abril 11, 2016

‘Caso o golpe seja vitorioso, o país caminha para um processo de colapso social’. Cátia Guimarães (ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÊNCIO))

PICICA: "Sociólogo, professor da Universidade de São Paulo (USP) que estuda as transformações no mundo do trabalho e a organização sindical, Ruy Braga defendeu, em artigo recente, que a intensificação das greves nos últimos anos é um fator importante na análise da conjuntura atual. Nesta entrevista, ele critica as opções políticas e econômicas que têm sido adotadas pelo governo, ressalta as motivações da insatisfação do empresariado e dos trabalhadores, desenha o cenário futuro no caso de um suposto impeachment e alerta para o risco de uma efetiva “ditadura” que, mesmo sem tanques nas ruas, signifique a restrição de liberdade civis." 

Entrevista: Ruy Braga

‘Caso o golpe seja vitorioso, o país caminha para um processo de colapso social’

Sociólogo, professor da Universidade de São Paulo (USP) que estuda as transformações no mundo do trabalho e a organização sindical, Ruy Braga defendeu, em artigo recente, que a intensificação das greves nos últimos anos é um fator importante na análise da conjuntura atual. Nesta entrevista, ele critica as opções políticas e econômicas que têm sido adotadas pelo governo, ressalta as motivações da insatisfação do empresariado e dos trabalhadores, desenha o cenário futuro no caso de um suposto impeachment e alerta para o risco de uma efetiva “ditadura” que, mesmo sem tanques nas ruas, signifique a restrição de liberdade civis.




Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 06/04/2016 16h55 - Atualizado em 08/04/2016 16h51
 

Costuma-se classificar a estratégia do PT no governo federal como uma tentativa de conciliação de classes. E como você destacou em artigo recente, o discurso do ex-presidente Lula na Avenida Paulista no último dia 18 parece dar continuidade a essa estratégia. Mas nesse momento, essa estratégia está rompendo. Quais segmentos da sociedade estão dando essa conciliação por esgotada nesse momento?
 
  Para fazer essa análise é necessário estabelecer o cruzamento entre duas grandes dimensões da sociedade brasileira contemporânea. A primeira delas passa necessariamente pela questão da economia. O país vive um período de contraciclo após, eu diria, dez, 12 anos de relativo crescimento.  Na contracorrente do que era a dinâmica do capitalismo internacional, a partir de 2008, com a crise econômica e financeira mundial, o país permaneceu de alguma maneira crescendo. Só que essas contradições, que são contradições da base, da estrutura social, não são administráveis por intermédio dos instrumentos tradicionais da gestão da política econômica, como taxa de câmbio e assim por diante. É muito importante que se verifique que, diante da iminência da crise, já a partir de 2012, o governo Dilma adotou claramente uma via regressiva do ponto de vista dos direitos sociais. Então, o que se tem basicamente é uma tentativa de reestruturar o governo em torno de uma agenda empresarial. Essa agenda empresarial se apoia em privatizações, na contenção de gastos públicos ou na incorporação daquilo que seriam os custos das empresas pelo governo. Essa administração microeconômica dos custos das empresas — notoriamente as tarifas de energia elétrica, mas também a desoneração da folha de pagamento, no recolhimento de PIS-Cofins, etc — debilita as contas públicas num momento de contraciclo. O que isso significa no geral? Significa que o governo, na sua tentativa pueril e ingênua de favorecer e de alguma maneira restabelecer a lucratividade das empresas, agiu de maneira irresponsável com as contas públicas e a poupança do trabalhador. Essa agenda empresarial tem se desenvolvido nos últimos quatro anos do governo Dilma. E essa agenda chegou a um impasse: esse caminho que o governo escolhe, de privilegiar a acumulação via exploração econômica — ainda que mediada por políticas sociais — se mostra ineficiente para restabelecer o crescimento econômico, o que significa restabelecer fundamentalmente a exploração da força de trabalho. E nesse sentido não se vislumbra do ponto de vista da economia outra alternativa que não seja as empresas avançarem sobre os direitos dos trabalhadores. É aí que o ponto se torna mais problemático porque entra a dimensão política. Então quando você olha para as escolhas do governo, percebe que o governo pretende sim aprofundar essa agenda neoliberal e avançar sobre os direitos dos trabalhadores. Notoriamente, a última notícia era a reforma da previdência, mas já aconteceu uma série de medidas em relação ao seguro-desemprego, agora essa revivificação do debate sobre a regulamentação da terceirização. O governo não fez nada para barrar e, ao contrário, estimula, propõe esse tipo de solução.  Além disso, o governo também corta gastos com saúde, com educação, corta gastos que atingem mais ou menos diretamente a imensa esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros que dependem da educação e da saúde públicas. Então essa agenda se mostrou ineficiente e incapaz de enfrentar a crise, ao contrário, tem se mostrado muito eficiente em aprofundar o processo de crise econômica e estender, prolongar, a recessão econômica. Qual é o problema político que isso coloca? É que, de um lado, os setores da burguesia que estavam alinhados ao governo percebem os limites dessa estratégia de acumulação e, por outro lado, eles exigem que isso se aprofunde. Do outro lado, as bases sociais do governo pressionam pelo recuo dessas medidas. E o governo, em alguma medida, ainda é ligado às suas bases sociais, mesmo que essa ligação tenha se tornado mais e mais frágil nos últimos anos. Por isso, ele se mostra em alguns momentos reticente e titubeante em assumir pronta e definitivamente a agenda que os empresários querem, que é o fim da CLT, a contrarreforma radical da Previdência Social, o avanço do desemprego, o avanço da flexibilização do trabalho via, fundamentalmente, as terceirizações, o aprofundamento da informalização do trabalho, o aprofundamento da flexibilização da jornada de trabalho, tudo isso que tem sido discutido e apresentado pela classe empresarial.

