PICICA: "“Quem imagina que aquilo que ama é
destruído se entristecerá; se, por outro lado, imagina que aquilo que
ama é conservado, se alegrará.” – Espinosa, Ética III, Prop. 19"
“Quem imagina que aquilo que ama é destruído se entristecerá; se, por outro lado, imagina que aquilo que ama é conservado, se alegrará.” – Espinosa, Ética III, Prop. 19
Somos um esforço constante para aumentar nossa potência, somos conatus, palavra latina que Espinosa
transforma em conceito para explicar este esforço do homem para afetar e
ser afetado conforme sua natureza. Um circuito dos afetos trata desta
variação do homem em uma sociedade, de como ele se torna mais potente ou
impotente de acordo com a realidade em que vive e de como os afetos
atestam a natureza da sociedade em que toma parte. Se o homem, para
viver junto e em harmonia precisa analisar suas paixões e analisá-la com
a ajuda da razão, então, infelizmente, temos que admitir que estamos
indo bem mal.
Nosso corpo é afetado pelo mundo que é
muito maior que nós. Mesmo assim, somos parte dele, uma parte muito
pequena, é verdade, mas ainda assim uma parte da potência de ser.
Por estes motivos, quando não estamos conforme nossa natureza sentimos
uma enorme quantidade de afetos tristes. Espinosa faz uma verdadeira
“Ciência dos Afetos”, onde um afeto deriva geometricamente do outro.
Sendo então uma parte da realidade, nós
agimos e somos agidos (pela força das paixões). Quando afetos tristes
diminuem nossa potência de agir e de pensar, dizemos que estamos em
estado de servidão, e a mente se esforça tanto quanto está em sua capacidade, por imaginar coisas que a alegrem novamente: “tudo vai melhorar, mês que vem, ano que vem, na próxima vida“. A imaginação é resultado direto do corpo que é afetado, mesmo não sendo seu fruto mais nobre.
Espinosa nos explica então qual o sentimento que aparece quando algo ou alguém nos deixa triste: ódio.
Num primeiro momento, ninguém se alegra com a tristeza dos outros, mas
há uma outra estranha possibilidade: existem alegrias tristes, diz
Espinosa, são alegrias que derivam de tristeza. Estranho, mas possível, o
filósofo fala de como afetos de alegria podem derivar do ódio:
Quem imagina que aquilo que odeia é afetado tristeza se alegrará; se, contrariamente, imagina que é afetado
alegria, se entristecerá” – Espinosa, Ética III, prop. 23
A indignação faz parte deste conjunto de
afetos tristes que derivam da impotência. Quem vê aquele causar tristeza
aos outros, fica indignado. A indignação é o ódio de quem afeta nosso
semelhante de tristeza. E ela é tanto maior quanto mais a vítima se
parece conosco e aparenta ter sido prejudicada.
A indignação é o ódio por alguém que fez mal a um outro” Espinosa, Ética III, Definição dos afetos, §20
Mas este afeto nivela por baixo, ele
recobre as diferenças produtivas (e mesmo as improdutivas) para gerar um
caldo de ódio raivoso e irracional. Por trás da indignação a diferença
se esconde, sem poder conectar-se a nada, é o homem afastado do que
pode, é a cegueira da potência que se transforma na luta pelo poder. Ao
fim, a indignação não une realmente, porque o faz artificialmente pela
tristeza (une pela exterioridade da situação, não pela força interna).
Na verdade, é exatamente o contrário, a médio longo prazo, a indignação
corrói todas as chances de união porque não tem força de criação, apenas
de destruição. Basta a figura odiada (quase sempre uma autoridade) ser
eliminada, a contrariedade das paixões leva a luta dos homens, que antes
concordavam, a lutar entre si.
Indignação é impotência. O indignado está a anos luz do Homem Revoltado, como Albert Camus
definiu. A indignação é sintoma de uma sociedade dividida, afastada do
que pode, incapaz de agir em conjunto. As ligações estão fracas, ou
praticamente rompidas, não há trocas, não há espaço para o encontro,
fica-se apenas nos signos, uma bandeira nas costas e uma panela
estridente na janela. Ficar no que nos afetou, na imaginação,
sem procurar pelas causas e sem fazer a devida análise das relações que
a geraram é um passo para a superstição, como se atos mágicos pudessem
mudar toda nossa realidade sem muito esforço, ação e pensamento.
