PICICA: "E minha cabeça de fã e cinéfila não parou mais de se sentir inspirada
com a ideia de ver outras canções transformadas em filmes, tais como:
“Family snapshot” de Peter Gabriel, o álbum inteiro Outside de
David Bowie, ou “Ten Summoner’s Tales” do Sting, “Domingo no parque” de
Gilberto Gil, “Conto de areia” de Clara Nunes, “Construção” ou “Geni e o
Zepelin” de Chico Buarque…"
Faroeste Caboclo
O filme conseguiu a proeza de se equilibrar na corda bamba entre o uso respeitoso do texto original e a inovação.
Há letras de músicas irremediavelmente belas, que nos levam a criar imagens em nossas mentes como fazem os livros. E cada compositor o faz à sua maneira, quer por contar uma estória com personagens, quer por sobreposição de metáforas e alusões poéticas através de rimas preciosas.
A primeira coisa que me veio à cabeça após saber que “Faroeste caboclo” de Renato Russo iria virar filme foi verificar quais outras canções tiveram ou teriam o mesmo poder de inspirar cineastas. Na minha pesquisa, relembrei de outro brasileiro, Menino da porteira, versão de 1976 de Jeremias Moreira Filho, um blockbuster na época, baseado na canção homônima de Tedy Vieira. Encontrei também The crying game, filme lindíssimo de Neil Jordan inspirado de leve na canção de mesmo nome de David Berry (no filme, interpretada por Boy George).
O resultado que mais me intrigou, todavia, foi saber que houve dois roteiros que nunca viraram filmes, baseados na estupenda canção de Bob Dylan chamada “Lily, Rosemary and the Jack of Hearts”. E, ao reler a letra, qual não foi minha surpresa em ver muita coisa parecida com “Faroeste caboclo” — nem tanto nos personagens, mas na intenção de contar uma estória que fosse familiar, universal, atemporal e ao mesmo tempo revista à luz da modernidade. Na canção de Dylan, é clara a alusão ao um bar-cabaret de um antigo western com matizes do presente através da escolha do vocabulário. Fiquei imaginando que, dentre tantas influências que Renato usou em vida com tanta artimanha, esta talvez também pudesse ter sido uma fonte para “Faroeste caboclo”.
Com ou sem esta resposta, todos nós sabemos, quer você pertença à geração de Renato ou não, que “Faroeste caboclo” não só conseguiu nos fazer recriar a estória de João de Santo Cristo na cabeça como num filme, como também conseguiu usar a linguagem cinematográfica implícita da guerra de poder dos faroestes americanos, usando brilhantemente um glossário advindo da realidade brasileira e assim nos fazer ver que este tipo de lenda urbana continua e se recria a cada fase da história do ocidente.
Perigo era se arvorar em transformar este lindo clássico do rock nacional em um filme, visto que a canção parecia já ter feito tudo o que lhe cabia fazer. Colocar a leitura de algo em mise-en-scène é mais do que difícil, é delicado, arriscado. Como eu mesma já comentei em outras resenhas por aqui, em termos de adaptação cinematográfica, remeter à fonte é preciso e fidelidade demais, mata.
Faroeste caboclo conseguiu a proeza de se equilibrar na corda bamba entre o uso respeitoso do texto original e a inovação. Tanto é que, se existe algum mortal neste planeta chamado Brasil que não conheça a canção, pode ver o filme tranquilamente sem ficar perdido. Quem a conhece, vai sentir a sutileza da referência à letra e ainda se surpreender com algumas leituras novas que talvez não sejam exatamente as que pensamos nos anos 80, mas que não estragam a trama. Particularmente, senti falta do João xingando o general-de-dez-estrelas. Posso afirmar que há aquele frenesi gostoso – semelhante a de Crônica de uma morte anunciada (Garcia Marques) — de já sabermos o final e mesmo assim torcer para que o herói pelo menos morra bonito.
Tecnicamente falando, Faroeste caboclo é muito responsável e sóbrio: fotografia, iluminação, casting competentes. E de uma trilha sonora impecável, com direito a uma cena emblemática de um show da Legião Urbana no underground de Brasília. Se você se vir comparando-o com Django livre, não se sinta culpado, pode até mesmo ser inevitável em alguns pontos. Mas o filme se sustenta sozinho, não se preocupe.
E minha cabeça de fã e cinéfila não parou mais de se sentir inspirada com a ideia de ver outras canções transformadas em filmes, tais como: “Family snapshot” de Peter Gabriel, o álbum inteiro Outside de David Bowie, ou “Ten Summoner’s Tales” do Sting, “Domingo no parque” de Gilberto Gil, “Conto de areia” de Clara Nunes, “Construção” ou “Geni e o Zepelin” de Chico Buarque…
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Ana Al Izdihar
Mestra em Letras pela UFSC, na área de crítica literária e cinema.
Fonte: Amálgama
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