PICICA: "Freud compara Charcot a
Pinel, pois considera que ele trouxe um estatuto de dignidade às
histéricas, consideradas como “doentes detestáveis”, frase atribuída a
Griesinger - fundador da psiquiatria alemã - por Ilza Veith (Quinet,
2005). Charcot confere autenticidade aos sintomas, pois, naquela época,
nenhum médico respeitável se dispunha a trabalhar com a histeria.
Segundo Freud (1910), os histéricos são privados da simpatia dos
médicos."
Freud e Charcot
Clícia Marina Magalhães Pereira
clicia.magalhaes@uol.com.br
Vejamos um pouco da
história de Freud. Na juventude, Freud sente necessidade de compreender
alguma coisa dos enigmas do mundo. Entra para a faculdade de Medicina e
se dedica a pesquisas, inicialmente no campo na Zoologia e da Química,
pois a prática médica não desperta o seu interessa. Em seguida, vai para
o laboratório de fisiologia de Brücke, fisiologia essa ligada à
histologia na época, e se põe a estudar tecidos nervosos dos animais
inferiores. Se a tarefa de pesquisa o interessa, outro aspecto da
ciência, a entediante exatidão não estava em sua natureza. Contudo, de
alguma forma a influência de Brücke se mantém através da Escola de
Helmholtz, segundo a qual “nenhumas forças, a não ser as físico-químicas
comuns, acham-se em ação ativa no interior do organismo” (Du bois apud
Jones). Entende-se que a psicologia deveria estar sujeita às mesmas leis
que regem a química e a física. Freud mantém concepções ligadas a essa
escola e as aplica ao organismo, contudo passa a rejeitar quaisquer
bases anatômicas para as mesmas.
Retomando a história de
Freud, no curso de medicina, ele se interessa pelas aulas de psiquiatria
de Meynert. Posteriormente, tendo em vista razões pecuniárias, é
orientado a estudar as doenças nervosas e iniciar a prática médica, pois
como pesquisador não obtinha seu sustento. Todavia, não havia, em
Viena, especialistas nesse ramo da medicina. “À distância, brilhava o
grande nome de Charcot” (Freud, 1925). Faz o plano de ir lá. Por outro
lado, continuava, nos anos seguintes, a saber tudo sobre as doenças
orgânicas do sistema nervoso. Sobre as neuroses nada compreendia, mas já
se colocava questões, pois tomara conhecimento de Anna O. (Bertha
Pappenheim) através de Breuer. Em 1885 consegue uma bolsa de estudos, em
função do inestimável testemunho de Brücke, e vai para Paris. Torna-se
aluno na Salpêtrière, como um dos numerosos alunos estrangeiros.
Todavia, Charcot só passa a lhe dar atenção quando Freud diz que faria a
tradução de suas Leçons para o alemão.
Essa experiência com
Charcot é fundamental para Freud transferir-se da neuropatologia para a
psicopatologia. Da ciência física para a psicologia. Foi a personalidade
de Charcot que marcou Freud, como ele comenta em uma carta para sua
noiva. Dono de uma personalidade fascinante, com um toque de gênio, suas
aulas eram inesquecíveis. Sente-se profundamente abalado em suas metas e
opiniões ao perceber que Charcot demonstrava que havia uma verdade no
sintoma histérico.
Segundo Quinet (Charcot,
2003), até Charcot, a palavra histeria permanecia presa à concepção de
Charles Lasègue (1816-1883) que afirma que a histeria nunca poderia vir a
ser definida, pois seus sintomas não eram constantes e por isso nunca
constituiriam um tipo. A apreensão da histeria era feita com base em
sinais negativos de doença orgânica, em múltiplos preconceitos -
irritação da genitália, inespecificidade, simulação. Charcot, por sua
vez, propõe um tipo para a histeria e descreve-a à exaustão tanto em
mulheres, quanto em homens e até em crianças.
Vejamos, agora, um pouco
da história de Charcot. Ele estuda medicina em Paris e conclui seus
estudos com uma tese sobre reumatismo crônico, vindo posteriormente a
publicar diversos artigos sobre medicina em geral. Naquela época, não
havia as especialidades médicas bem definidas. Em 1862, torna-se médico
no hospício da Salpêtrière - tratava-se de um hospital de mulheres,
casos crônicos, mas que, mais adiante, sob a influência de Charcot,
passa também a atender homens em ambulatório. Homem de grande
influência, a partir de 1882 aparelham o seu serviço, colocando à sua
disposição, laboratório de fotografia, exame oftalmológico,
otorrinológico e até um museu de patologia com moldes em gesso de
paralisias, contraturas, etc. Ele fotografava, media, examinava,
estudava milimetricamente os espasmos, paralisias, contraturas.
Inicialmente, Charcot
havia constituído o seu campo de estudo na neurologia, em que se mantém
até 1870, ficando conhecido na França e no exterior. Mas, “em meio a
toda a desconsolação das paralisias, espasmos e convulsões” (Freud,
1893), a maioria não constituíam quadros orgânicos. Em 1870 considera
concluídos seus estudos sobre a neurologia e passa a dedicar-se à
neurose e, em especial à histeria. Descreve e classifica os fenômenos e
propõe um tipo para a histeria, a “grande histeria”, baseado no que
seria hoje chamado pela medicina de “pseudocrise”. Como num teatro, ele
apresenta os pacientes semanalmente, hipnotizando-os e expondo os seus
ataques, contraturas e paralisias diante da plateia de médicos, artistas
e do público em geral. Ele produzia e retirava os fenômenos diante da
audiência. Às vezes um, outras vezes mais de um paciente de uma vez,
comparando-os. Segundo Quinet (Charcot, 2003), “foram estas aulas
públicas que o jovem Freud assistiu durante seu estágio de outubro de
1885 a fevereiro de 1886” e que alterou a sua perspectiva de vida.
