PICICA: "A
leitura que o filósofo Vladimir Safatle faz do cenário político atual
indica o esgotamento de um ciclo histórico da Nova República. Esse fim
de ciclo é acompanhado de certa melancolia, gerada pela desconfiança na
classe política, que nos paralisa e impede uma ação transformadora, uma
intervenção de mudança efetiva. Safatle esteve esta semana na
Universidade Federal do Pará, em Belém, e tratou dessas e outras
questões na conferência de abertura do Congresso de Estudantes da UFPA
(CONEUFPA)."
ENTREVISTA | Vladimir Safatle
Os conflitos expostos de um Brasil-fenda
Por Guilherme Guerreiro Neto e Rosane Steinbrenner
A
leitura que o filósofo Vladimir Safatle faz do cenário político atual
indica o esgotamento de um ciclo histórico da Nova República. Esse fim
de ciclo é acompanhado de certa melancolia, gerada pela desconfiança na
classe política, que nos paralisa e impede uma ação transformadora, uma
intervenção de mudança efetiva. Safatle esteve esta semana na
Universidade Federal do Pará, em Belém, e tratou dessas e outras
questões na conferência de abertura do Congresso de Estudantes da UFPA
(CONEUFPA).
Após a conferência, Safatle seguiu até a livraria Fox para um encontro sobre sua obra mais recente, chamada O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (Autêntica).
No caminho entre a universidade e a livraria, ele falou ao PRIMEIRAS
LINHAS sobre a fenda latente, agora escancarada, que é o Brasil desde
sempre; a ruína do modelo político de coalizão, do qual o “lulismo” é o
auge; o momento de covardia institucional que a redemocratização
representou; e a necessidade de acionar o poder instituinte ante a crise
democrática que se impõe.
Vladimir
Safatle é professor livre docente do departamento de filosofia da
Universidade de São Paulo, a USP. É também um dos coordenadores da
International Society of Psychoanalysis and Philosophy e do Laboratório
de Pesquisa em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise. Entre outros
livros, publicou Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento (Martins Fontes) e A esquerda que não teme dizer seu nome (Três Estrelas).
“O Brasil sempre foi dividido. Nunca foi um país, foi sempre uma fenda. Sempre houve essa divisão. Ela não tinha se expressado na rua durante um tempo porque a direita brasileira sentia vergonha em relação à ditadura militar, e também porque a direita não tinha figura política que a representasse.”
O Brasil precisa, hoje, mais de um psicanalista ou de um cientista político para entender o que se passa?
Não
precisamos de ninguém, no sentido de uma interpretação que dê conta de
entender. Faz anos que nós imaginávamos que poderíamos chegar nesse
ponto. Era muito claro, de uns cinco anos para cá, que o modelo
econômico implementado tinha batido no teto, que tinha criado uma
frustração relativa enorme, que isso ia explodir. Era claro também que
não conseguimos nem renovar a classe política, quanto mais constituir
novas alternativas. E que o sistema político da Nova República era um
sistema de travas no qual, entre outras coisas, a força do poder
econômico corrompendo o jogo eleitoral estava muito evidente. Esse
cenário de hoje era um dos cenários possíveis. É verdade que era o mais
dramático, mas era um dos cenários possíveis. Não há nada estranho de
termos chegado a esse ponto. Estranho é que tenhamos deixado chegar até
aqui.
E por que chegamos? O Brasil dividido é sintoma do quê?
O
Brasil sempre foi dividido. Nunca foi um país, foi sempre uma fenda.
Sempre houve essa divisão. Ela não tinha se expressado na rua durante um
tempo porque a direita brasileira sentia vergonha em relação à ditadura
militar, e também porque a direita não tinha figura política que a
representasse. Eles tentaram criar o [Fernando] Collor. Deu no que deu.
Eles sabiam que a chance da esquerda ganhar depois do Collor era enorme.