Não à toa a Fiesp [Federação das Indústrias de São Paulo] é uma das principais entidades que lidera propriamente o processo de golpe contra a Dilma. A própria Fiesp participou daquele pacto neodesenvolvimentista com a CUT, a Força Sindical e o governo em 2010, 2011. Ela pula [para fora do governo] porque percebe que o governo se mostra titubeante e pouco eficiente, pouco capaz de aprofundar ainda mais essa agenda de espoliação social que, segundo a Fiesp, seria necessária para restabelecer as bases da acumulação capitalista privada no país. E isto é o que tem feito com que muitos setores do empresariado abandonem o governo porque perceberam que este governo não é forte o suficiente para aplicar essas medidas em vista a pressão das suas bases sociais. Daí a ideia de substituir esse governo por um governo Michel Temer puro sangue, ou seja, um governo PMDB-PSDB completamente alinhado com essa agenda daquilo que eu chamaria de política de espoliação social. É nesta política que a burguesia brasileira aposta como uma via de solução do problema econômico. Só que isso vai ser um tiro n´água. É uma via desastrosa que vai levar o país para 20 anos de intensificação cada vez mais radical do processo de luta de classes com pouca possibilidade de prever qual vai ser o resultado disso.

Muitos analistas têm apontado que essa é uma crise principalmente entre frações internas das classes dominantes. Você tem trazido um outro ator para esse cenário, afirmando que o governo tem sido encurralado também por uma onda crescente de greves e reivindicações dos trabalhadores. É isso?

Sem dúvida. A partir de 2008, intensificando-se em 2010 e 2011, o país vive um ciclo grevista que é bastante complexo de se analisar. Eu diria que esse ciclo começa propriamente naqueles setores mais tradicionais, sindicalmente mais organizados, de trabalhadores que recebem melhor, em especial no setor público ou mesmo no setor privado, notoriamente metalúrgicos, químicos, petroleiros, e logo na sequência também o setor bancário que não recebe tão bem assim, mas se mobiliza com muita intensidade a partir de 2010. Essa primeira onda, quer seja no setor privado, quer seja no público, acaba evoluindo para um segundo momento em que os trabalhadores do setor de serviços, os trabalhadores menos organizados, mais precarizados, passam a se mobilizar também.

