PICICA: "Escritor descobre, no fundo do sertão mineiro, os sentidos e funções das festas que atravessam os tempos e os lugares"
Guimarães Rosa especula sobre o ato de celebrar
“Ia haver festa”. Inicia João Guimarães Rosa o seu conto “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)” a declarar um tema: a celebração. Entramos na malha de suas palavras, diversos tecidos de signos estão ali misturados e vão se mostrando aos poucos, como se de uma bacia de roupas coloridas Guimarães fosse estendendo uma a uma na corda ao sol. Desde o que move o íntimo do herói até os sentidos que o transcendem em muito, arquetípicos, tudo vira palavra, que Guimarães sabe arrumar e ofertar como ninguém.
O íntimo, o social e o arquetípico, Guimarães faz estes planos se atravessarem uns aos outros, e nem sempre a transição é evidente. Vejamos: onde é que a estória nos situa? Será em algum lugar no sertão do norte de Minas Gerais: os vaqueiros, as mulheres cuidando da preparação da capela para a festa, as gentes que chegam e acampam, o riachinho que secou e motivou a dedicação de uma capela à santa, são coisas que vão construindo e povoando a paisagem. Mas há um nome que nos tira do lugar: chama-se “a Samarra”, o mesmo nome de uma cidade milenar à margem do rio Tigre, no atual Iraque, antiga Mesopotâmia, que aprendemos a chamar de “o berço da civilização”. Um “qualquer lugar” que é também o “Lugar”, a origem. Aqui a passagem do regional ao universal é sublinhada por uma maiúscula, como aliás em outros casos: há a casa de Manuelzão e a Casa; a festa e a Festa.
Nesse ínterim, as pedras que sustentam e dão forma à celebração vão se mostrando, na forma de um “roteiro” que, a seu modo a cada vez, se repete em toda festa. Começa antes mesmo do início oficial das celebrações, com a chegada das gentes a demandar hospitalidade e sendo acolhidas conforme o rito cabível. A festa mesma começa com a missa, sagração do lugar e do dia. Depois, há música e dança, olhares, gestos, namoros e saudades, quem sabe conta estórias, os outros ouvem. E o anúncio do fim é dado pelo sol, que ressurgirá no horizonte para completar o turno de uma noite festeira, pequeno ciclo luminoso circunscrito nos círculos da vida.
“E… era uma vez uma vaca Vitória: caiu no buraco – e começa outra estória… e era uma vez uma vaca Tereza: saiu do buraco – e a estória era a mesma…”
Outra festa, a mesma festa. Ficamos logo sabendo que vão inaugurar uma capela, construída por Manuelzão para fazer daquele fim de mundo um lugar – “queria uma festa forte, a primeira missa. Agora, por dizer, certo modo, aquele lugar da Samarra se fundava”. O marco fincado no chão estabelece o zero do tempo-espaço, o lugar nasce para o seu porvir. O nome de um personagem, espécie de acompanhante de Manuelzão, lembra a temporalidade deste ponto zero que se lança infinitamente ao passado e ao futuro: o Promitivo – o “primitivo” em fusão com a “promessa”. Então esta é a Samarra ancestral, onde homens e mulheres resolveram assentar para cultivar grãos e criar rebanhos, e ao mesmo tempo uma outra onde apenas se plantou o primeiro cruzeiro. O rito é sempre a repetição formal da origem.
Nos caminhos de tempos que Guimarães percorre, surge uma cultura sertaneja que em muito mantém viva a Europa pré-moderna, medieval. É a ética cavalheiresca dos vaqueiros, a forte religiosidade que pauta o ritmo das vidas comuns e que apenas ocasionalmente é regrada pela instituição da Igreja, a poesia oral acompanhada de rabecas e violas, as estórias. Manuelzão tem o corte de um senhor feudal, como personificação do poder local, mas que deve fidelidade a um Rei suserano – no caso, o proprietário da terra, nomeado Federico Freyre – e à Igreja. Quanto aos pobres que chegam, “rogavam para o rugoso Céu, com estrelas, mas cheios de sobrolhos, serenando na estrada-de-santiago”. Sua peregrinação é, sempre, a de Compostela.