Então cooptaram alguém que vinha da esquerda, que era o Fernando
Henrique [Cardoso]. Durante muito tempo, eles tiveram um tipo de
representação no jogo político por alguém que não era organicamente
vinculado à direita, mas que se tornou; por um partido [PSDB] que também
não era organicamente ligado à direita, mas que foi se tornando, numa
metamorfose medonha. Deu um pouco a impressão de que o país estava
conciliado. Só que essa conciliação era irreal. Estamos falando de um
país que não conseguiu se conciliar nem para ter uma narrativa única a
respeito da ditadura militar. Não conseguimos nem fazer isso. Que a
divisão exploda, eu mesmo não vejo como um problema. De uma forma ou de
outra isso ia acontecer. Não temos um país com um acordo mínimo sobre o
que pode e o que não pode ser feito. Então, pelo menos, que isso fique
claro. A pior coisa numa situação na qual não há conciliação é você
procurar uma conciliação extorquida. Existe um antagonismo absoluto no
Brasil. A primeira coisa que se tem que fazer é falar isso em alto e bom
tom.
Esse é um dos problemas da tentativa de coalizão que o PT articulou durante seus governos?
O
modelo de política de coalizão não é só do PT, é o modelo da Nova
República. Todos os consórcios de poder da Nova República tentaram
implementar a mesma lógica de grandes coalizões. Que é um pouco a ideia
de que é possível criar uma experiência de governabilidade colocando no
mesmo consórcio todos os setores da política brasileira. É verdade que o
“lulismo” foi o auge disso. O Lula conseguiu transplantar todos os
conflitos da sociedade brasileira no interior do Estado. Por exemplo, o
conflito entre os desenvolvimentistas e os ortodoxos na economia era um
conflito entre o Ministério do Planejamento e o Banco Central. O
conflito entre agronegócio e ecologia era um conflito entre Ministério
da Agricultura e Ministério do Meio Ambiente. O conflito entre os
defensores dos Direitos Humanos e o Exército era um conflito entre
Secretaria Nacional de Direitos Humanos e Ministério da Defesa. Como o
Lula tinha esse papel de mediador universal, ele conseguiu fazer esse
transplante. Algo que seria, normalmente, uma situação de completa
esquizofrenia, foi visto como grande habilidade política. Quando o
George W. Bush veio ao Brasil, teve um momento que, para mim, é o mais
paradigmático. Ele foi à Granja do Torto e fez um discurso dizendo que o
Lula era seu maior aliado na América Latina. Enquanto isso, na rua,
estava acontecendo uma grande manifestação, patrocinada pelo partido do
Lula, pelo PT, contra a vinda do George W. Bush. Você percebe como é
completamente esquizofrênico o processo? Mas isso era só um modelo, que é
a essência da política brasileira. É a atualização do modelo varguista,
é a atualização de um certo tipo de populismo, que [Ernesto] Laclau
descreveu muito bem, em que você vai tentando organizar as demandas
contraditórias da sociedade a partir da eleição de um significante
vazio. No caso, o próprio Lula. Esse tipo de modelo ruiu de uma vez.
“Nenhum país fez uma redemocratização tão travada, tão ruim quanto foi a brasileira. E todo mundo queria acreditar que havíamos conseguido criar uma redemocratização sem grandes conflitos. Não, nós adiamos os conflitos.”
Qual é o balanço que se pode fazer da Nova República?
A
Nova República foi um momento de covardia institucional brasileira
inacreditável. Foi uma das piores alternativas de saída da ditadura.
Nenhum país fez uma redemocratização tão travada, tão ruim quanto foi a
brasileira. E todo mundo queria acreditar que havíamos conseguido criar
uma redemocratização sem grandes conflitos. Não, nós adiamos os
conflitos. Teria sido muito melhor que esses conflitos tivessem
aparecido lá atrás, porque era o momento em que a esquerda estava mais
fortalecida e ela poderia não ser cooptada — como acabou sendo. Mas
foram aparecer agora.
Por isso há tantos fantasmas da ditadura na democracia brasileira?