As explicações para isso são notórias. Por um lado você tem um mercado de trabalho relativamente aquecido, por outro lado, tem péssimas condições de trabalho, aprofundamento das terceirizações, aprofundamento da rotatividade, dos acidentes, do adoecimento, salários muito baixos. A gente no Brasil passou a se acostumar com essa ideia de que o trabalho formal também é precário porque o nível de remuneração é tão baixo que o trabalhador não consegue alcançar o minimo minimorum das condições de vida decentes, invertendo um pouco aquela dinâmica dos anos 1990 em que trabalho precário geralmente era trabalho informal. Agora você tem trabalho formal e, ainda sim, muito precário. Isso é notório no setor de serviços, como nesse último período ficou muito patente, muito flagrante nas greves daqueles trabalhadores municipais que são os trabalhadores mais precarizados: os garis, por exemplo, ou os trabalhadores do transporte público – os motoristas e cobradores. Enfim, você tem uma onda cuja dinâmica é mais ou menos a seguinte: a partir de 2008, dos setores mais organizados privados e públicos para aqueles setores menos organizados, mais fragilizados. Ou seja, tem setores da semiperiferia e da periferia do mercado de trabalho. No caso do Estado, percebe-se nitidamente que o fluxo grevista caminha do governo federal para os governos municipais. Então, a partir de 2013 tem uma onda de greves dos trabalhadores municipais. Isso daí tem pressionado os sindicalistas lulistas, governistas, que respondem, evidentemente, de forma muito desigual. No entanto, eles percebem, primeiro, que as políticas sociais do governo deixaram de ser eficientes para contentar essa base inquieta, insatisfeita, descontente, e segundo, que eles precisam fazer algo, ou seja, não podem simplesmente ignorar essa onda grevista, esse impulso que vem de baixo. Daí essas atitudes titubeantes. O exemplo clássico, típico, mais fácil de identificar que eu dou nesses estudos que tenho feito mais recentemente é o Sindicato dos Bancários de São Paulo, que é um sindicato 100% governista, que ofereceu muitos quadros de alto escalão para o governo, que ofereceu quadros para o governo compor inclusive os conselhos, fundos de pensão, e assim por diante, e tem feito muita greve ultimamente. Quer dizer, tem liderado greves tanto em São Paulo quanto, por intermédio da Federação Bancária, liderado greves nacionais, de trabalhadores bancários.

Isso é para dizer que existe muita insatisfação na base. Essa insatisfação na base está ligada à deterioração das condições de trabalho e, ao mesmo tempo, essa insatisfação pressiona e coloca o sindicalismo lulista contra a parede. O sindicalismo lulista reage. Essa reação se dá em duas frentes: por um lado, uma certa tentativa de controle sobre o movimento grevista; por outro lado, uma certa tentativa de pressão sobre o governo para que aquelas medidas impopulares sejam revertidas. Então essa dinâmica ela não é muito complexa de perceber, e tem marcado a política na base, a política das classes sociais subalternas, nesses últimos três, quatro anos. Nitidamente. Acrescente-se a isso a mobilização que a partir de 2013 se torna muito intensa, muito importante, que é desses novos movimentos sociais urbanos, de luta pela moradia. Quer dizer, este é um tópico chave do debate brasileiro hoje, a questão urbana, a questão do trabalho e da cidade, é visível a mobilização dos movimentos sociais sem-teto dentro dos grandes centros urbanos brasileiros. Isso tudo é para dizer que há um caldo de cultura efervescente na base. Esse caldo de cultura tem sim pressionado, como eu tento argumentar no artigo, tem sim pressionado os sindicalistas e principalmente tem colocado uma certa pressão sobre o governo. O que eu argumento, vamos dizer assim, mais especulativamente falando, é que do ponto de vista da lógica política, ou da lógica da dominação de classe social, a burguesia brasileira não se sente confortável tendo que aceitar um governo que não é um governo puro-sangue, ou seja, não é um governo que a contente 100%, como eu argumentei na minha resposta anterior. E, ao mesmo tempo, é um governo que não é capaz de cumprir com aquilo que cumpriu ao longo dos anos 2000, com uma certa, vamos dizer assim, capacidade de absorver o conflito social, integrar o conflito social no Estado, burocratizar o conflito social, e ao mesmo tempo pacificar essas fontes de insatisfação. Então se você tem um governo que não faz nem uma coisa, ou seja, nem aprofunda a estratégia social de acumulação por espoliação, de um lado, e nem consegue controlar as bases sociais insatisfeitas por outro, tendo em vista o aprofundamento de um processo de crise, é um governo, vamos dizer assim, inútil.

Se o impeachment acontecer, elimina-se um governo que ainda tem base social e, portanto, pode ser pressionado por ela. Mas a mobilização dessa base neste momento não foi feita por esse governo, ao contrário, você mesmo pontuou que os governos do PT têm tentado ao longo de todos esses anos apassivar essa base. Então, nesse sentido, retirar o PT do governo e substituí-lo por um governo puro-sangue pode melhorar o processo de intensificação da exploração, que é uma das coisas que o governo não tem conseguido fazer que você tem dito, mas consegue aquietar essa base?

