abril 19, 2016

Afetos (Bio)Políticos - Desamparo. POR Rafael Trindade (RAZÃO INADEQUADA)

PICICA: "Safatle, eu seu livro, Circuito dos Afetos, nos lembra da importância dos afetos no estudo da política. Como pensar uma racionalidade que exclui o corpo? Impossível. Como pensar uma sociedade que não leve em consideração a forma pela qual não apenas bens e dinheiro circulam, mas também os afetos que são produzidos, veiculados, implantados em nosso meio social?"


Safatle, eu seu livro, Circuito dos Afetos, nos lembra da importância dos afetos no estudo da política. Como pensar uma racionalidade que exclui o corpo? Impossível. Como pensar uma sociedade que não leve em consideração a forma pela qual não apenas bens e dinheiro circulam, mas também os afetos que são produzidos, veiculados, implantados em nosso meio social?


Para entender um determinado momento político, um determinado modo de vida, precisamos parar ao menos por um instante para analisar quais afetos estão sendo produzidos em ato. E mais, precisamos começar por nos perguntar pela relevância e potência de cada afeto. Tal como Nietzsche fez com os valores, precisamos perguntar: “qual o valor dos afetos?”, e tal como Espinosa questionou o corpo precisamos pensar: “o que pode um afeto?”. Safatle nos traz sua resposta em seu livro:

O afeto que nos abre para os vínculos sociais é o desamparo” – Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos, p. 54

O desamparo é a condição de estar sem ajuda, acontece quando não se sabe mais o que esperar do outro. É um confrontar-se com uma situação de desabamento da possibilidade de respostas fáceis. Quando um corpo não sabe como reagir ou lidar com uma situação, o afeto de desamparo surge; e ele pede uma reorientação, uma revisão de toda a realidade.


Mas é preciso lembrar, diz Safatle, que mesmo no desamparo o outro nos concerne, existe um vínculo, uma implicação necessária com a alteridade. “É da afirmação do desamparo que vem, para Freud, a emancipação. […] O desamparo não é algo contra o qual se luta, mas algo que se afirma” (Safatle, p. 21). Sendo assim, apenas pessoas desamparadas são capazes de agir e criar politicamente.

Um sujeito político só nasce quando afirma seu desamparo sem restrições. Mas tal afeto (bio)político é passível de vários usos, por isso a importância de uma coragem, uma maturação para estar desamparado. Dizemos isso porque ele pode ser facilmente transformado em medo, um descrédito para mudar qualquer coisa.


Uma sociedade se constrói sobre a base sólida do medo e da esperança. Desde Hobbes que estes dois afetos são aplicados como principais na costura do tecido social. Medo e esperança excluem aquilo que seria o elemento mais importante na contemporaneidade: a abertura para a diferença. Hoje, mais do que tolerar, é preciso produzir a diferença, o que não se sabe o que é! Não saber para onde ir não é motivo para se paralisar.

A política pode ser pensada enquanto prática que permite ao desamparo aparecer como fundamento de produtividade de novas formas sociais, na medida em que impede sua conversão em medo social e que nos abre para acontecimentos que não sabemos ainda como experimentar” – Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos, p. 67

Desamparo não é estar perdido entre o medo e a esperança! Definitivamente não é pedir cuidado, reconhecer que alguém superior pode te dar força para te ajudar. Uma demanda de cuidado é uma demanda antipolítica por excelência, institui outros para responder pelo que lhes falta. Não devemos procurar por líderes ou salvadores, a política é exatamente o contrário, é a destituição de autoridade! Precisamos estar à altura de nossa luta por emancipação! É preciso construir uma ideia de desamparo diferente, como maturidade psíquica que o afirme! Essa indeterminação é algo a ser apropriado.


Quando se deixa de pedir amparo, deixa de eleger o outro como autoridade, deixa de se pensar a política pelo viés da expectativa. Chegamos ao ponto onde é necessário abandonar a expectativa de amparo e ser capaz de viver a condição de desamparo, lidar com afetos que não se controla, com o que é contingente. Uma relação que não supõe a autoridade, que não se coloca na forma do cuidado. Admitindo um tempo que desampara, nosso tempo.


Caminhos da afirmação do desamparo, com sua insegurança ontológica que pode nos levar à consequente redução de demandas por figuras de autoridade baseadas na constituição fantasmática de uma força soberana ou mesmo por crenças providenciais a orientar a compreensão teleológica de processos históricos” – Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos, p. 73


- Yves Klein
– Yves Klein

É preciso sempre pensar em um corpo, que afeta e é afetado. Safatle sabe bem nos localizar dentro desta dinâmica, sim, é preciso pensar em um circuito dos afetos, um corpo que simplesmente não sabe mais como reagir, que para a situação que se configura, não possui respostas fáceis, automáticas, certas.


Um corpo que está lançado no mundo sem as possibilidades que antes o localizavam e davam estabilidade. “O desamparo produz corpos em errância, corpos desprovidos da capacidade de estabilizar o movimento próprio aos sujeitos através de um processo de inscrição de partes em uma totalidade” (Safatle, p. 26). Os antagonismo e as contradições ameaçam rasgar um corpo desamparado, sim, é perigoso, mas é das fissuras onde moram as possibilidades de criação.


Experiência política central: querer que o outro me despossua da minha identidade, isso é condição essencial para que se possa operar transformações importantes na nossa atuação política. Quando os dois são despossuídos das suas identidades fixas é possível uma ética dos devires, só então se abre a possibilidade para situações contingentes e impredicáveis, onde a diferença se afirma. Só conseguiremos criar quando formos despossuídos, e nos abrirmos para devires que não sabemos mais como predicar.

Para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se. Pois é necessário mover-se para fora do que nos promete amparo, sair fora da ordem que nos individualiza, que nos predica no interior da situação atual” – Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos, p. 40

Pensar uma ação política, que não mais penda tendenciosamente para o lado do medo ou da esperança é estar preparado para a desmesura que o acontecimento impõe. Conclui-se então que só pessoas desamparadas podem agir politicamente, por confrontarem-se com o radical desabamento das relações possíveis. Caminhar com segurança em meio ao caos, sem projetar um horizonte de expectativas que viessem a preencher e iludir. Afirmar as contingências, afirmar a condição de desamparo, dupla afirmação que dissolve o medo e a esperança, principais inimigos da ação política.


Até aqui, nós podemos concordar com Freud e Safatle, mas como Razão Inadequada não podemos seguir seus passos até o fim. Acreditamos que nem mesmo o melhor dançarino move-se sempre no fio da navalha. O desamparo, para nós, não pode e não deve ser o afeto central do ato político. É preciso voltar a Espinosa, para quem a alegria e o amor são os únicos afetos capazes de enfrentar os afetos tristes e impotentes. Antonio Negri, por exemplo, trilha um caminho semelhante.


O desamparo é o ponto de partida, uma constatação para a qual devemos estar à altura, para a qual deve-se estar preparado e no qual deve-se buscar aliados, fazer rizoma, encontrar linhas de fuga, mas que se compõe pela alegria da luta e o amor que a sustém.


Não tememos o desamparo, mas não seremos amantes deste frio afeto (bio)político, em nós há uma chama que inspirou Heráclito e que continua a queimar. Estamos preparados para o desamparo que assola nossos tempos, mas ele não é um afetos buscado, talvez seja a constatação do inevitável, quando a vida não permite mais ser apenas um espectador, mas impõe uma a necessidade de agir.

Texto da série: Afetos (bio)Políticos


- Yves Klein, Leap Into the Void
– Yves Klein, Leap Into the Void


Fonte: RAZÃO INADEQUADA

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