Com
certeza. Nós estamos representando uma peça que aconteceu nos anos
1960. Você percebe quanta discussão sobre comunismo numa época em que
não existe mais comunismo? Não tem ninguém. Quem? O PCB? O PCB no Brasil
é um partido geriátrico, tem 20 pessoas, você vai contar nos dedos. É
completamente surreal. Mas significa o quê? Que estamos simplesmente
representando uma experiência traumática que ficou em latência durante
50 anos. E que explodiu agora de novo. É muito engraçado, são quase os
mesmos personagens. O Lula faz o papel do [Getúlio] Vargas, a oposição
faz o papel da UDN, o Fernando Henrique faz o papel de Carlos Lacerda da
rua Maranhão…
E a Dilma?
A
Dilma faz o papel de um João Goulart dramático. De um sujeito que é
jogado para dentro do processo, que não é exatamente o representante
maior de processo nenhum. Para mim, essa situação de fim do governo
Dilma parece mais, na verdade, com a Isabelita Perón, parece com o fim
do peronismo na Argentina. O mesmo tipo de fraqueza, de incapacidade. A
mesma ideia. O Lula teve uma ideia digna do Perón: colocar alguém na
Presidência que, desculpem, é um holograma. A Dilma não representa
ninguém nem nada. Ele queria fazer um jogo meio [Vladimir]
Putin — [Dmitri] Medvedev e deu no que deu.
Voltando
ao que você falou sobre a falência do modelo de coalizão, o que se
percebe, numa tentativa de sobreviver, é a insistência do governo nesse
modelo, distribuindo o que sobrou da fratura política. O que é possível
projetar?
É
a maneira como o PT sabe governar. Não consegue fazer de outra forma. E
nem se quisesse ele poderia mudar. Essas coisas não são assim. Você
paulatinamente vai criando a capacidade de mobilizar, de ter
legitimidade, de ter um certo ethos.
Quando você perde, é como um cristal que se quebra. Não vai colar de
novo. São 14 anos no governo. Nunca, na história democrática brasileira,
um partido ficou tanto tempo no governo. Depois de tanto tempo no
governo, você muda seu modus operandi
de uma forma tal que eles não saberiam nem como fazer de outra maneira.
Tem aí duas questões. A primeira é: de fato, esse processo de
impeachment é um golpe tosco e primário. Não há muito o que questionar. É
a velha história de tentar sacrificar a pessoa que está na frente para
conservar todos os operadores de bastidor. Nesse sentido, a primeira
coisa que o governo faz hoje é tentar sobreviver. De uma certa
perspectiva, não se pode deixar um impeachment como esse passar. O preço
para a sociedade brasileira vai ser enorme. O tamanho do vazio de
garantia institucional que se vai abrir é inacreditável. Isso é por um
lado. Por outro, para não ficar pensando só em curto prazo, as
alternativas de governo representados pela experiência do “lulismo” em
geral, com a Dilma no meio, esgotaram-se por completo. Não consigo
imaginar o que pode ser um governo Dilma nos próximos dois anos e meio.
Acho que ninguém imagina, muito menos o próprio governo. Dentro dessas
circunstâncias, talvez a solução menos pior — porque não há solução boa
neste momento — seria que ela convocasse um plebiscito, em acordo com o
Congresso, para saber se a população quer que ela continue e que o
Congresso continue — porque não adianta trocar o presidente com um
Congresso onde quase um terço dos parlamentares está indiciado em algum
tipo de crime. Feita a consulta, você pode convocar eleições gerais. Mas
acho importante que fosse feito um plebiscito para a população decidir
se quer ou não continuar. Se o governo tiver a capacidade de propor algo
dessa natureza, consegue criar uma coalizão até com os pró-impeachment.