Definitivamente, o indignado que agita os braços e aperta buzinas é
diferente do manifestante que propõe ações diretas.
A indignação é um afeto ardiloso,
traiçoeiro. Como não gritar indignado em praças públicas sobre todas as
injustiças do mundo? Como não levantar-se indignado contra aqueles que
nos oprimem? Espinosa está do nosso lado, mas não da maneira triste com a
qual imaginamos. Indignação não é equidade, ela é uma impostora tal
qual o ressentimento, ela tem ares de justa, mas não passa de um afeto
triste. E seu antônimo: resignação? Pior ainda! não estamos na
gramática! Estamos na ciência dos afetos!
Se o ódio, como o definimos nunca pode
ser bom, qualquer afeto que derive dele também não pode ser bom. Mas
como poderíamos fazer alguma coisa sem uma parcela de indignação?
Espinosa jamais poderia propor uma Ética
que exigisse nossa submissão. Mas não agimos por causa da indignação, e
sim apesar dela. Qualquer ação que brote da indignação é uma paixão
ruim porque nasce da tristeza e da impotência. Ainda assim, a análise
dos afetos pode nos levar a realizar as mesmas ações baseadas na razão e
na potência de agir. Exatamente aí está a liberdade e a felicidade!
A lei que nasce da concórdia da razão e
dos afetos alegres é mais potente que a lei que surge do medo e da
ameaça de um mal maior. Vislumbra-se assim a possibilidade de uma cidade
que vive em segurança porque acredita em si mesma e não porque teme
algo pior. Uma cidade que vive no medo é facilmente levada, pela força
das paixões, à indignação, que não é baseada na razão, mas na servidão
às forças que nos movem de fora.
Ora, se em uma comunidade, cidade, país,
um cidadão não depende apenas de si mesmo para viver, precisamos pensar a
melhor forma de estar juntos, e mais do que apenas tolerar, ser capaz
de ajudar-nos mutuamente. Uma cidade mergulhada no medo é uma cidade que
vive em esperança e pende facilmente para o ódio, intolerância,
ressentimento, indignação! Resultado – fechamento, isolamento,
desconfiança, introjeção. Não, não, nada de bom pode vir diretamente dos
afetos tristes. Por isso preferimos seguir por outra via.
Saindo do primeiro gênero de conhecimento (imaginativo e supersticioso) é possível chegar no segundo, das noções comuns,
mas isso somente através dos afetos alegres. A razão propõe um dinâmica
diferente para os afetos, uma circulação que produz, que cria. A razão
propõe que o homem se una e se ajude mutuamente para aumentar sua
própria potência. Não há nada mais útil que unir-se pela alegria, em uma
liberdade propiciada pela união, crescendo apenas onde cresce a
liberdade do outro. Caminhos que se cruzam, pontes que se constroem,
afetos que nascem, encontros que se efetuam. Bem diferente do
apartamento subjetivo-social e do apartamento com grades e muros altos,
bem diferente do carro blindado e do isolamento moderno. “A liberdade do
outro estende a minha ao infinito” Bakunin.
Enfim, não cair na indignação é estar
forte o bastante para continuar lutando de maneira saudável. Assim como
disse Che Guevara: preparar-se para a luta, “endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura“, a frase é muito boa e dá conta da distinção entre alguém ativo politicamente e alguém perdido em medo e apelos.
Sim, estamos em um campo minado, sim a
luta é diária, mas não podemos perder a ternura, não podemos nos perder
em meio aos afetos que nos fariam perder-nos de nós mesmos. É possível
lutar e enfrentar as injustiças com um grande sentimento de alegria e
amor! Espinosa ensina a não fazer a coisa certa da maneira errada, ou
melhor, ensina como não existem fins, apenas meios.
Texto da série: Afetos (bio)Políticos
Fonte: RAZÃO INADEQUADA
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