Dos cenários previsíveis, o mais provável é de intensificação da luta de classes e de colapso social do país. Caso o golpe seja vitorioso, o país caminha para um processo de colapso social, por várias razões. Os setores políticos alinhados aos interesses mais conservadores e reacionários imaginam que vai acontecer alguma coisa parecida com o que aconteceu com o Collor em 1992: tem um vice, a economia dá sinais de recuperação, o processo de impeachment reúne as forças políticas em torno de um polo mais ou menos de salvação nacional e acaba produzindo uma transição tranquila para um governo eleito dois anos depois. Isso aí é uma estupidez enorme. Isso é de uma estupidez gigantesca. Em primeiro lugar porque a Dilma não é o Collor. Em dois sentidos: o Collor era réu do processo, ele havia sido acusado pelo irmão. A comissão do impeachment que foi formada pelo Congresso comprova o crime, a sua culpabilidade. Não é esse o caso da Dilma, não tem nada, pelo menos até o momento. Eu sou contra o governo, sou de oposição de esquerda ao governo, acho o governo péssimo. Acho o governo, vamos dizer assim, praticamente indefensável. No entanto, não há crime. Não foi cometido crime pela presidente da República. Isso aí seria uma descontinuidade institucional. Seria um golpe. Ainda que seja um golpe parlamentar. E segundo lugar, a Dilma não é o Collor por outra razão, o Collor não tinha base social nenhuma. Estava há um ano e meio no governo quando se intensifica o processo de impeachment. O PT está há 13 anos, quase 14 no governo. O PT ainda hoje tem base social, o PT tem influência sobre o movimento sindical, tem influência sobre os movimentos sociais. O PT tem uma bancada que é a maior bancada do Congresso, a gente não pode esquecer isso. O PT tem capilaridade. O PT não é o PRN do Collor. Então haverá resistência ao golpe. Não tenho a menor sombra de dúvida que haverá resistência ao golpe. Aquilo que aconteceu com o Collor não irá se repetir. Por outro lado, a ideia de que uma pacificação política, uma transição tranquila poderia preparar uma retomada econômica, é outra balela. O país vai se tornar ingovernável. Um governo PMDB-PSDB ilegítimo vai enfrentar uma insatisfação social crescente, que tende a crescer cada vez mais tendo em vista a adoção das medidas impopulares que eles planejam implementar, e tendo o PT, vamos dizer assim, fortalecido — por incrível que isso possa parecer, por ter sido vítima de um golpe, e eles vão dizer isso, e com toda a razão. Esse golpe branco que está sendo dado contra o governo da Dilma Rousseff muito provavelmente vai jogar o país no caos político nos próximos 20 anos. Não haverá paz, não haverá tranquilidade. Se esses setores reacionários e conservadores imaginam que isso vá acontecer, isso não acontecerá. O que eu imagino ou o que eu posso prever conhecendo minimamente a burguesia brasileira é que depois desse golpe parlamentar, tendo em vista o endurecimento das condições políticas, da resistência, o que deve acontecer é o endurecimento ainda maior das condições civis, ou seja, da política no seu sentido mais elementar: eles vão caçar as liberdades de protestos, vão endurecer, até o momento em que o país se torne abertamente uma ditadura.

Você acha que existe mesmo esse risco concreto de golpe, mesmo que não seja militar?

Não tenho a menor dúvida, não tenho a menor dúvida.  Pensando com a cabeça de hoje, eu apostaria que a solução mais conveniente para a burguesia brasileira, que se encastelou, se organizou em torno da agenda do impeachment, da descontinuidade institucional e do aprofundamento da espoliação social para retomar o crescimento é a ditadura. Eles querem uma ditadura no Brasil. Uma ditadura que pode até não assumir a forma militar, porque isso aí é muito pouco conveniente internacionalmente, mas seguramente assumirá a forma do Estado de exceção, tendo civis no governo, controlando por meio da violência física massas cada vez mais descontentes. Para implementar esse processo de transição do regime de acumulação baseado na espoliação social articulado com o modo político de regulação autoritário, não há outra palavra que não seja ditadura.

Em meio ao auge da crise política, vemos o governo Dilma empreender medidas de afastamento da esquerda, como a sanção à lei antiterrorismo e o anúncio de um pacote que inclui até a demissão de servidores públicos. O que se pode esperar do governo em resposta a essa crise? É possível uma inflexão à esquerda?

