PICICA: "O ser humano se entregando para o digital
é um fenômeno visível atualmente, por meio da pornografia ou mesmo em
alguns jogos online, em que o consumo frenético torna a pessoa
dependente, presa em um mundo imaterial. Então, Neuromancer nos
apresenta a uma questão tão atual como o seu ritmo e trama: Em que
ponto a vida da pessoa se funde com o mundo digital? Quando os dois
itens se tornam a sua realidade?"
William Gibson e as relações entre o digital e a realidade
Diferente
do usual, hoje irei falar sobre William Gibson, autor
américo-canadense de ficção cientifica que foi fundamental para a minha
vida como escritor: .
Ao reler sua obra mais famosa (e meu livro preferido), Neuromacer,
de 1984, percebo como Gibson pensou em conceitos que antecederam os
moldes contemporâneos da internet e como a ligação do individuo com o
ciberespaço se torna, em sua obra, uma coisa obscura – totalmente
relacionada com a atualidade, como a deep web, vícios digitais, etc.
A Matrix e a consciência coletiva
Em nada a Matrix de William Gibson se
parece com aquela do filme homônimo lançado em maio de 1999. Nem mesmo
ela tem relação com a internet do período de lançamento do livro, que
era praticamente um conceito fechado em pequenas redes ou usado apenas
como tecnologia governamental.
Na visão de Gibson, a Matrix é um transe
coletivo, um espaço digital em que as pessoas entram com sua consciência
para realizar operações legais e ilegais, como transações bancárias,
invasão de sistemas, compras, etc. Na Matrix, nós vivenciamos as
sensações, portanto, apesar de entrarmos com nossa consciência, podemos
sofrer danos físicos e mentais, por exemplo, ser atingido por um Black Ice, sistemas de defesa que pode causar morte cerebral às pessoas que tentam invadir aquilo que o Black Ice protege.
O conceito de transe interligado já era algo discutido na ficção cientifica. Pegamos o livro Os Três Estigmas de Palmer Eldritch
de Philip K.Dick, por exemplo, lançado em 1965, que discorre sobre um
alucinógeno que interliga os consumidores em um mundo imaginário. Philip
K.Dick teve muita influencia na técnica de confundir o leitor com
pequenas brincadeiras a respeito do que é ou não real, como nos livros Do Androids Dream of Electric Sheeps? e Minority Report. Mas em Neuromancer, Gibson pensou em algo mais palpável e sutil, inspirado no crescimento da tecnologia dos computadores no inicio dos anos 80.
O ser humano e o digital: uma relação já entrelaçada
O personagem principal, Case, é um
ex-hacker que fora isolado da Matrix após ter seu sistema nervoso
danificado por tentar roubar um de seus clientes. Case sonhava com a
Matrix que não podia mais visitar, gastou todas as suas economias em
consultas médicas sem resultados positivos e o encontramos, no inicio da
história, como um personagem vazio, perdido pelas ruas da cidade
japonesa de Chiba. Logo, ele é encontrado por Molly, uma samurai urbana
(Razor Girl) que o leva a Armitage, homem misterioso que lhe promete o
retorno ao ciberespaço em troca de seus serviços para um cliente não
identificado.
Descobrimos que o contratante de Case, na
verdade, é uma Inteligencia Artificial chamada Wintermute, que tem como
objetivo se fundir com sua outra metade, pertencente à família
empresarial Tessier/Ashpool. As IAs são itens caros e preciosos que
fornecem conhecimento e poder para os seus donos, os quais fazem pactos
com esses demônios digitais. Por esses motivos elas são supervisionadas e
controladas por instituições como a Turing, que caça os envolvidos no
plano de libertação de Wintermute em um momento da trama.
O ser humano se entregando para o digital
é um fenômeno visível atualmente, por meio da pornografia ou mesmo em
alguns jogos online, em que o consumo frenético torna a pessoa
dependente, presa em um mundo imaterial. Então, Neuromancer nos
apresenta a uma questão tão atual como o seu ritmo e trama: Em que
ponto a vida da pessoa se funde com o mundo digital? Quando os dois
itens se tornam a sua realidade?
Os nuances mistos do real e irreal no ciberespaço
A ideia de Gibson é de que a Matrix esta tão envolvida na vida das pessoas que começa a se fundir até mesmo com as noções que o individuo possui a respeito do sobrenatural e do espiritual, como vemos no personagem Dixie Flatline, uma memória gravada do hacker McCoy Pauley, já falecido há anos, que auxilia o protagonista em certos momentos da trama, em troca de seu apagamento do ciberespaço.
Quem nunca encontrou um perfil de alguém
falecido no Facebook cheio de mensagens recentes vindas de seus entes
queridos, demonstrando saudade e, em um breve momento, a ilusão de uma
resposta de retorno?
As emulações do ciberespaço começam a se
tornar algo muito próximo da realidade quando Wintermute usa a memória
de Case para se comunicar com ele próprio. Encarnando rostos conhecidos e
lugares do qual o protagonista conhece, além de revisitar momentos de
sua memória, a alterando um pouco.
Então, o que se torna real? Afinal,
Wintermute fala com Case por meio de suas próprias memórias, com isso,
usa da bagagem de realidade do próprio personagem.
Para quem já assistiu Matrix,
essa ideia pode parecer algo já datado: uma “realidade” forjada dentro
de um sistema de computador que irá nos despertar duvidas. Só que
Gibson, mesmo 15 anos antes da obra das irmãs Wachowski, não coloca esta
dúvida em primeiro plano para o leitor, ele a implementa em pequenas
situações, como quando Case conhece Neuromancer, a outra metade de
Wintermute, em uma praia cinza e fria, onde Linda Lee, sua ex-namorada
que havia morrido no inicio da história, habita o local ainda viva, mas
confusa.
O próprio sentido da palavra Neuromancer é
uma fusão das palavras Necromancer (o estudo e comunicação com os
mortos na cultura ocidental) e Neuro, de neurônio. Então, a IA se
comunica com os neurônios mortos das pessoas que já se foram.
Mas eles estão mortos na realidade ou
apenas na mente das pessoas que usam a Matrix? Quando alguém “morreu”
para você, será ele também estaria ali naquele setor do ciberespaço? Os unfollows e exclusão de amizade estariam ali para te dar um oi?
Baixe Neuromancer aqui e se divirta.
Fonte: COLUNAS TORTAS
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