnotizando-os e expondo os seus ataques, contraturas e paralisias diante da plateia de médicos, artistas e do público em geral. Ele produzia e retirava os fenômenos diante da audiência. Às vezes um, outras vezes mais de um paciente de uma vez, comparando-os. Segundo Quinet (Charcot, 2003), “foram estas aulas públicas que o jovem Freud assistiu durante seu estágio de outubro de 1885 a fevereiro de 1886” e que alterou a sua perspectiva de vida.



Em 1878, Charcot inicia o estudo e a prática do hipnotismo, desencadeando o interesse científico pelo hipnotismo. Segundo Charcot (2003), a hipnose é uma neurose produzida, de fundo histérico, sendo as histéricas os sujeitos nos quais melhor se pode notar suas manifestações. Demonstra, então, que em pessoas predispostas, ele podia provocar sintomas, através do hipnotismo, idênticos aos da histeria espontânea. Assim, qualquer uma que fosse a base neurológica desconhecida, os sintomas podiam ser abolidos pelo emprego de apenas ideias.



Conforme Quinet (Charcot, 2003), Charcot “descreve e classifica os fenômenos para mostrar que há uma lei subjacente à sua ocorrência”. O tipo chamado “grande histeria” era o ataque histérico completo, mapeado e subdividido em suas 4 fases que podem aparecer em conjunto ou isoladamente. Tinha à sua disposição todo o pavilhão de convulsionários.



Freud compara Charcot a Pinel, pois considera que ele trouxe um estatuto de dignidade às histéricas, consideradas como “doentes detestáveis”, frase atribuída a Griesinger - fundador da psiquiatria alemã - por Ilza Veith (Quinet, 2005). Charcot confere autenticidade aos sintomas, pois, naquela época, nenhum médico respeitável se dispunha a trabalhar com a histeria. Segundo Freud (1910), os histéricos são privados da simpatia dos médicos.



Um aspecto apontado por Charcot se refere ao que ele denomina histeria traumática. Casos em que o paciente sofre um traumatismo no corpo e passa a apresentar paralisias e/ou anestesias. Exemplifica com um caso de uma mãe que dá um tapa num filho e fica com a mão paralisada, ou de um cocheiro que cai do alto de sua carruagem e seu ombro escora a queda. Após 2 ou 3 dias passa a apresentar uma paralisia completa do membro superior. Vale ressaltar que posteriormente, Freud compara o trauma psíquico (o acontecimento patogênico), que ele encontra subjacente à histeria, com o trauma físico de Charcot (Freud, 1910). O que importa é o susto, a emoção.



Além disso, Charcot descreve inúmeros casos de histeria masculina em homens vigorosos, ferroviários, não afeminados, retirando dela o preconceito de gênero. E, ainda, foi o grupo da Salpêtrière, principalmente, que estabeleceu que a histeria sempre existiu na história da civilização, ao encontrá-la nas epidemias de possessão demoníaca medievais, nas biografias dos santos e em seus êxtases. Ademais, o grupo de Charcot faz uma extensa pesquisa na história das curas milagrosas para concluir que se trata do mesmo fenômeno, fatos que ainda encontramos na atualidade.



Outro ponto marcado por Charcot é a sua observação de que as histéricas desde aquela época, muitas vezes, chegavam às mesas de cirurgia, como na contemporaneidade. Ele vê muitas mulheres e jovens voltando da Suíça sem os ovários, até em função de sua afirmação de que algumas histéricas possuíam “pontos histerógenos” ovarianos. A retirada de um ponto histerógeno não cura a histeria.



Ademais, em casos de histeria e déficit intelectual ele enfatiza “que, entre os agentes provocadores da histeria, ao lado das grandes perturbações morais, dos traumatismos, das intoxicações etc, deve-se inserir a miséria, a miséria com toda sua dureza, com toda sua crueldade (Charcot, 2003).” Segundo ele, a causa da histeria está na herança, mas ela conta com agentes provocadores.



Contudo, Charcot só objetivava descrever os fenômenos. Não atentava para a etiologia nem para a terapêutica. De forma alguma postulou a causalidade psíquica para os sintomas histéricos. Para ele, não há lesão anatômica neurológica, mas há uma lesão dinâmica que um dia será encontrada. Concluindo, lembramos que, segundo Aristóteles, o bom discípulo é aquele que supera o mestre. Se Freud levou adiante os ensinamentos de Charcot e as descobertas de Breuer e Anna O., fazendo surgir a psicanálise, dois discípulos de Charcot, Babinski e Pierre Janet, seguiram o caminho inverso: retomaram o preconceito com a histeria. Babinski denigre-a dizendo que onde há uma emoção sincera não há lugar para a histeria, criando o termo pitiatismo (cura pela persuasão), o vulgo “piti”. E Janet, por sua vez, define a histeria como “uma forma de alteração degenerativa do sistema nervoso, que se manifesta pela fraqueza congênita do poder de síntese psíquica” (Freud, 1910). Retroceder é um risco, pois está sempre no horizonte do possível.

  
Charcot, Jean-Martin. Grande histeria. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Rios Ambiciosos, 2003

Freud, Sigmund. (1886) “Prefácio à tradução das conferências sobre as doenças do sistema nervoso, de Charcot”, ESB, vol I, Rio de Janeiro: Imago, 1976

_____________ (1892-94) “Prefácio e notas de rodapé à tradução de leçons du mardi”, ESB, vol I, Rio de Janeiro: Imago, 1976

______________ (1893) “Charcot”, ESB, vol III, Rio de Janeiro: Imago, 1976

______________ (1910) “Cinco lições de psicanálise”, ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1976

 ______,________ (1914) “A história do movimento psicanalítico”, ESB, vol XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1976

______________ (1925) “Um estudo autobiográfico”, ESB, vol XX, Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Jones, Ernest. Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, s/d.

Quinet, Antonio. A lição de Charcot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005


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