abril 17, 2016

A hora da verdade: a força do impeachment contra o obstáculo da legalidade. Por Salah H. Khaled Jr. (JUSTIFICANDO)

PICICA: "A novidade da atual quadra histórica consiste na extensão que o ódio sistematicamente difundido alcançou e, logo, na assustadora força manejada por inimigos da legalidade democrática. Uma verdadeira epidemia de ódio está em curso e as defesas subjetivas de uma população malformada democraticamente – ou será deformada? – são extremamente baixas. O ódio pelo outro – ou por quem acaba sendo percebido como inimigo através de estímulos raivosos – atingiu um índice tão elevado que conseguimos produzir uma verdadeira façanha antidemocrática, o que não deixa de ser surpreendente para um país tradicionalmente autoritário como o Brasil."

A hora da verdade: a força do impeachment contra o obstáculo da legalidade

 
  • Salah H. Khaled Jr.
    Professor

O que acontece quando uma força irresistível encontra um objeto irremovível? O paradoxo da onipotência exige que um dos dois tenha que ceder. Se a força é verdadeiramente irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Do mesmo modo, se o objeto é irremovível, não pode haver uma força que possa removê-lo.  Duas onipotências não podem coexistir. O paradoxo pode ser empregado para ilustrar o que está em jogo com a aventura do impeachment: novamente uma força não autorizada – poderia dizer uma força de lei, como define uma significativa tradição – pretende mover um objeto legalmente irremovível, o que não é exatamente uma novidade. No Brasil, historicamente a força sempre triunfou sobre a legalidade.

Nisto não há motivo algum para comemoração. Escrevo com pesar. Nossa permanentemente imatura democracia vai mal. Muito mal. É possível que em breve agonize e ingresse em coma profundo e duradouro, até que desperte novamente, repleta de sequelas, incontáveis anos depois. Um palpite nada audacioso apontaria que uma breve reconciliação então frutificará: uma efêmera ilusão democrática. Mas ela logo tornará a sucumbir diante da velha tentação autoritária, que sempre foi uma força irresistível, como anteriormente referi.

Aparentemente, essa é a sina do Brasil. Intervalos democráticos e normalidade autoritária: eis o receituário genético de um país construído sob o signo da subjugação do outro. É um ciclo aparentemente inescapável, cuja reiteração exige que a política produza uma saída capacitada para normalizar as tensões sociais sob a égide de um utilitarismo desmedido que aceita qualquer espécie de meio para atingir o fim desejável, liquidando com a legalidade. Nossas elites jamais demonstraram dificuldade para abrir mão do exercício do poder político. O pragmatismo sempre falou mais alto. Desprezam a democracia e a pluralidade, especialmente quando ela se coloca contra a sua vontade, mesmo que minimamente. Para isso estão dispostas a produzir dicotomias simbolicamente: elaborar imagens demonizadas de adversários e convocar cruzadas para combatê-los. A imprensa sempre contribui com louvor para o sucesso de aventuras antidemocráticas. Disseminou a imagem do comunista inimigo e produziu um ambiente de ódio que – apesar de desconectado da realidade – capacitou várias exceções – ou regularidades – autoritárias no século passado. O resultado é simples: sempre que se torna necessário, a força predomina sobre a legalidade.

A novidade da atual quadra histórica consiste na extensão que o ódio sistematicamente difundido alcançou e, logo, na assustadora força manejada por inimigos da legalidade democrática. Uma verdadeira epidemia de ódio está em curso e as defesas subjetivas de uma população malformada democraticamente – ou será deformada? – são extremamente baixas. O ódio pelo outro – ou por quem acaba sendo percebido como inimigo através de estímulos raivosos – atingiu um índice tão elevado que conseguimos produzir uma verdadeira façanha antidemocrática, o que não deixa de ser surpreendente para um país tradicionalmente autoritário como o Brasil.

O muro do impeachment ilustra perfeitamente a amplitude do ódio reinante, resultado último da linguagem fascista que é veiculada pela grande mídia.  Ele é efeito colateral do empreendimento de construção de uma força de lei que supostamente encontra resguardo na "vontade popular": uma pseudovolição pública que não é mais do que um fruto da violência simbólica da experiência política mediada pelos empreendedores morais das agências de comunicação. Seria preferível que o muro fosse uma metáfora para o triunfo da racionalidade binária que divide o país em coxinhas e petralhas. Mas infelizmente ele é muito mais do que isso. Não é uma imagem evocada para demonstrar a precariedade civilizatória do que passa por convicção política em terra brasilis. Quem dera fosse o caso. Ele é dura e crua realidade que retrata a nossa barbárie: escancara o tumor maligno que infecta – talvez irreparavelmente – os ares democráticos necessários para que a distante promessa de consolidação de um Estado Democrático de Direito permaneça sendo um horizonte possível. Atingimos o nirvana do ódio pelo outro travestido de antagonismo político. Realmente erguemos – ou melhor, presidiários ergueram, o que por si só já mereceria uma coluna – um "muro do impeachment", cujo propósito consiste na contenção de danos que podem decorrer do enfrentamento entre entusiastas e opositores da malfadada iniciativa golpista.

