abril 23, 2016

O mundo vertiginoso de Kiarostami. POR José Geraldo Couto (BLOG DO IMS)

PICICA: "Quando o cineasta iraniano Abbas Kiarostami surgiu aos olhos do mundo com filmes como Onde fica a casa do meu amigo? (1987) e Close-up (1990), houve quem se apressasse em dizer que seu sucesso no circuito dos festivais se devia a uma curiosidade pelo exotismo. O tempo provou que esses críticos estavam errados. Nas décadas que se seguiram Kiarostami construiu uma das filmografias mais sólidas e originais de nossa época."


O mundo vertiginoso de Kiarostami

POR José Geraldo Couto 

José Geraldo Couto: no cinema | 22.04.2016



Quando o cineasta iraniano Abbas Kiarostami surgiu aos olhos do mundo com filmes como Onde fica a casa do meu amigo? (1987) e Close-up (1990), houve quem se apressasse em dizer que seu sucesso no circuito dos festivais se devia a uma curiosidade pelo exotismo. O tempo provou que esses críticos estavam errados. Nas décadas que se seguiram Kiarostami construiu uma das filmografias mais sólidas e originais de nossa época.

Os cinéfilos de São Paulo e do Rio [link da programação:] têm agora, até 9 de maio, a oportunidade de conhecer essa obra praticamente em sua totalidade, na vasta retrospectiva “Um filme, cem histórias”, apresentada nas unidades paulistana e carioca do Centro Cultural Banco do Brasil.


No primeiro filme realizado por Kiarostami, o curta O pão e o beco (1970), um menino está voltando para casa com um pão quando, numa ruela, depara-se com um cachorro hostil e fica com medo de passar por ele. Dessa situação mínima o diretor constrói um mundo. Medo, imaginação, sagacidade, tudo pulsa naqueles poucos minutos, naqueles poucos metros quadrados.

Talvez soasse interessante dizer que todo o cinema de Kiarostami está contido em embrião nesse curta, mas seria falso. Se é verdade que esses dilemas miúdos, essas minúsculas aventuras envolvendo crianças, repetem-se em filmes como Onde fica a casa do meu amigo? e no roteiro de Kiarostami para o longa O balão branco (1995), de Jafar Panahi, o fato é que a obra do diretor se expandiu para outros temas, caminhos, cenários e latitudes.

Um eixo temático constante, a partir de Close-up (que reencena a incrível história do homem preso ao se passar pelo cineasta Mohsen Makhmalbaf para extorquir uma família), é do embaralhamento entre realidade e representação.

Em Através das oliveiras (1994), durante a realização de um filme numa região devastada por um terremoto, um ator não profissional se apaixona por uma atriz e entremeia suas falas ficcionais com declarações de amor à moça.


Em E a vida continua (1992), um cineasta e seu filho tentam encontrar, também numa região destruída, os moradores locais que participaram, anos antes, de uma filmagem – e fica evidente que a produção em questão era Onde fica a casa do meu amigo?, do próprio Kiarostami, fechando assim um circuito subterrâneo de referências.

Ficção e identidade

O jogo realidade/ficção se desdobra e se refina em outro tópico, o da construção (e esfacelamento) da identidade pessoal, explorado vertiginosamente na fase internacional do cineasta: Cópia fiel (2010), rodado na Itália, e Um alguém apaixonado (2012), no Japão.


A clareza de propósitos, o talento criativo e o domínio absoluto de seus meios permite a Kiarostami criar obras marcantes tanto num contexto de grande produção como nas situações mais precárias. Um exemplo de despojamento material e estético é o extraordinário Dez (2002), que se resume a dez viagens de carro pela cidade de Teerã, nas quais a câmera, sempre dentro do automóvel, registra os diálogos entre a mulher ao volante e seu filho, ou entre ela e outras mulheres. A família, a condição feminina, as transformações do Irã e do mundo, tudo trafega por essas conversas. O dispositivo narrativo é semelhante ao de Gosto de cereja, realizado cinco anos antes, no qual um homem, também dentro de um carro, procura alguém que aceite matá-lo e enterrá-lo em troca de dinheiro.

Kiarostami, que veio algumas vezes ao Brasil, tinha um projeto (referido por Leon Cakoff e Renata Almeida no longa de episódios Bem-vindo a São Paulo): acompanhar com sua câmera uma menina de rua que ele viu uma vez na avenida Paulista, fuçando lixeiras, abordando transeuntes, tomando sorvete, cantando, dançando. O filme seria apenas isso: um longo travelling do início ao fim da avenida, observando essa vida à margem, despojada, solta, imprevisível. Mesmo que não venha a realizá-lo, o projeto permanece como uma síntese possível de sua grande arte.



José Geraldo Couto

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.

Fonte: BLOG DO IMS

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