Eu acho pouco provável que o governo tenha força para impedir o impeachment, acho pouco provável pelos seus próprios erros. Eu só consigo perceber uma solução mais ou menos progressista na intensificação do ritmo de mobilização popular que ao mesmo tempo seja capaz de barrar o golpe e pressionar o governo para que pelo menos não assuma as medidas antipopulares que ele tem ensaiado. Acho que esse seria o único caminho propriamente crível para um reestabelecimento de normalidade política, institucional. Mas isso teria que se apoiar não no Congresso, que é, como diriam os americanos, é hopeless, quer dizer sem esperança nenhuma, eles são incorrigíveis. Então, não no Congresso e não na burocracia do governo federal. Teria que se apoiar no amplo processo de mobilização das massas em torno de uma agenda politicamente progressista, que seja de fato capaz de colocar as questões que precisam ser colocadas: para onde vai o dinheiro da dívida pública, a necessidade de proteger o trabalhador, de ter efetivamente uma agenda que fortaleça as contas públicas e que distribua renda, distribua riqueza, que taxe os bancos, que taxe os ricos. A partir de 2011, toda vez que você viu um movimento dentro do governo de mudança foi para pior, sempre com mais espaço para a direita. Não é possível que não se perceba, depois de tudo que se passou, que a única possibilidade de esse governo se sustentar é por intermédio da mobilização popular e a única maneira de isso acontecer é adotando uma agenda progressista. Não vai haver mobilização popular por algo que não vale a pena brigar.

Você falou um pouco sobre por que o empresariado desembarcou do barco do governo e sobre o que os trabalhadores vêm perdendo e que resultou em greves crescentes e perda de apoio do governo Dilma. E a classe média?

A era Lula, o lulismo, acabou promovendo uma certa desconcentração de renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho e isso acabou produzindo alguns efeitos que impactaram a classe média. O primeiro deles é a inflação dos serviços, que é maior que a inflação da cesta básica. Os serviços subalternos que gravitam em torno da classe média também ficaram mais caros, então o porteiro, pedicure, manicure, cabeleireiro, isso foi ficando mais caro e, principalmente, o emprego doméstico. Tendo em vista o mercado de trabalho aquecido, as estratégias de aumento do salário mínimo acima da inflação, que impactam diretamente o trabalho doméstico, acabaram fazendo com que o custo de vida ficasse mais caro. Aliado a isso, você tem um problema estrutural, que é o fato de o mercado de trabalho brasileiro ter produzido muito poucos empregos de classe media nos últimos 13 anos. Os dados de 2014 do Caged [Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, do Ministério do Trabalho] mostram que 97,5% dos empregos criados em 2014 pagam até 1,5 salário mínimo, não são empregos de classe média. Ou seja, o mercado ficou muito mais competitivo e restritivo. Aliado a isso, o governo Lula e depois o governo Dilma adotaram o que seria uma espécie de política de cotas sociais e raciais nas universidades, o que fez com que as universidades públicas, principalmente as federais, se tornassem mais plebeias, aumentando ainda mais a concorrência com os filhos da classe média tradicional. Aliado a isso, você tem, a partir de 2015, a crise, que impacta os pequenos e médios proprietários. A contração do consumo causa impacto direto sobre os pequenos e médios negócios, sobre os quais a classe media se apoia. Então você vai perceber que existe uma insatisfação crescente nos setores médios em relação a medidas do governo, uma insatisfação que não é de hoje, não vem de agora, mas que se tornou pior agora. A gente tem uma mídia ultrarreacionária e conservadora no Brasil, altamente monopolizada, que influencia esses setores médios. Então, isso tudo acabou fazendo com que a classe média fosse para as ruas.

A esquerda não governista está nas ruas, denunciando um “golpe” em curso. Por que a esquerda está nas ruas nesse momento? Quais são, concretamente, as conquistas democráticas dos trabalhadores que estão em risco e precisam ser preservadas?

Concretamente, você tem o ‘Ponte para o Futuro’, que é o programa do PMDB que será usado, caso a Dilma seja substituída. Concretamente, a Dilma recua da Reforma da Previdência. Então, você tem dois fatos concretos. Essa ‘Ponte para o Futuro’ atinge dois setores da sociedade com muito impacto e muita força. Primeiro, são os gastos públicos com saúde e educação, que vão ser ainda mais bombardeados com essa desvinculação dos gastos que propõe o programa. Hoje, a Constituição prevê que em saúde e educação sejam gastos X por cento do Orçamento Público da União. O que eles querem é desvincular isso e conter ainda mais esses gastos pagar os juros da dívida, aumentar a taxa de juros, etc. Por outro lado, você tem uma clara agenda antitrabalhista. O que eles desejam é exatamente o fim da CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas], ou de qualquer outra proteção do trabalhador. Então, é um pouco esse o quadro que se tem pela frente, concretamente falando. A grande ameaça é exatamente a ameaça à estrutura de gastos públicos, naquilo que diz respeito aos gastos sociais, saúde, educação, previdência. E por outro lado, um mercado de trabalho ainda mais flexível e deteriorado, pagando salários piores e assim por diante. Esse é o quadro concreto. Na minha opinião, imediato. Imediatamente depois da queda da Dilma, o que entra na agenda é isso.

Fonte: ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÊNCIO

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