PICICA: "Bruno Cava participou da OcupaRio em 2011 e da Ocupa dos Povos, em
2012, além de ter contribuído com a luta da Aldeia Maracanã e as
jornadas de junho a outubro de 2013, no Rio de Janeiro. Pesquisador
associado à rede UniNômade,
trabalha segundo o método da copesquisa, um tipo de pesquisa-ação
participante diretamente com as lutas e movimentos urbanos. Autor do
livro A multidão foi ao deserto (2013), bloga no Quadrado dos loucos e escreve em várias mídias. Atualmente, participa dos Círculos de Cidadania,
uma experiência de auto-organização em várias cidades, voltada a
produzir novas formas de organização, ação e mobilização política em
rede, cujas referências são as várias pedagogias da autonomia praticadas
pelos movimentos do comum na América do Sul e, mais recentemente, na
Espanha do pós-15M.”"
Bruno Cava: “As revoluções não admitem mais o protagonismo de um único coletivo”
Bruno Cava participou da OcupaRio em 2011 e da Ocupa dos Povos, em
2012, além de ter contribuído com a luta da Aldeia Maracanã e as
jornadas de junho a outubro de 2013, no Rio de Janeiro. Pesquisador
associado à rede UniNômade,
trabalha segundo o método da copesquisa, um tipo de pesquisa-ação
participante diretamente com as lutas e movimentos urbanos. Autor do
livro A multidão foi ao deserto (2013), bloga no Quadrado dos loucos e escreve em várias mídias. Atualmente, participa dos Círculos de Cidadania,
uma experiência de auto-organização em várias cidades, voltada a
produzir novas formas de organização, ação e mobilização política em
rede, cujas referências são as várias pedagogias da autonomia praticadas
pelos movimentos do comum na América do Sul e, mais recentemente, na
Espanha do pós-15M.”
A entrevista é parte da pesquisa #TecnopolíticaLATAM que desenvolvo para OXFAM.
As jornadas de Junho quebraram as lógicas das ruas e das redes no Brasil. Que pontos disruptivos você destacaria?
Junho de 2013 foi o levante da multidão. Mas a
multidão, enquanto rede transversal de singularidades que cooperam entre
si, já vinha se formando há vários anos no Brasil. Um processo que é ao
mesmo tempo político e existencial, porque expressão de formas de vida e
modos de existência que não cabem mais nos escaninhos da esfera
representativa. O vazio de partidos, sindicatos, empresas, de uma vida
submetida à exploração e violência na metrópole foi ocupado por uma
convergência de desejos, de afetos, de imaginação, e isso tudo atingiu o
ponto de ebulição ao longo de 2013. Certamente, mais do que uma lógica,
existe uma emergência que é plena de vida e amor, e que fortalece uma
multiplicidade de lógicas de envolvimento com a cidade, a política e a
luta social.
Você participou na onda Occupy no Brasil. Até que pontos os
movimentos globais de 2011, especialmente o 15M espanhol e Occupy Wall
Street, foram influentes no Brasil e concretamente em junho de 2013?
Já virou um senso comum querer separar tudo em caixinhas e dizer
que há particularidades e especificidades nas diferentes regiões do
mundo. Como se a geografia do território se definisse pelo espaço
físico. Na verdade, as Jornadas de 2013 são parte de um ciclo global de
lutas cujos primeiros momentos foram as insurreições em Túnis e na Praça
Tahrir, em dezembro de 2010 e janeiro de 2011, nas ditas “primaveras
árabes”, ao que se seguiram o outuno do 15M e o verão do Occupy. Com a
globalização e a virada digital e maquínica, o conceito de geografia
mudou. As mobilizações são globais e, simultaneamente, locais, porque
funcionam com a formação de um território em rede, ou “ecossistema”, que
conecta redes e ruas, internet
e praças, mídias e corpos. Sem levar em consideração essa disjunção,
global e local, não é mais possível compreender (nem organizar) o local
nem o global. Falando das revoluções no século 19, Marx usava a imagem
da marmota, como se houvesse túneis subterrâneos por onde passam os rios
revolucionários, que em determinados momentos vêm à superfície. Hoje,
numa era de contágio ultraveloz, as coisas acontecem todas às claras,
com rápida disseminação pelo globo.
Os estudos de redes realizados sobre as jornadas de junho
mostram que o MPL perdeu o protagonismo das conversas depois do dia 13
de junho, depois da viralização das imagens da violência policial. Como
você explica o fenômeno?
