PICICA: "Mestre dos quadrinhos eróticos traça biografia do pintor
italiano, retratando-o como personagem cristão deslocado — porque
antagônico ao controle sobre os corpos, narrativa e imaginário"
Milo Manara e seu Caravaggio subversivo
Mestre dos quadrinhos eróticos traça biografia do pintor italiano, retratando-o como personagem cristão deslocado — porque antagônico ao controle sobre os corpos, narrativa e imaginário
Por Hugo Albuquerque
Mestre barroco do renascimento italiano, Michelangelo Merisi ficou imortalizado sob o nome de sua terra natal, Caravaggio, na Lombardia. O claro-escuro de sua obra se cruzava com o do seu tempo. Ali, a península itálica era um lugar polarizado entre duas forças radicais, o terror obscurantista do Santo Ofício, que naquele tempo levou Giordano Bruno à fogueira, e as forças libertadoras do Renascimento.
Caravaggio foi o arquétipo do homem renascentista: pleno de carne e paixão, viveu a vida ao extremo. As iniciais do seu nome verdadeiro se cruzam com a de outro gênio da nossa época, o quadrinista italiano Milo Manara, septuagenário desenhista do hiperrealismo hedonista, das formas femininas voluptuosas e irresistíveis. E é pelo lápis de Manara que nasce Caravaggio: a morte da virgem, recém-lançada biografia em quadrinhos da vida do pintor
A arte de Manara chegou ao seu ápice: o traço sutil e marcadamente erótico ganha em suavidade, dramaticidade e um caráter sublime por meio da colorização delicada — feita em colaboração com Simona Manara — pela qual os raios de sol brilham de forma sublime, enquanto vazam pelas frestas da Roma dos fins do século 16 — com toda a dimensão de sua suntuosidade decadente.
A trama começa quando o jovem Caravaggio adentra às muralhas de Roma, em 1592, vindo do norte para tentar a vida como pintor no Estado Pontifício. Em meio a autoridades corruptas, exploradores de mulheres, uma igreja em ebulição, prostitutas, camponeses, ele luta para afirmar sua arte: fazer uma pintura nova, aproximar-se do povo e conseguir transitar entre o sagrado e o profano; não à toa, a modelo que Caravaggio escolhe para ser sua Nossa Senhora é Annuccia, uma prostituta que vive às voltas com seu cafetão implacável e poderoso, o que lhe vale problema em todas as esferas — inclusive para seu irônico protetor, um cardeal apreciador da arte que faz resistência silenciosa à Inquisição.
A obra de Manara diz muito sobre nosso tempo. Obscurantismo e carne, crime e sua relação promíscua com o Estado punitivo, pecado e redenção; a arte não tem valor transcendente, ela ganha força na medida em que expressa aquilo que é comum — a força da Virgem não está em sua figura elevada, mas no fato de que quem lhe serve como modelo é uma prostituta, Annuccia, o que a torna um antimodelo por excelência; é a própria vida, imperfeita e ao mesmo tempo bela. Bela em sua fraqueza, em sua paixão nada mais, nem menos, do que humana.
Se a dupla-hélice do cristianismo está entre o Cristo vítima do dispositivo do julgamento — junto com toda estrutura Estado — e, contraditoriamente, do Cristo que volta de espada na mão para julgar no juízo final; a afirmação de um outro cristianismo, do único cristianismo possível e aceitável, está na figura do Cristo menor, que estava junto das minorias — das prostitutas, dos pobres ou dos leprosos — e contra o Estado: nesse sentido, o Caravaggio de Manara é um personagem cristão pela maneira deslocada e antagônica com qual ele se comporta em relação ao domínio sobre os corpos, a narrativa e o imaginário — colocando-se de um lado improvável e arriscado.
Se a hierarquia da Igreja, por meio do dispositivo inquisitorial, exerce seu poder por (pretender) tomar o monopólio do bem, o que lhe permite dizer o que é sagrado e o que é profano, assimilando assim o primeiro e destruindo o segundo — pois quem tem o monopólio do bem também tem o do mal –, o Caravaggio de Manara faz desse profano o próprio fundamento do sagrado, destruindo o sistema subversivamente em seu dispositivo primeiro.
No momento em que Nossa Senhora passa a ser um signo de seleção, de designação e controle do comportamento feminino — bem como da exclusão e destruição daquilo que não lhe é fiel –, colocar uma prostituta para ser sua modelo aniquila a possibilidade desse uso destrutivo; a partir desse momento, a Mãe de Deus passa a ser um sistema de inclusão, pela abolição do próprio mecanismo do juízo final: os condenados apenas por estarem fora do padrão tornam-se, pois, eternamente inocentes de tal acusação disparatada — e do sistema acusador igualmente insano. Eis a centralidade não só do gesto de Caravaggio como de Annuccia na trama.
E o Caravaggio de Manara o faz de um modo apaixonado, no mais preciso sentido do termo: sua pintura é potente porque é autêntica, isto é, está sob o regime estético no qual há propriedade do expresso em relação ao expressado — o que só é alcançado quando certa expressão artística traz o sentido, e a dimensão, do sofrimento humano; não como lamúria impotente, ressentimento ou ódio, mas sim como lamento criativo, sincero canto alegre da dor, de triunfo da vida sobre a morte.
A vida e a arte barroca de Caravaggio dificilmente encontrariam melhor abrigo do que o lápis de Manara: só assim, nesse magnífico exercício de metalinguagem — no qual a pintura do biografado é narrada quadrinisticamente — os dilemas do mestre renascentista podem não acabar em um impasse, mas na recusa ao Estado, e às formas de domínio variadas — a positiva negação do negativo — e na afirmação dramática ao corpo.
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