Em 1878, Charcot inicia o
estudo e a prática do hipnotismo, desencadeando o interesse científico
pelo hipnotismo. Segundo Charcot (2003), a hipnose é uma neurose
produzida, de fundo histérico, sendo as histéricas os sujeitos nos quais
melhor se pode notar suas manifestações. Demonstra, então, que em
pessoas predispostas, ele podia provocar sintomas, através do
hipnotismo, idênticos aos da histeria espontânea. Assim, qualquer uma
que fosse a base neurológica desconhecida, os sintomas podiam ser
abolidos pelo emprego de apenas ideias.
Conforme Quinet
(Charcot, 2003), Charcot “descreve e classifica os fenômenos para
mostrar que há uma lei subjacente à sua ocorrência”. O tipo chamado
“grande histeria” era o ataque histérico completo, mapeado e subdividido
em suas 4 fases que podem aparecer em conjunto ou isoladamente. Tinha à
sua disposição todo o pavilhão de convulsionários.
Freud compara Charcot a
Pinel, pois considera que ele trouxe um estatuto de dignidade às
histéricas, consideradas como “doentes detestáveis”, frase atribuída a
Griesinger - fundador da psiquiatria alemã - por Ilza Veith (Quinet,
2005). Charcot confere autenticidade aos sintomas, pois, naquela época,
nenhum médico respeitável se dispunha a trabalhar com a histeria.
Segundo Freud (1910), os histéricos são privados da simpatia dos
médicos.
Um aspecto apontado por
Charcot se refere ao que ele denomina histeria traumática. Casos em que o
paciente sofre um traumatismo no corpo e passa a apresentar paralisias
e/ou anestesias. Exemplifica com um caso de uma mãe que dá um tapa num
filho e fica com a mão paralisada, ou de um cocheiro que cai do alto de
sua carruagem e seu ombro escora a queda. Após 2 ou 3 dias passa a
apresentar uma paralisia completa do membro superior. Vale ressaltar que
posteriormente, Freud compara o trauma psíquico (o acontecimento
patogênico), que ele encontra subjacente à histeria, com o trauma físico
de Charcot (Freud, 1910). O que importa é o susto, a emoção.
Além disso, Charcot
descreve inúmeros casos de histeria masculina em homens vigorosos,
ferroviários, não afeminados, retirando dela o preconceito de gênero. E,
ainda, foi o grupo da Salpêtrière, principalmente, que estabeleceu que a
histeria sempre existiu na história da civilização, ao encontrá-la nas
epidemias de possessão demoníaca medievais, nas biografias dos santos e
em seus êxtases. Ademais, o grupo de Charcot faz uma extensa pesquisa na
história das curas milagrosas para concluir que se trata do mesmo
fenômeno, fatos que ainda encontramos na atualidade.
Outro ponto marcado por
Charcot é a sua observação de que as histéricas desde aquela época,
muitas vezes, chegavam às mesas de cirurgia, como na contemporaneidade.
Ele vê muitas mulheres e jovens voltando da Suíça sem os ovários, até em
função de sua afirmação de que algumas histéricas possuíam “pontos
histerógenos” ovarianos. A retirada de um ponto histerógeno não cura a
histeria.
Ademais, em casos de
histeria e déficit intelectual ele enfatiza “que, entre os agentes
provocadores da histeria, ao lado das grandes perturbações morais, dos
traumatismos, das intoxicações etc, deve-se inserir a miséria, a miséria
com toda sua dureza, com toda sua crueldade (Charcot, 2003).” Segundo
ele, a causa da histeria está na herança, mas ela conta com agentes
provocadores.
Contudo, Charcot só
objetivava descrever os fenômenos. Não atentava para a etiologia nem
para a terapêutica. De forma alguma postulou a causalidade psíquica para
os sintomas histéricos. Para ele, não há lesão anatômica neurológica,
mas há uma lesão dinâmica que um dia será encontrada. Concluindo,
lembramos que, segundo Aristóteles, o bom discípulo é aquele que supera o
mestre. Se Freud levou adiante os ensinamentos de Charcot e as
descobertas de Breuer e Anna O., fazendo surgir a psicanálise, dois
discípulos de Charcot, Babinski e Pierre Janet, seguiram o caminho
inverso: retomaram o preconceito com a histeria. Babinski denigre-a
dizendo que onde há uma emoção sincera não há lugar para a histeria,
criando o termo pitiatismo (cura pela persuasão), o vulgo “piti”. E
Janet, por sua vez, define a histeria como “uma forma de alteração
degenerativa do sistema nervoso, que se manifesta pela fraqueza
congênita do poder de síntese psíquica” (Freud, 1910). Retroceder é um
risco, pois está sempre no horizonte do possível.
Charcot, Jean-Martin. Grande histeria. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Rios Ambiciosos, 2003
Freud,
Sigmund. (1886) “Prefácio à tradução das conferências sobre as doenças
do sistema nervoso, de Charcot”, ESB, vol I, Rio de Janeiro: Imago, 1976
_____________ (1892-94) “Prefácio e notas de rodapé à tradução de leçons du mardi”, ESB, vol I, Rio de Janeiro: Imago, 1976
______________ (1893) “Charcot”, ESB, vol III, Rio de Janeiro: Imago, 1976
______________ (1910) “Cinco lições de psicanálise”, ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1976
______,________ (1914) “A história do movimento psicanalítico”, ESB, vol XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1976
______________ (1925) “Um estudo autobiográfico”, ESB, vol XX, Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Jones, Ernest. Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, s/d.
Quinet, Antonio. A lição de Charcot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005
Fonte: STYLETE LACANIANO
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