PICICA: "Safatle, eu seu livro, Circuito dos
Afetos, nos lembra da importância dos afetos no estudo da política. Como
pensar uma racionalidade que exclui o corpo? Impossível. Como pensar
uma sociedade que não leve em consideração a forma pela qual não apenas
bens e dinheiro circulam, mas também os afetos que são produzidos,
veiculados, implantados em nosso meio social?"
Safatle, eu seu livro, Circuito dos
Afetos, nos lembra da importância dos afetos no estudo da política. Como
pensar uma racionalidade que exclui o corpo? Impossível. Como pensar
uma sociedade que não leve em consideração a forma pela qual não apenas
bens e dinheiro circulam, mas também os afetos que são produzidos,
veiculados, implantados em nosso meio social?
Para entender um determinado momento
político, um determinado modo de vida, precisamos parar ao menos por um
instante para analisar quais afetos estão sendo produzidos em ato. E
mais, precisamos começar por nos perguntar pela relevância e potência de
cada afeto. Tal como Nietzsche
fez com os valores, precisamos perguntar: “qual o valor dos afetos?”, e
tal como Espinosa questionou o corpo precisamos pensar: “o que pode um
afeto?”. Safatle nos traz sua resposta em seu livro:
O afeto que nos abre para os vínculos sociais é o desamparo” – Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos, p. 54
O desamparo é a condição de estar sem
ajuda, acontece quando não se sabe mais o que esperar do outro. É um
confrontar-se com uma situação de desabamento da possibilidade de
respostas fáceis. Quando um corpo não sabe como reagir ou lidar com uma
situação, o afeto de desamparo surge; e ele pede uma reorientação, uma
revisão de toda a realidade.
Mas é preciso lembrar, diz Safatle, que
mesmo no desamparo o outro nos concerne, existe um vínculo, uma
implicação necessária com a alteridade. “É da afirmação do desamparo
que vem, para Freud, a emancipação. […] O desamparo não é algo contra o
qual se luta, mas algo que se afirma” (Safatle, p. 21). Sendo assim, apenas pessoas desamparadas são capazes de agir e criar politicamente.
Um sujeito político só nasce quando afirma seu desamparo sem restrições. Mas tal afeto (bio)político
é passível de vários usos, por isso a importância de uma coragem, uma
maturação para estar desamparado. Dizemos isso porque ele pode ser
facilmente transformado em medo, um descrédito para mudar qualquer
coisa.
Uma sociedade se constrói sobre a base sólida do medo e da esperança.
Desde Hobbes que estes dois afetos são aplicados como principais na
costura do tecido social. Medo e esperança excluem aquilo que seria o
elemento mais importante na contemporaneidade: a abertura para a diferença.
Hoje, mais do que tolerar, é preciso produzir a diferença, o que não se
sabe o que é! Não saber para onde ir não é motivo para se paralisar.
A política pode ser pensada enquanto prática que permite ao desamparo aparecer como fundamento de produtividade de novas formas sociais, na medida em que impede sua conversão em medo social e que nos abre para acontecimentos que não sabemos ainda como experimentar” – Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos, p. 67
Desamparo não é estar perdido entre o
medo e a esperança! Definitivamente não é pedir cuidado, reconhecer que
alguém superior pode te dar força para te ajudar. Uma demanda de cuidado
é uma demanda antipolítica por excelência, institui outros para
responder pelo que lhes falta. Não devemos procurar por líderes ou
salvadores, a política é exatamente o contrário, é a destituição de
autoridade! Precisamos estar à altura de nossa luta por emancipação! É
preciso construir uma ideia de desamparo diferente, como maturidade
psíquica que o afirme! Essa indeterminação é algo a ser apropriado.
Quando se deixa de pedir amparo, deixa de
eleger o outro como autoridade, deixa de se pensar a política pelo viés
da expectativa. Chegamos ao ponto onde é necessário abandonar a
expectativa de amparo e ser capaz de viver a condição de desamparo,
lidar com afetos que não se controla, com o que é contingente. Uma
relação que não supõe a autoridade, que não se coloca na forma do
cuidado. Admitindo um tempo que desampara, nosso tempo.
Caminhos da afirmação do desamparo, com sua insegurança ontológica que pode nos levar à consequente redução de demandas por figuras de autoridade baseadas na constituição fantasmática de uma força soberana ou mesmo por crenças providenciais a orientar a compreensão teleológica de processos históricos” – Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos, p. 73
É preciso sempre pensar em um corpo, que
afeta e é afetado. Safatle sabe bem nos localizar dentro desta dinâmica,
sim, é preciso pensar em um circuito dos afetos, um corpo que
simplesmente não sabe mais como reagir, que para a situação que se
configura, não possui respostas fáceis, automáticas, certas.
Um corpo que está lançado no mundo sem as possibilidades que antes o localizavam e davam estabilidade. “O
desamparo produz corpos em errância, corpos desprovidos da capacidade
de estabilizar o movimento próprio aos sujeitos através de um processo
de inscrição de partes em uma totalidade” (Safatle, p. 26). Os
antagonismo e as contradições ameaçam rasgar um corpo desamparado, sim, é
perigoso, mas é das fissuras onde moram as possibilidades de criação.
Experiência política central: querer que o
outro me despossua da minha identidade, isso é condição essencial para
que se possa operar transformações importantes na nossa atuação
política. Quando os dois são despossuídos das suas identidades fixas é
possível uma ética dos devires,
só então se abre a possibilidade para situações contingentes e
impredicáveis, onde a diferença se afirma. Só conseguiremos criar quando
formos despossuídos, e nos abrirmos para devires que não sabemos mais
como predicar.
Para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se. Pois é necessário mover-se para fora do que nos promete amparo, sair fora da ordem que nos individualiza, que nos predica no interior da situação atual” – Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos, p. 40
Pensar uma ação política, que não mais
penda tendenciosamente para o lado do medo ou da esperança é estar
preparado para a desmesura que o acontecimento impõe. Conclui-se então
que só pessoas desamparadas podem agir politicamente, por
confrontarem-se com o radical desabamento das relações possíveis.
Caminhar com segurança em meio ao caos, sem projetar um horizonte de
expectativas que viessem a preencher e iludir. Afirmar as contingências,
afirmar a condição de desamparo, dupla afirmação que dissolve o medo e a
esperança, principais inimigos da ação política.
Até aqui, nós podemos concordar com Freud
e Safatle, mas como Razão Inadequada não podemos seguir seus passos até
o fim. Acreditamos que nem mesmo o melhor dançarino move-se sempre no
fio da navalha. O desamparo, para nós, não pode e não deve ser o afeto
central do ato político. É preciso voltar a Espinosa, para quem a alegria e o amor são os únicos afetos capazes de enfrentar os afetos tristes e impotentes. Antonio Negri, por exemplo, trilha um caminho semelhante.
O desamparo é o ponto de partida, uma
constatação para a qual devemos estar à altura, para a qual deve-se
estar preparado e no qual deve-se buscar aliados, fazer rizoma, encontrar linhas de fuga, mas que se compõe pela alegria da luta e o amor que a sustém.
Não tememos o desamparo, mas não seremos
amantes deste frio afeto (bio)político, em nós há uma chama que inspirou
Heráclito e que continua a queimar. Estamos preparados para o desamparo
que assola nossos tempos, mas ele não é um afetos buscado, talvez seja a
constatação do inevitável, quando a vida não permite mais ser apenas um
espectador, mas impõe uma a necessidade de agir.
Texto da série: Afetos (bio)Políticos
Fonte: RAZÃO INADEQUADA
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