Uma parte da população que é pró-impeachment, com certeza, preferiria
assim, zerar tudo e começar de novo. Em situações de crise, o que a
democracia faz é chamar o poder instituinte. Essa sempre vai ser a
melhor saída. Existe uma crise no Brasil. Uma crise profunda. Não há
outra coisa a fazer a não ser chamar o poder instituinte. E o poder
instituinte delibera.
“Poderia ser um belo momento para que nós abandonássemos um certo primado dessas instituições de estrutura representativa e tentássemos construir instituições que possam garantir uma presença mais efetiva de democracia direta”
Essa ação poderia combater aquilo que você chama de uma perspectiva de melancolia?
Acho
que sim. Porque dá, de novo, a força de decisão ao poder instituinte.
As saídas que vão aparecer aí serão saídas feitas não pela classe
política, não pelos operadores de bastidor, não pela imprensa. Vai ser
uma saída feita pela decisão popular. Por mais que essa decisão popular
possa ter lá suas limitações, pelo fato de haver uma estrutura de
partido, de divisão de tempo… Mas isso é menor diante do impasse que foi
gerado. E até essa história de “ah, mas tem uma onda conservadora que
vai nos levar”, para mim, é meio da ordem do desonesto. Porque não há
uma onda conversadora, há uma esquerda desagregada. Quando você tem uma
esquerda desagregada, o pessoal conservador faz a festa, vai para cima
mesmo. Não tem um contraponto. Não é que tenha um fortalecimento
conservador, tem uma quebra do contraponto. Esse é o problema. Não sei
quem está impressionado com a direita botar 400 mil pessoas na rua. Eles
sempre conseguiram fazer isso no Brasil. Se precisasse botar 200 mil
pessoas, 300 mil, eles botavam. E vão continuar botando. Existe, de
fato, uma parcela da população brasileira de classe baixa, média, alta
que é conservadora, sempre foi. Só que tem uma outra parcela que não é,
mas está desarticulada.
Mas
essa parcela desarticulada, em certo sentido melancólica, não corre o
risco de ser colocada de lado pela parcela que está eufórica, pela
direita que deixou de se envergonhar?
Só
se ela quiser. Se não quiser, ela é capaz de se organizar, é capaz de
produzir novas alternativas, é capaz de criar novos atores políticos, é
capaz de recolocar o jogo em outra posição. Você viu como estão as
pesquisas eleitorais caso a eleição para presidente fosse hoje? Um pouco
a frente, está a Marina, com 21%, que pode não ser de esquerda, mas
também não é representante mor do pensamento conservador. Tem o Aécio,
que do ponto de vista eleitoral é o melhor candidato que eles
conseguiram montar, com 19%. E tem o Lula, que depois de toda essa
confusão — isso é realmente impressionante — ainda consegue ter 17%. Ou
seja, eles estão em empate técnico. Qualquer coisa pode acontecer. Acho
que é por isso que o impeachment apareceu. Quando eles viram essas
pesquisas, falaram: “não, mas espera aí, corremos o risco de não ganhar”
(risos). De resto, você tem o Ciro Gomes, com 6%, tem o [Jair]
Bolsonaro, que tem 6% — era de se esperar que essa franja fascista da
sociedade brasileira acabasse se encarnando em alguém — e você tem a
Luciana [Genro], com 3%. Percebe? Não se configura uma onda conservadora
do ponto de vista eleitoral.
Como reconstruir as instituições depois da crise?
Poderia
ser um belo momento para que nós abandonássemos um certo primado dessas
instituições de estrutura representativa e tentássemos construir
instituições que possam garantir uma presença mais efetiva de democracia
direta. O Brasil poderia modificar qualitativamente sua experiência
democrática em vez de tentar fazer reforma política, começar a discutir
se senador tem que ter quatro ou oito anos de mandato, se vai ser voto
distrital ou misto. Essas questões, francamente, são manobras
diversionistas para um problema que é muito mais sério: a distância da
população em relação aos processos decisórios.
Primeiras Linhas
Plataforma digital do jornal-laboratório feito por alunos da Faculdade de Comunicação da UFPA
Fonte: MEDIUM
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