PICICA: "A peça “O Beijo no Asfalto” de Nelson Rodrigues foi escrita há mais
de cinco décadas, mesmo assim o ar trágico PERSISTE COM SEU FRESCOR de
recém-saído da máquina de escrever. Teriam esta e outras obras não
obtido força suficiente para mudar a realidade? QUEREMOS mesmo mudá-la?
Podemos viver sem MÁRTIRES?"
Quando ainda nos beijamos no asfalto
“O Beijo no Asfalto” é uma tragédia em três atos executada com genialidade. Os valores, peculiaridades e a discussão da moralidade escolhidos por Nelson Rodrigues focam em sua época, porém os temas se expandem a uma ASSUSTADORA ATEMPORALIDADE, remetendo-se à natureza humana que pode se moldar aos diferentes contextos e épocas, mas SEM PERDER SEU CONTEÚDO e, por vezes, fim trágico.
Em suas obras, Nelson Rodrigues nos expõe a VIDA – ou melhor, uma VERSÃO genuína da vida que cada um entra em contato em graus bem variáveis e que, mesmo assim, são histórias verídicas da sociedade, da vida REAL.
Nos diálogos, o ser humano é exposto e o verdadeiro jeito de se pensar vem à tona. Assim, percebemos a verdadeira face dos personagens, encoberta e não admitida pelos próprios, cada um com sua razão (ódio de si mesmo, da sociedade, vergonha, falta de questionamentos, desinteresse pela verdade, medo desta, condenação massiva... Tantos motivos quanto o número de personagens no livro... Na vida!).
A peça se inicia na OPORTUNIDADE. O delegado Cunha precisava limpar seu nome, ou melhor, fazê-lo sumir da mídia. Como? Aliando-se ao seu “difamador”, o repórter Amado Ribeiro, um verdadeiro parasita, um predador que vai atrás de vítima a vitima por uma boa e rentável HISTÓRIA (VERDADEIRA OU NÃO).
Infelizmente, Amado Ribeiro USA E ABUSA DO PODER que tem (como o delegado Cunha) e suja o nome do jornalismo com seu sensacionalismo, falta de ética, intrigas sem investigação, minúsculas declarações retificadoras (quando presentes) e desinteresse pelas vidas prejudicadas pelas mentiras ditas no jornal.
Com esse início, logo me veio à mente o filme “Spotlight”. Algo mais tornava tão relevante sua premiação e visibilidade: o jornalismo sério, ético e sem nenhum Amado Ribeiro de protagonista (antagonista, na verdade). Estamos em um mundo que, a todo lado, vemos a falta de ética dos contentores do QUARTO PODER (a MÍDIA), tornando reconfortante - para não dizer INOVADOR - ver o mocinho nas redações de vez em quando.
A violência policial tem início nas primeiras páginas: a quebra de procedimentos, a violência descontrolada de um policial corrupto, manchando uma nobre profissão com tantos heróis. Cunha pode tudo, desrespeitar um funeral, chantagear uma viúva, bater na barriga de uma grávida e violentar uma mulher. Como diria o delegado, a polícia tem mesmo que “baixar o pau”! Seria esse tema ainda atual? Algo para se pensar...
E, então, é CRIADA uma “bomba” jornalística: Arandir, recém-casado e feliz, beija um homem em seu leito de morte. A razão? Um beijo, um pedido de um ser humano que morria, um gesto real de AMOR SEM MALÍCIA ao próximo. Para o mundo, era hora de ele e todos questionarem Arandir em todos os aspectos possíveis!
Enquanto a tragédia se instaurava, a ingênua e um tanto alienada Selminha, esposa do rapaz, não percebia a gravidade do ocorrido (havia gravidade até tal momento?), preocupando-se exclusivamente em provar a seu pai, Aprígio, que era uma boa e FELIZ dona de casa (uma NECESSIDADE que lembra muito as inúmeras fotos felizes e famílias perfeitas das redes sociais postadas a todo vapor).
Com o pai e todo mundo questionando o casamento de Selminha, ela própria se questiona (o quão delicadas seriam nossas relações?). A vizinhança não perdoa até Arandir repensar sobre o ocorrido, suas intenções, SUA VIDA.
A pergunta parece ridícula, mas atinge em cheio nossa mente: QUEM SABE MAIS SOBRE ARANDIR, ele ou a mídia, a sociedade? A ferrenha língua da população guarda na gaveta todo o moralismo, os costumes e a tão respeitada “bondade” para jorrar veneno e insultos aos envolvidos, revelando um PRAZER OCULTO.
De amigo, colega de trabalho, genro, cunhado e marido, Arandir passa a ser denegrido, motivo de piada, UM IMPURO EM MEIO AOS SANTOS. Suposto amante? Se o jornal disse, então é e ponto final! Nessas horas, é cada um por si e Deus por todos – pobre Deus!