A história conheceu muitos muros. Eles geralmente funcionam como mecanismos de gestão de populações segregadas ou isoladas umas das outras por motivos específicos. São aparatos de distribuição de corpos no espaço. Não é segredo que estratégias de esquadrinhamento da realidade e de fixação de corpos conformaram terríveis violências e foram direta ou indiretamente responsáveis por inúmeros cadáveres ao longo da história do último século. Mas é claro que o nosso muro não é representativo de um apartheid social, nem é peça-chave de um conflito geopolítico em escala mundial. Ele é um pouco diferente. É transitório de um modo que outros muros não foram. Mas nem por isso sua simbologia é menos rica ou interessante. Em outras palavras, o muro dá – ou deveria dar – o que pensar.

Parece que podemos enterrar definitivamente os velhos estereótipos da identidade nacional brasileira: nada poderia estar mais distante da imagem de um povo pacato e pacífico do que a construção de uma muralha para separar concidadãos e evitar agressões recíprocas. Ingressamos na era da besta-fera brasileira, um animal político completamente diferente do velho e ultrapassado homem cordial. E é como bestas-feras que esses brasileiros engajados devem ser tratados: separados uns dos outros para que não causem mal a si próprios e aos demais. Alimentados por muitos anos com uma dieta de ódio, não surpreende que os ânimos estejam enormemente acirrados. Basta que alguém acenda um fósforo e o campo instantaneamente se incendiará. E a fogueira não será de meras vaidades. Os últimos meses fornecem um testemunho significativo de como o ódio foi canalizado e direcionado contra determinadas pessoas, com resultados catastróficos. É inescapável a conclusão de que o muro expressa de forma concreta um medo verdadeiramente palpável: o temor de que o esforço narrativo de instigação de ódio finalmente provoque uma tragédia anunciada, ou seja, que a radicalização política produza um grande derramamento de sangue. Não que isso represente mais do que mera estatística para quem defende a velha e temível ideia de que os fins justificam os meios. A história também mostra que as ruínas são prontamente removidas, como se fossem simples entulho poluindo a paisagem.

Eu poderia recapitular a sucessão de acontecimentos, cruzadas e peripécias que nos conduziu até aqui. Mas um esforço dessa ordem seria incompatível com os propósitos de uma simples coluna. Peço ao leitor que pura e simplesmente aceite a minha premissa: o ódio mutuamente assegurado é um fato mais do que consumado, cujos reflexos serão sentidos por muito tempo. A cisão subjetivamente produzida dentro do país deixará feridas praticamente irrecuperáveis, seja qual for o resultado de domingo. Se ele for de admissibilidade, parece claro que o Senado seguirá o rumo da correnteza. Isso bastará para aquietar determinados sentimentos e reiterará nossa triste trajetória histórica de produção de exceções com base no emprego de força. Tristemente elas conformam a única e verdadeira regra de uma tradição predatória da democracia. A legalidade nunca foi no Brasil mais do que um simples ponto em equilíbrio precário, pronto a ser deslocado se necessário.  Mas dificilmente isso bastará para silenciar as vozes dissonantes: a normalização autoritária não será tarefa tão fácil quanto outrora, como possivelmente descobrirão os agenciadores da força de lei.

No entanto, existe outra possibilidade. A de que a legalidade seja respeitada e o "não" prevaleça. A de que um objeto irremovível efetivamente permaneça fixado exatamente onde está e democraticamente deveria estar e de que diante dele uma força de lei historicamente vencedora se esfacele como uma onda contra um rochedo. Mas caso isso ocorra, é inteiramente possível que esse tenha sido apenas o primeiro pedido apreciado. O pragmatismo de ocasião não aceitará outra saída. O golpe é um empreendimento contínuo e não será engavetado facilmente. Os patos continuarão a ocupar parcela considerável dos noticiários e certas revistas semanais permanecerão noticiando fatos apócrifos e trabalhando incansavelmente pela desestabilização de um governo que é péssimo por mais motivos do que compensaria falar, o que certamente não é razão suficiente para o derrubar. Fica a pergunta: terá o objeto resiliência suficiente para permanecer firme diante de sucessivos golpes de uma força de lei? Ou essa força é em última análise verdadeiramente irresistível e, logo, onipotente?

É possível que o ódio seja realmente uma força irresistível. Ele provoca destruição e ruína por onde quer que passa. Seus arautos estão dispostos a tudo. Incendiarão o país se preciso for. É possível resistir ao ódio indefinidamente? No Brasil ainda não foi, sequer minimamente. Talvez nunca seja. Mas uma coalizão de forças como nunca se viu na história deste país foi formada. Não tenho dúvida de que os limites da própria força de lei serão testados como jamais foram. Por outro lado, jamais se viu um ódio com tamanha intensidade. Pode a legalidade conter o ódio? Eu não arriscaria um palpite. Para que isso seja possível, teremos que produzir uma verdadeira exceção, em um país acostumado com regimes de exceção que são a regra: respeitar a legalidade. Teremos que conseguir uma façanha jamais alcançada decisivamente no Brasil: amar e cultivar o amor pela democracia. Construí-la como objeto de afeição, com o qual não se transige jamais, seja quais forem as circunstâncias. Pode o amor vencer o ódio? Temos que acreditar que sim. A onipotência não é deste mundo. Não há adversário que não possa ser vencido. O problema é triunfar quando o adversário não respeita as regras do jogo. Possivelmente essa é a peculiar onipotência de uma força de lei que historicamente sempre foi tão irresistível.

Bom fim de semana! 


Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

Foto: Ricardo Stuckert/Fotos Públicas

Fonte: JUSTIFICANDO

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