PICICA: "O
que tem na cabeça de um ministro, de um juiz, de um jornalista, de um
governador, de um policial, de um bispo e até de um fazendeiro, enfim,
qual imagem têm do índio esses agentes que algumas vezes são obrigados a
lidar com culturas dotadas de lógicas e de línguas tão diferentes? Que
conhecimentos possuem eles sobre esses povos?
[...]
Essas
e outras perguntas foram respondidas pela jornalista e pesquisadora
amazonense Verenilde Santos Pereira, que defendeu na última sexta-feira,
31 de maio, sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) sobre a cobertura
jornalística no "massacre" da Expedição Calleri. Ela conhece os jornais
por dentro, trabalhou como repórter em vários deles, inclusive no
"Porantim", o jornal mensal do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Em
sua pesquisa, a agora doutora Verenilde fuçou arquivos, recuperou as
matérias jornalísticas publicadas por jornais de Manaus e outros de
circulação nacional para analisá-las e refletir sobre a singularidade
jornalística na cobertura feita sobre a Expedição Calleri. Seu objetivo
era descobrir o que foi silenciado para a afirmação de tal
singularidade."
O ÍNDIO DA MÍDIA
José Ribamar Bessa Freire
02/06/2013 - Diário do Amazonas
A manchete do Estadão (23/11/68) usou o verbo trucidar e as palavras chacina e ferocidade
quando noticiou que nove corpos de membros da Expedição Calleri foram
localizados, em 1968, no território dos Waimiri-Atroari. Embora ninguém
soubesse ainda o que havia efetivamente ocorrido, o repórter, antes
mesmo de se deslocar até a área, se apressou em afirmar que os índios
eram os autores da carnificina. Para isso, exibiu antecedentes históricos sem mencionar qualquer referência documental:
"Calcula-se que mais de 1500 brancos foram massacrados pelos Waimiri-Atroari de umas décadas para cá".
Quem
calculou? O sujeito é indeterminado. Quantas décadas? O período é
impreciso. De onde tirou os dados? Sabe Deus. O certo é que, sem citar
fontes, traça o perfil dos Waimiri de forma sádica e preconceituosa: "Os silvícolas costumam picar suas vítimas em pedacinhos e queimá-las até virarem cinzas".
Olhando agora, a gente duvida que alguém tenha tido a coragem de
publicar tal bobagem, digerida por milhares de leitores, muitos dos
quais acabaram acreditando na potoca. O relato virou "verdade", se fez
carne e habitou entre nós.
Afinal,
quem matou os nove membros da Expedição, entre eles o padre Calleri?
Quando suspeita que a ação é cometida por índios, a grande imprensa, em
voz uníssona, apresenta-os como os sujeitos da ação e qualifica-os como
feras, reforçando preconceitos. A Expedição visava atrair os
"silvícolas" para afastá-los de seu território, que seria rasgado pela
estrada Br-174. Apesar disso, para a mídia, os índios agiram não em
legítima defesa da terra invadida, mas por causa de sua "natureza
bestial".
No
entanto, quando ocorre o contrário, o sujeito da oração não é quem
disparou o tiro assassino, continua sendo o índio, como registrou O Globo em
manchete na última sexta-feira: "INDIO MORRE EM CONFRONTO COM
POLICIAIS". Ou seja, ninguém matou, ele é que morreu. Não há
responsáveis.
Quem matou?
Na
regra do jornalismo é preciso responder, entre outras perguntas, o
"quem", já no primeiro parágrafo, no lide. Quem matou o terena Oziel
Gabriel, em Sidrolândia (MS), na fazenda que desde 2010 foi declarada
Terra Indígena? Quem disparou os tiros que feriram muitos índios, entre
eles, mulheres, idosos e crianças? Por que? Nenhuma análise foi feita
pela mídia sobre as razões do conflito, nem sobre quantos índios foram
assassinados, sequer quantos índios "morreram" nas "últimas décadas".
Um
juiz federal deu a reintegração de posse ao ex-deputado Ricardo Bacha
que jura, fazendo figa, que a terra é dele. Dez equipes da Policia
Federal e cem homens da Tropa de Elite da PM, armados, cercaram os
índios, jogaram bombas e dispararam tiros. O ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo diz que "se a investigação comprovar irregularidade ou abuso, os responsáveis serão devidamente punidos?".
Deixa ver se entendi bem: quer dizer que existe, então, "assassinato
regular" e "assassinato irregular"? "Morte com abuso" e "morte sem
abuso"?
- "Até o momento não se pode dizer de onde partiu o tiro. Não prejulgaremos" -
disse Cardozo, que não faz prejulgamento quando se trata de saber quem
matou índios, mas não hesita em prejulgar inofensivos facebookeiros
quando denuncia "ativistas que estariam incentivando a violência nas redes sociais".
O
ministro não sabe, mas eu sei de onde partiu o tiro. Se ele quiser,
posso testemunhar e dar os nomes aos bois e às vacas. O primeiro tiro
foi disparado por um canhão em abril de 1.500 e de lá para cá, "nos
últimos séculos", metralhadoras de repetição não cessaram de cuspir
fogo, disparadas por bandeirantes ao longo de todo o período colonial,
por bugreiros no Império e na República e agora pelo agronegócio ávido
em abocanhar as terras indígenas.
O
que ocorreu aqui foi "a maior catástrofe demográfica da história da
humanidade", segundo demógrafos da Escola de Berkeley, que refinaram
seus métodos de análise. Nunca uma região foi esvaziada tão violenta,
drástica e rapidamente como o continente americano. Mas o processo não
terminou no período colonial. Persiste ainda hoje. O colonialismo, como
estrutura de dominação é historicamente datado, mas a colonialidade -
para citar termo consagrado por Anibal Quijano - é mais profunda e
duradoura. Continua entranhada na cabeça das pessoas, orientando
comportamentos.