O MPL é parte importante do fenômeno de junho de 2013. É preciso
lembrar que, nesse mesmo ano, aconteceu uma forte primavera ativista em
Porto Alegre, já indicando uma mobilização de novo tipo, além de
revoltas e movimentos proliferando pelo país, destacando-se, por
exemplo, a ocupação por indígenas do Congresso, em abril, contra os
ruralistas e os desenvolvimentistas. O MPL vem de um processo muito rico
de organização da greve da metrópole, bem diferente do sindicalismo de
categoria, cujos marcos históricos são a Revolta do Busu, em Salvador e
as Revoltas da Catraca, em Florianópolis. A ação do MPL na maior cidade
brasileira, com uma cobertura irrestrita por parte das mídias, funcionou
antes como estopim, porque os ventos já semeavam pólvora desde as
ocupas de 2011, a mobilização indígena e a intensificação das culturas
de resistência na metrópole. A questão da mobilidade urbana é um gargalo
terrível para o direito à metrópole, afetando a população como um todo,
e serviu para catalisar o levante que assumiu muitas pautas, muitas
lógicas, muitas formas de se exprimir. Não é que o MPL tenha perdido o
protagonismo; é que as revoluções deste ciclo global não admitem mais o
protagonismo de um único coletivo, ainda que ele tenha uma relevância
significativa. Assim como não há mais Palácio de Inverno a conquistar,
já que o capitalismo financeiro é pervasivo, também não é mais possível
ter um “centro de comando ideológico” dos levantes da multidão, no
século 21. A força da multidão é, precisamente, não ser controlável. É
uma delícia e um drama.
Os partidos e organizações políticas clássicas, especialmente
das esquerdas, tentaram chegar juntos nas manifestações, sobre tudo a
partir do dia 20 de junho. Porém, não foram bem vindos. Alguma
explicação?
Os movimentos e coletivos não podem funcionar a partir do que está na
cabeça do governante. A lógica é inversa. Junho de 2013 foi uma
mobilização de tal potência que o medo mudou de lado. Os fracos se
mostraram fortes e os “fortes” se sentiram ameaçados e tiveram de tentar
entender o que estava acontecendo. Isto vale também para os
intelectuais: os explicadores não explicaram mais nada, eles é que foram
explicados. Mas a resposta foi péssima, ou melhor, saída foi pelo
estado, pelo fortalecimento do biopoder. Os governos deram sinais claros
não apenas ao desqualificar os protestos, como também coordenaram uma
repressão qualificada, que no Rio de Janeiro significou mortes na
favela, repressão generalizada e esmagamento de coletivos e ativistas.
Boa parte da falta de entendimento consiste no fato que, no ecossistema
de Junho-outubro de 2013, não existem lideranças, programas unificados
ou grupos representantes: não há “cabeça”, ou melhor, a cabeça opera
como um “general intellect”: a inteligência difusa, em rede, das
singularidades que produzem na cooperação social, mas que nem por isso é
menos organizada ou menos inteligente em suas decisões.
O sistema representativo está desacreditado e não é apenas por
falha na estratégia de comunicação. Reina a percepção que os partidos,
políticos e órgãos estatais não apenas não conseguem dar resposta aos
problemas que afetam a população (transporte, moradia, custo de vida,
segurança pública etc), como também não estão interessados em
enfrentá-los minimamente. As diferenças são mínimas entre os grupos,
antes de discurso e roupagem, do que efetivas. O grito “Não nos
representa”, desse modo, atinge indistintamente quem se identifica como
esquerda ou direita, porque voltado à radicalização da democracia, para
além da democracia representativa. Quando grupos ligados a partidos ou
sindicatos aparecem com bandeiras nas ruas, são vistos como tentando
cooptar ou reivindicar manifestações que não apenas não participaram,
como também elas se autoconvocaram para protestar contra esses mesmos
partidos e sindicatos. Então isto é encarado como uma provocação, como
uma contradição incompatível. Em vez de tentar dialogar com amplos
setores sociais que se levantam em lutas legítimas, grupos de esquerda
preferiram chamá-los de fascistas ou “coxinhas”, apegando-se a símbolos
que, para muita gente, significam apenas aparelhamento, corrupção e
obsolescência.
O ecossistema das esquerdas defende a teoria de que junho
foi uma revolta conservadora, de direita. Faz sentido, especialmente
falando do Rio de Janeiro?
O que seriam revoltas de direita? Ou de esquerda? São categorias
com sérias limitações, talvez inúteis, para compreender um levante
multitudinário como de Junho, ou as revoluções árabes, ou o 15M, ou o
Occupy. Aparatos partidários maniqueístas e velhos intelectuais (velhos
não pela idade, mas pela esclerose da análise política) repetiram
fórmulas e receitas sem qualquer tipo de pesquisa, apenas para confirmar
seus preconceitos e achismos sobre um fenômeno complexo e gigantesco,
como foi Junho de 2013. O dispositivo esquerda/direita nos últimos
tempos, aliás, vem se tornando um dispositivo de desqualificação
sistemática e paralisia da organização extrapartidária. Tem sido usado
de cima pra baixo, como num julgamento: se defende o meu grupo, é
interessante, do contrário, é coxinha, fascista, perigoso. Essa lógica
da “desconstrução” é marcante na época das eleições e não é prerrogativa
da grande mídia corporativa, como também dos grupos governistas de
blogueiros e sites. Junho de 2013 foi um levante da multidão, o
resultado da cooperação transversal pela metrópole que conquistou uma
expressão política, e que se determinou a enfrentar a ordem constituída
nas cidades de grande, médio e pequeno porte. O pano de fundo são lutas
por direitos, por empoderamento cidadão, pela renovação dos métodos.
