PICICA: "A atitude do
governo federal de desqualificar, através da Casa Civil, os estudos
antropológicos desenvolvidos pela FUNAI e que servem de base aos
processos administrativos para efetivar as demarcações de terras
indígenas, gerou uma insegurança jurídica para os interesses dos povos
indígenas no Brasil."
Carta à presidenta Dilma Rousseff
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A atitude do
governo federal de desqualificar, através da Casa Civil, os estudos
antropológicos desenvolvidos pela FUNAI e que servem de base aos
processos administrativos para efetivar as demarcações de terras
indígenas, gerou uma insegurança jurídica para os interesses dos povos
indígenas no Brasil.
A decisão da
Casa Civil da Presidência da Republica apresentada aos representantes
do agronegócio e parlamentares do Mato Grosso do Sul, em reunião na
semana passada em Brasília, de que a Embrapa, Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento, Ministério do Desenvolvimento Agrário,
“avaliarão e darão contribuições” aos estudos antropológicos realizados
pela FUNAI, repete a ação do último governo militar ao instituir o
famigerado “grupão” do MIRAD, capitaneado pelo general Venturuni, para
“disciplinar” a FUNAI e “avaliar” as demandas indígenas.
O caminho
para uma demarcação de terra indígena hoje é complexo e apesar do
Decreto 1.775/96 (da lavra do então Ministro Nelson Jobim) facultar o
contraditório em todas as fases do processo administrativo, este
processo acaba indo parar na justiça a partir da simples nomeação, pela
FUNAI, do grupo técnico encarregado de identificar uma terra indígena. E
a judicialização é cheia de percalços e artimanhas jurídicas, medidas
liminares a serviço do impedimento, chegando a absurdos como, por
exemplo a Reclamação 8070 (relativa a terra indígena Raposa Serra do
Sol), que ocupou tempo e trabalho de juízes. Mecanismos de protelação
judicial que empurram a solução dos conflitos por décadas afrontando a
obrigação constitucional da União de concluir as demarcações até cinco
anos após a promulgação da Constituição de 1988.
O processo
das terras terenas, onde acaba de ser assassinado pela Polícia Federal o
índio Oziel Gabriel de 35 anos, chegou ao STF depois de 13 anos de
tramitação e ao alcançar tão alta instância do judiciário brasileiro,
com aprovação em plenário, onde analisou-se nos autos as provas de cada
lado envolvido juntadas em todos estes anos de tribunais, retorna à
Justiça do Mato Grosso do Sul, para novas perícias e faz-se um looping
para não resolver o problema. Será que começa do zero?
A proposta
da Ministra Gleisi Hoffmann introduz uma nova rota de fuga para criação
de contraditórios jurídicos. É mais um mecanismo que favorece a geração
de novos impedimentos jurídicos por parte do agronegócio, proporcionando
que a ação de demarcação de terras, continue circulando nas instâncias
da justiça. Agora, também com questionamentos embasados em contra-laudos
e opiniões de setores do próprio estado e cujos interess es são
distintos dos interesses indígenas, representados constitucionalmente
pela FUNAI, através de laudos antropológicos aprovados pelo Ministério
da Justiça para as questões de demarcação de suas terras.
A medida
atinge os estudos já aprovados pelo Ministério da Justiça, aqueles que
aguardam homologação e os em curso e abre também possibilidades de
questionamento na justiça de terras já demarcadas, promovendo uma
insegurança jurídica, que evidentemente é sentida por todos os povos
indígenas envolvidos em disputas territoriais e setores da sociedade que
acompanham e atuam neste problema.
Com tal
medida fica evidente a responsabilidade da Ministra Gleisi Hoffmann pela
radicalização da tensão no Mato Grosso do Sul e que atinge também
outros povos de outros estados. O governo erra ao escolher lidar com o
problema pelo caminho da protelação e do desmonte constitucional das
funções da FUNAI, priorizando aspectos de desenvolvimento econômico e
eleitorais frente aos direitos indígenas. Atenta aos direitos humanos e
gera mais tensão no conflito indígena brasileiro.