Por interesse, já no funeral, a própria viúva denigre a história de seu marido na ideia de “antes ele ou os outros do que EU!”. Todos ficam (ficam mesmo?) HORRORIZADOS com a utilização de vidas pela mídia, todavia cada um que se salve como e enquanto puder.
O cotidiano de Arandir é posto em xeque. A polícia e a mídia fazem uso de tudo para provar seu ponto (usar ou não a aliança, o que fazia no centro, sua família...). Assim como no maravilhoso livro “O Estrangeiro” de Albert Camus em que a sociedade toda condena Meursault não por um assassinato, mas por seu papel na sociedade e pelos pontos mais triviais e incompreendidos de sua existência, como não chorar por sua mãe morta.
Selminha o ama de paixão, mas nega o beijo ao “viúvo”. Vêm à tona, na família, os amores proibidos, condenados pela sociedade. Aprígio não ousava falar o nome de Arandir por ciúme à filha? Por que mais? Dália, a irmã mais nova de Selminha, esconde seus sentimentos vedados por Arandir a ponto de se oferecer a ele em uma substituição quando Selminha enfim se decide sobre QUEM VENCE: A MÍDIA OU O AMOR.
O ser humano SE ADAPTOU À SOCIEDADE, aprendeu evolutivamente a seguir o bando e sobreviver como puder. Tal situação diária não forma, mas EXPÕE OS DIFERENTES PERSONAGENS da peça, da vida.
Amado sobrevive do sensacionalismo; Cunha, (do abuso) do poder; Selminha encobre suas frustrações e vive o (ou acredita, ao menos, no) sonho de casamento perfeito e de dona de casa maravilhosa. Aprígio guarda a sete chaves o que sente, assim como a filha Dália, EM NOME DE UMA VIDA EM SOCIEDADE com respeito, sem julgamento, sem medo, vergonha ou ódio vindo dos outros e de sua consciência (“feche os olhos que tudo desaparecerá”).
As pessoas vivem dos ATORES QUE LHES DIVERTEM por uma curta porção de tempo: Cunha, Arandir, assassinatos, escândalos, imoralidade. Queremos expor o que há de mais secreto em nós. Como se quiséssemos que Arandir admitisse NOSSOS PECADOS e livrasse nosso âmago da culpa.
Arandir é o MÁRTIR das pessoas: aquele que confessa os pecados da sociedade e é CRUCIFICADO, querendo ou não, em nome de todos.
Dia após dia, vivemos, vendemos e compramos isso. Como se desejássemos secretamente que Amado e Cunha parasitassem as pessoas – para nós, desde que não nós – e REVELASSEM A IMORALIDADE E A MALDADE e, de tal forma, passassem nossos crimes a um BODE EXPIATÓRIO.
Pronto, a justiça está feita, o mundo é lindo, somos perfeitos... Excomunguem Arandir!
Arandir aprendeu a importância de todo o mundo (que nem lhe conhece) acreditar em você. A opinião dos outros importa, sim. Como sobreviver sem o bando? Porém, ele não aceita essa verdade.
“Ninguém acredita, mas eu! Eu acredito, acredito em mim!”, esta é uma das últimas sentenças proferidas por Arandir na peça, resistindo até o fim com pedaços de uma vida destroçada por meio da mídia sensacionalista e corrupta. Não por ela, e sim por meio dela! No filme “O Quarto Poder” de 1997, Sam Baily (John Travolta) também vê sua vida se perder em meio a artigos de jornais e entrevistas para a televisão.
Recordo: NÃO PELA MÍDIA (QUARTO PODER), E SIM POR MEIO DELA. Quem deu o golpe final em Arandir fomos NÓS - a SOCIEDADE, que abençoou o sacrifício ou, ao menos, lavou as mãos. A inevitável tragédia partiu de cada personagem, suas máscaras e feridas.
Permitimos que a vida seja manchete de jornal e nos esquecemos de que a manchete é uma versão da história e QUE A VIDA VALE MAIS DO QUE AS PALAVRAS QUE NOS DIVERTEM em uma manhã tediosa.
Seria essa a lição da peça? Não sei. Mas que este artigo e esta obra sirvam à sua missão magna: fazer pensar, refletir, discordar, acordar, amar viver e não ter medo de perguntar.
VICTÓRIA AMPESSAN DAMAS
Que a intenção deste texto seja alcançada: o contato com um novo olhar, o entendimento de outras perspectivas e a vontade inexorável de prosseguir questionando, buscando a sua versão da história..Fonte: OBVIOUS
Nenhum comentário:
Postar um comentário