O
que tem na cabeça de um ministro, de um juiz, de um jornalista, de um
governador, de um policial, de um bispo e até de um fazendeiro, enfim,
qual imagem têm do índio esses agentes que algumas vezes são obrigados a
lidar com culturas dotadas de lógicas e de línguas tão diferentes? Que
conhecimentos possuem eles sobre esses povos?
Bomba na maloca
Essas
e outras perguntas foram respondidas pela jornalista e pesquisadora
amazonense Verenilde Santos Pereira, que defendeu na última sexta-feira,
31 de maio, sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) sobre a cobertura
jornalística no "massacre" da Expedição Calleri. Ela conhece os jornais
por dentro, trabalhou como repórter em vários deles, inclusive no
"Porantim", o jornal mensal do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Em
sua pesquisa, a agora doutora Verenilde fuçou arquivos, recuperou as
matérias jornalísticas publicadas por jornais de Manaus e outros de
circulação nacional para analisá-las e refletir sobre a singularidade
jornalística na cobertura feita sobre a Expedição Calleri. Seu objetivo
era descobrir o que foi silenciado para a afirmação de tal
singularidade.
Aprendemos,
nas escolas de jornalismo, que na construção de uma narrativa é preciso
sempre ouvir o "outro lado". Acontece que as matérias analisadas pela
doutoranda foram compostas, paradoxalmente, com o silêncio dos índios,
os principais protagonistas do episódio. A voz foi dada sempre só a um
lado, especialmente às autoridades, que viam nos índios um obstáculo
para a abertura da estrada Br-174.
Verenilde
mostra como o então governador do Amazonas Danilo Areosa e o governador
de Roraima Fernando Ramos Pereira concordaram, em repetidas
declarações, que "uma minoria de índios não pode atravancar o
progresso". Até o bispo Dom João de Souza Lima, na celebração dos
rituais fúnebres dos mortos na Expedição Calleri, fez um sermão
condenando os índios que "por serem ignorantes não compreenderam o gesto de amor do padre Calleri e trucidaram os membros da expedição".
A
fala contra os índios foi articulada até mesmo pelo presidente da
Funai, na época o jornalista Queiroz Campos, que devia combater os
preconceitos e contribuir para que a população brasileira conhecesse um
pouco mais as culturas indígenas. Ele declarou à Folha de São Paulo que "os índios são altamente ferozes, perigosos e costumam estraçalhar e queimar vivos os inimigos vencidos".
Diante
desse coro afinado de vozes, quem aloprou foi o coronel Jorge Teixeira,
que emprestou seu nome a logradouros públicos em Manaus, de onde foi
prefeito nomeado, e em Rondônia, de onde foi governador. Na época, ele
era comandante do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS)
e falando daquele lugar o nosso Eichmann caboco apresentou a solução
final:
- "Nós poderíamos resolver tudo com algumas bombas jogadas sobre as malocas à noite".
A fala dos índios
A
truculência e ignorância das autoridades, a subtração da informação, o
emudecimento dos índios pela mídia levaram Verenilde a recuperar
depoimentos e desenhos dos Waimiri-Atroari recolhidos por Egydio Schwade
e Dorothy Muller, professores da Escola Waimiri, e pelo antropólogo
Stephen Baines. Um artigo de Egydio publicado recentemente no Porantim
relata o massacre dos índios na ditadura militar e registra o que foi
subtraído do noticiário da mídia. A proposta do coronel Teixeirão foi
acatada.
Os
Kiña - autodenominação dos Waimiri-Atroari - realizaram em setembro de
1974 uma festa na aldeia Kramna Mudi, no baixo rio Alalaú. Por volta de
meio dia, um avião se aproxima. O pessoal sai da maloca pra ver: as
crianças se concentram no pátio central. O avião derramou um pó mortal e
matou 33 índios, deixando apenas um único sobrevivente, que relatou o
fato dando o nome de cada um dos 33 parentes mortos, que não tinham
qualquer sinal de violência no corpo.
Depoimentos
de vários índios, entre os quais Damxiri, Panaxi e Yaba narram os
massacres sofridos pelos Waimiri-Atroari. Verenilde, que os valoriza,
usa o quadro teórico de Hannah Arendt, para quem "todas as dores podem
ser suportadas se forem postas em uma história ou quando se conta uma
história sobre elas". Não se trata de mera descrição dos fatos, mas de
um modo de pensá-los. Uma forma de estabelecer vínculo com o mundo é
contar uma história dele, ai os fatos adquirem significado. É dessa
forma que o pensamento narracional se afirma.
A
tese analisa o comportamento da mídia na cobertura sobre a Expedição
Calleri, usando a noção de "banalidade do mal" formulada por Hannah
Arendt a partir do julgamento de Adolf Eichmann, oficial da Gestapo que
exterminou judeus. A banalidade do mal se apoia na incapacidade de se
colocar na pele do outro e a partir daí tentar compreender o "ponto de
vista" do outro. Tal incapacidade leva a uma excessiva superficialidade e
à derrota do pensamento ao tentar narrar o outro. É o que acontece com a
mídia. A imagem do índio criada pela mídia é fruto da banalidade do
mal.
P.S.
- Verenilde Santos Pereira: Singularidade Jornalistica e violência: o
"massacre" da Expedição Calleri. Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasilia
(UnB). 31 de maio de 2013. Banca: Dra. Rita Laura Segato (orientadora),
Wenderson Flor, Sérgio Dayrell Porto, Luiz Martins e José R.Bessa
Fonte: TAQUIPRATI
Nenhum comentário:
Postar um comentário