No Mato
Grosso do Sul a não solução da demarcação das terras indígenas é uma das
várias guerras de baixa intensidade que vivemos em nosso país. São
centenas de milhares de pessoas atingidas e a mudança de rito de
tramitação da demarcação de terras indígenas, abrindo à consulta e
apreciação os laudos antropológicos produzidos pela FUNAI para setores
antagônicos à demarcação, contrariamente o que pensa a Casa Civil, só
trará mais resistência indígena e mais conflitos.
Estes povos
vivem em conflito permanente com o desenvolvimento de nossa sociedade há
muitas décadas, em 1908 uma área de hum milhão de hectares é arrendada
para uma empresa de mate, como se lá não existissem índios, 1955 houve
uma CPI para apurar a apropriação ilegal de suas terras por grandes
figuras da política mato-grossense, em 1965 um IPM é instaurado para
apurar o roubo de terras indígenas, em 1968 o Relatório Figueiredo,
recentemente localizado, aponta inúmeras violências e esbulhos de suas
terras e renda, documentos que jogam luz sobre conflitos que se arrastam
por décadas, causando sofrimento e dor em uma das maiores populações
indígenas do Brasil.
Num país em
que engatinhamos no direito de acesso à informação pública, cuja lei foi
aprovada junto com a que criou a Comissão Nacional da Verdade, onde
muitos documentos continuam escondidos, fora de catalogação
institucional e portanto do acesso público, a hipótese de que terras
demarcadas não possam mais ser objeto de ampliação é atitude antagônica
ao momento em que vive a sociedade brasileira de busca por verdade e
memória, justiça, reparação e não-repetição.
A justiça de
transição, que reclamamos aos mortos e desaparecidos políticos, aos
atingidos por torturas, aos perseguidos pela ditadura de 64, também
alcança os povos indígenas brasileiros. Em sua grande maioria foram
perseguidos, sofreram atentados, assassinatos, chacinas, massacres, como
também sofreram torturas, prisões, desaparecimentos, remoções forçadas,
escravização e hoje tais violações são objeto de estudo pela Comissão
Nacional da Verdade.
O documento
anexo, desaparecido por 45 anos, contém o depoimento dado pelo Chefe da
Inspetoria Regional do Serviço de Proteção do Índio de Campo Grande ao
procurador Jader de Figueiredo Correia, presidente da Comissão de
Investigação do Ministério do Interior, onde aponta nomes de
governadores, senadores, deputados federais e estaduais, juízes e outras
pessoas que se apossaram de forma ilegal de terras indígenas no antigo
estado do Mato Grosso.
A questão
indígena dará o tamanho da régua que apontará a medida da evolução
democrática de nossa sociedade, que está entre reconhecer os erros
cometidos pelo estado, mudar condutas, reparar direitos destes povos e
desenvolver mecanismos de não-repetição ou seguir o rumo da protelação
judicial e os retrocessos em direitos humanos com o retorno de
assassinatos, demonstração de e uso indevido de força e censura.
No passado
muitos crimes foram cometidos em nome do desenvolvimento e da lei de
segurança nacional, hoje tais praticas se escondem atrás de um discurso
sobre a necessidade de “governabilidade” e de um “governo em disputa”,
porém na pratica os crimes continuam os mesmos, mudamos os atores e não
avançamos em mudarmos estas condutas do estado brasileiro, gerando
mecanismos de respeito aos cidadãos e garantias de seus direitos.
Assinam:
Anivaldo Padilha – membro de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço
Dalmo Dallari – jurista e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo
Gilberto Azanha – antropólogo e coordenador do Centro de Trabalho Indigenista.
Marcelo Zelic – Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de SP.
Roberto Monte – membro do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular do Rio Grande do Norte
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