A festa é a interrupção do trabalho cotidiano. Pois “trabalhar é se juntar com as coisas, se separar das pessoas”. Então existe a festa. Deixamos as nossas vacas, galinhas, roças (e computadores) para estarmos disponíveis apenas às pessoas. Cada um vai querer se mostrar no seu modo mais encantador – por isso há roupas especiais, cabelos ou joias, mas também as falas bem colocadas e a facilidade do sorriso, o gostar um pouco mais de quem está conosco na trajetória. É um jeito de lembrar que, dos milhões de lugares do mundo, calhou de eu viver aqui; das bilhões de pessoas viventes, são essas dezenas que constituem a minha humanidade. São “os vizinhos de todas as veredas, o mundo”.
Guimarães escreve como é que a festa “devia de ser”: “o risonho termo e começo de tudo, a gente desmanchando tudo, até o feito com seu suor do trabalho de sempre; e sem precisar, depois, de tornar a refazer”. Compara com as “estórias contadas”: “Chegava na hora, a estória alumiava e se acabava. Saía por fim fundo, deixava um buraco. Ah, então, a estória ficava pronta, rastro como o de se ouvir uma missa cantada”.
A festa, a estória e a vida – outra tríade a ressoar através do conto. Porque a festa é esta clareira para a qual cada um traz a sua estória, é um encontro de fios de vida que de repente se emaranha e forma linda teia reluzente. O conjunto de amigos e familiares não são vidas em teia que podem escolher brilhar juntas? A boa festa reflete esse brilho, faz passar acima do difícil da vida, nem que seja por uma noite, para ganhar a força que o afeto partilhado produz. “A ver: ô mundo, esta vida, quando descansa de ser ruim, é até engraçada.”
Guimarães deu ao seu conto a forma que talvez mais corresponda à festa: uma rapsódia. É uma coletânea de estórias de autores conhecidos ou não, pois é um registro escrito de cultura oral. A festa também é assim: cada qual traz a sua estória e a faz circular ali, para procurar e encontrar elos com as estórias dos demais presentes. Nisso, duas personagens ganham relevo: Joana Xaviel e seu amigo, ou companheiro, o velho Camilo. Ambos podem ser chamados de rapsodos – como Homero na Grécia, como tantos na Idade Média europeia e tantas figuras similares em outras culturas de oralidade forte: são aqueles que contam as estórias do lugar, que detêm a arte de dar a elas a voz e o contorno adequados para marcar a memória da comunidade.
O velho Camilo é descrito como “apenas uma espécie doméstica de mendigo”, alguém que “olhava para as mãos dos outros, como quem espera comida ou pancada”. O rapsodo é algo assim como um vazio – é alguém que, mesmo sendo um contador de estórias, ouve muito mais do que fala, pois sua voz não é a expressão de um indivíduo, está somente a serviço do lugar e de sua gente. A estória que Camilo conta é que dá o arremate ao tecido.
A festa chacoalha as pessoas, faz cada uma ser mais ela mesma e lembrar-se de si e dos seus. As coisas e os vínculos, às vezes, precisam de dançar para encontrar melhor o caimento em seus lugares. O que estava errado, duvidoso, vai achar um contorno até o fim da festa. Isso porque “a música derretia o demorado das realidades”, diz o narrador entremeado nas divagações de Manuelzão. “Mas dava receio. Assim a música amolecia a sustância de um homem para as lidas, dessorava o rijo de se sobresser.” Receio que logo se desfaz, pois a vida tratará de pôr de volta os anteparos que dão a homens e mulheres o tônus necessário ao seu enfrentamento diuturno. Porém, após a festa, estão mais maleáveis, assimilam melhor, se machucam menos.
O ciclo ocorre e se acaba. Vê-se que “A festa não é pra se consumir – mas para depois se lembrar…” Assim resume Manuelzão: “A boiada vai sair. Somos que vamos”.
Fonte: OCA / OUTRAS PALAVRAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário