PICICA: "Em Dólares de areia Geraldine tem uma das atuações mais
corajosas que se pode esperar de uma estrela. Numa época em que até
mulheres com metade da sua idade se protegem sob camadas de botox,
silicone e photoshop, ela se expõe em toda a sua magreza, rugas, estrias
e olheiras. Nadando, dançando, fazendo amor, caindo de bêbada, ela, que
nunca foi propriamente “bonita”, adquire uma aura de beleza nascida
diretamente de sua inteligência e de sua integridade.
Já Noeli/Yanet, bonita e sensual desde a primeira aparição, leva um
tempo para humanizar-se, ganhando aos poucos consistência psicológica e
moral diante dos nossos olhos."
Dólares, areia, Geraldine e Abujamra
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 01.05.2015
Dólares de areia é um
corpo estranho no aviltado circuito exibidor brasileiro, uma
excrescência (como a pérola na ostra) que pode ser expelida a qualquer
momento. É bom correr para ver antes que saia de cartaz.
Dirigido pelo mexicano Israel Cárdenas e pela dominicana Laura Amelia Guzmán, é uma coprodução entre os dois países e trata justamente de trocas e entrechoques culturais, sociais, geracionais. No fundo, é também um filme sobre corpos estranhos: estranhos uns aos outros e estranhos a um público habituado ao padrão biotípico hollywoodiano (ou televisivo).
Há no centro de tudo o contraste entre o corpo jovem e escuro de Noeli (Yanet Mojica) e o corpo velho e alvo de Anne (Geraldine Chaplin), em algum lugar do litoral paradisíaco da República Dominicana.
Noeli sai (ou “fica”) com turistas em troca de um punhado de dólares, com a anuência do namorado tocador de bongô (Ricardo Ariel Toribio). Anne é uma setentona, avó e solitária, que se apaixona por Noeli. Uma senhora viajada, cosmopolita, poliglota, e uma garota pobre e iletrada, mal saída da adolescência, ainda em busca de seu lugar no mundo. Romance improvável, melancólico, sem futuro visível.
Geraldine Chaplin
Anne aparentemente é francesa, mas não dá para ter certeza, uma vez que Geraldine Chaplin fala com a mesma fluência inglês, francês e espanhol. E aqui cabe um parêntese sobre a atriz. Filha de Charles Chaplin e neta de Eugene O’Neill, Geraldine tem o cinema e o teatro no sangue, e as marcas da vida no rosto e na pele. Foi casada com o cineasta espanhol Carlos Saura e há décadas é companheira do diretor de fotografia chileno Patricio Castilla, acusado (injustamente, ao que parece) de ligação com o grupo terrorista basco ETA.
Já Noeli/Yanet, bonita e sensual desde a primeira aparição, leva um tempo para humanizar-se, ganhando aos poucos consistência psicológica e moral diante dos nossos olhos.
Desmontagem de clichês
Um dos méritos centrais de Dólares de areia é acenar com certos clichês (turismo sexual, amor não correspondido, manipulação de sentimentos) para depois frustrá-los, problematizá-los ou esvaziá-los. Mais importante que a “curva dramática”, tão valorizada nos roteiros convencionais, é o aprofundamento nos desejos e fragilidades de cada personagem: Anne, Noeli, o namorado.
A concentração nesses seres tão ricos e tão desiguais se dá mediante uma narrativa lacunar, que não se perde em detalhes inúteis e que deixa espaço para o espectador montar a história. Há também um artifício visual interessante: boa parte das cenas é filmada com luz quase estourada (ou, inversamente, escassa) e pouca profundidade de campo, de tal maneira que em torno dos personagens em foco o que se vê é pouco mais que um borrão colorido.
Evita-se assim o pitoresco de uma região ao mesmo tempo muito bela e muito pobre e a dispersão narrativa que isso acarreta, por exemplo, em tantos filmes brasileiros ambientados no litoral do nordeste.
Abujamra no cinema
Da grandeza de Antonio Abujamra para o teatro e a televisão muita gente pode falar com mais propriedade do que eu, e tem falado. Mas no cinema brasileiro a sua presença, embora menos frequente, também foi importante. Em papeis quase sempre secundários, mas marcantes, trabalhou, entre outros, com Anna Muylaert (de quem foi sogro), Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Alain Fresnot, mas sobretudo com seu amigo Ugo Giorgetti, com quem parecia ter uma sintonia artística e existencial muito grande.
Foi num filme de Giorgetti, Festa (1989), que Abujamra formou uma dupla memorável com Adriano Stuart, outro “giorgettiano” de primeira ordem. Nessa pequena obra-prima que remete às melhores comédias sociais italianas, Stuart é um célebre jogador de sinuca, já decadente, convidado para animar uma festa de grã-finos, e Abujamra é seu fiel escudeiro. Para quem quiser conferir, o filme está na íntegra aqui:
Foi também Giorgetti que deu a Abujamra seu único papel de protagonista no cinema (se excluirmos o sofrível Oceano Atlantis), no monólogo Solo (2011), em que o ator incorpora um velho paulistano de classe média amargurado com a decadência de seu bairro, da cidade e do mundo. Há muito do humor cáustico e melancólico do cineasta e do próprio Abujamra no personagem. Infelizmente poucos viram. Aqui um trecho, à maneira de despedida desse grande ator, diretor e figura humana:
Dirigido pelo mexicano Israel Cárdenas e pela dominicana Laura Amelia Guzmán, é uma coprodução entre os dois países e trata justamente de trocas e entrechoques culturais, sociais, geracionais. No fundo, é também um filme sobre corpos estranhos: estranhos uns aos outros e estranhos a um público habituado ao padrão biotípico hollywoodiano (ou televisivo).
Há no centro de tudo o contraste entre o corpo jovem e escuro de Noeli (Yanet Mojica) e o corpo velho e alvo de Anne (Geraldine Chaplin), em algum lugar do litoral paradisíaco da República Dominicana.
Noeli sai (ou “fica”) com turistas em troca de um punhado de dólares, com a anuência do namorado tocador de bongô (Ricardo Ariel Toribio). Anne é uma setentona, avó e solitária, que se apaixona por Noeli. Uma senhora viajada, cosmopolita, poliglota, e uma garota pobre e iletrada, mal saída da adolescência, ainda em busca de seu lugar no mundo. Romance improvável, melancólico, sem futuro visível.
Geraldine Chaplin
Anne aparentemente é francesa, mas não dá para ter certeza, uma vez que Geraldine Chaplin fala com a mesma fluência inglês, francês e espanhol. E aqui cabe um parêntese sobre a atriz. Filha de Charles Chaplin e neta de Eugene O’Neill, Geraldine tem o cinema e o teatro no sangue, e as marcas da vida no rosto e na pele. Foi casada com o cineasta espanhol Carlos Saura e há décadas é companheira do diretor de fotografia chileno Patricio Castilla, acusado (injustamente, ao que parece) de ligação com o grupo terrorista basco ETA.
Cena de Dólares de areia
Em Dólares de areia Geraldine tem uma das atuações mais corajosas que se pode esperar de uma estrela. Numa época em que até mulheres com metade da sua idade se protegem sob camadas de botox, silicone e photoshop, ela se expõe em toda a sua magreza, rugas, estrias e olheiras. Nadando, dançando, fazendo amor, caindo de bêbada, ela, que nunca foi propriamente “bonita”, adquire uma aura de beleza nascida diretamente de sua inteligência e de sua integridade.Já Noeli/Yanet, bonita e sensual desde a primeira aparição, leva um tempo para humanizar-se, ganhando aos poucos consistência psicológica e moral diante dos nossos olhos.
Desmontagem de clichês
Um dos méritos centrais de Dólares de areia é acenar com certos clichês (turismo sexual, amor não correspondido, manipulação de sentimentos) para depois frustrá-los, problematizá-los ou esvaziá-los. Mais importante que a “curva dramática”, tão valorizada nos roteiros convencionais, é o aprofundamento nos desejos e fragilidades de cada personagem: Anne, Noeli, o namorado.
A concentração nesses seres tão ricos e tão desiguais se dá mediante uma narrativa lacunar, que não se perde em detalhes inúteis e que deixa espaço para o espectador montar a história. Há também um artifício visual interessante: boa parte das cenas é filmada com luz quase estourada (ou, inversamente, escassa) e pouca profundidade de campo, de tal maneira que em torno dos personagens em foco o que se vê é pouco mais que um borrão colorido.
Evita-se assim o pitoresco de uma região ao mesmo tempo muito bela e muito pobre e a dispersão narrativa que isso acarreta, por exemplo, em tantos filmes brasileiros ambientados no litoral do nordeste.
Abujamra no cinema
Da grandeza de Antonio Abujamra para o teatro e a televisão muita gente pode falar com mais propriedade do que eu, e tem falado. Mas no cinema brasileiro a sua presença, embora menos frequente, também foi importante. Em papeis quase sempre secundários, mas marcantes, trabalhou, entre outros, com Anna Muylaert (de quem foi sogro), Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Alain Fresnot, mas sobretudo com seu amigo Ugo Giorgetti, com quem parecia ter uma sintonia artística e existencial muito grande.
Foi num filme de Giorgetti, Festa (1989), que Abujamra formou uma dupla memorável com Adriano Stuart, outro “giorgettiano” de primeira ordem. Nessa pequena obra-prima que remete às melhores comédias sociais italianas, Stuart é um célebre jogador de sinuca, já decadente, convidado para animar uma festa de grã-finos, e Abujamra é seu fiel escudeiro. Para quem quiser conferir, o filme está na íntegra aqui:
Foi também Giorgetti que deu a Abujamra seu único papel de protagonista no cinema (se excluirmos o sofrível Oceano Atlantis), no monólogo Solo (2011), em que o ator incorpora um velho paulistano de classe média amargurado com a decadência de seu bairro, da cidade e do mundo. Há muito do humor cáustico e melancólico do cineasta e do próprio Abujamra no personagem. Infelizmente poucos viram. Aqui um trecho, à maneira de despedida desse grande ator, diretor e figura humana:
José Geraldo Couto
Fonte: Blog do IMS
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