Os movimentos sociais clássicos, o ecossistema do PT,
também tentaram explicar as revoltas de junho como uma consequência
lógica da era do Fórum Social Mundial, lutas do MST, mobilizações
sindicais….
Os FSMs tiveram várias tendências em suas múltiplas edições. Por um
lado, houve uma ocupação pelo dito “terceiro setor”, através da teoria
da sociedade civil, que acaba funcionando perfeitamente bem em
“parcerias” com o estado, e que não apenas são recuperáveis pelo
capitalismo, como protagonizam as formas de sua exploração. Exemplo
disso é a pacificação “soft power” realizada por grupos governistas nas
favelas do Rio de Janeiro, ou então o Fora do Eixo, expressão máxima
desse altermundismo que, na prática, é um altercapitalismo 2.0. Mas, por
outro lado, o FSM também embutiu a força viva das mobilizações
alterglobalização que tem, no zapatismo do subcomandante Marcos, sua
maior síntese. Essa fração minoritária dos FSMs, ligada às lutas e
práticas do comum e da autonomia na América do Sul, certamente
contribuiu na genealogia do ciclo global de lutas deflagrado com as
revoluções árabes. Isso foi um fator, entre muitos outros, mas não pode
ser descartado. Já o MST e um sindicalismo que já era velho nos anos
1980, lamentavelmente, não tiveram qualquer participação neste novo
momento de mobilização social e nem querem ter. Quando podiam
participar, não souberam compor e se reinventar: preferiram portar-se
como “vacas sagradas”, imunes à crítica.
Dilma Rousseff apareceu na mídia oferecendo diálogo e
tentando parecer estar escutando as redes-ruas. O governo entendeu
alguma coisa?
No Rio aconteceram algumas mutações de junho interessantes (outubro 2013), greve dos garis…. Até que ponto foram relevantes?
Quais são as diferenças da nova onda de protestos do Brasil (março-abril 2015) e as jornadas de junho?
Tem algumas semelhanças e algumas diferenças. O ano de 2014 foi de
restauração geral dos velhos aparelhos e partidos, tanto pela dinâmica
do megaevento, da Copa do Mundo, quanto pela eleição de outubro, que
produziu uma polarização ortopédica, sem deixar lugar para a nuvem de
singularidades que havia explodido no ano anterior. Some-se a isso que a
repressão histórica a mobilizações e organizações políticas no Brasil,
foi desta vez dirigida contra grupos e o próprio imaginário de Junho de
2013, contando com a participação por vezes debochada de parte da
esquerda, principalmente a governista. Muitos que participaram de
junho-outubro de 2013 voltaram às ruas em 2015, e as estratégias de
autoconvocação foram bastante parecidas, com uso intensivo de redes
sociais, memes, chamadas abertas e um sentimento de tomar a política
para si. Uma primeira diferença é que, em 2015, três movimentos que não
estavam em junho, o Vem Pra Rua, o MBL e o Revoltados Online, embora
respondam por cerca de 6% das convocações, conseguiram formular a
comunicação desses protestos. Isto significou fazer convergir a crise da
representação na crise do PT e do governo do PT, com foco na
corrupção, uma pauta onipresente no noticiário, na sequência das
investigações da operação LavaJato. Outra diferença foi a redução da
multiplicidade de Junho. O movimento ligado à pauta da moradia, do
transporte, da autodefesa dos manifestantes, nada disso aconteceu em
2015. Ironicamente, em 2013, os setores governistas reclamavam que as
jornadas de junho-outubro não tinham pauta unificada, que os
manifestantes não sabiam o que queriam (o que era falso, porque havia
pautas, só que muitas), a agora a pauta unificou contra a corrupção, mas
também no “Fora PT” e no “Fora Dilma”. Seria irônico não fosse trágico:
ao repetir infindavelmente que são “protestos de direita”, setores mais
conservadores abraçaram a ideia e unificaram o alvo não só no PT, mas
na esquerda como um todo. Com a eleição de 2014, quando a esquerda,
partidária ou não, de uma forma ou de outra, aderiu à campanha eleitoral
do governo, acabou contribuindo para essa associação entre esquerda e
PT. Como parte da esquerda associou símbolos, lideranças e discursos,
especialmente no segundo turno, num momento em que o país estava
debruçado sobre a disputa eleitoral, o repúdio ao PT terminou por se
tornar, na figura da sinédoque, um repúdio à esquerda. O “apoio crítico”
afinal é apoio, de maneira que existe um certo direito na percepção que
boa parte da esquerda é, nalguma medida, governista. O caso se agrava
se pensarmos que, uma vez empossado, o governo adotou o mesmo programa
econômico que criticou sem clemência durante o período eleitoral. Ou
seja: além de antipopular, o governo ficou com a imagem de mentiroso, e
quem está pagando o preço é toda a esquerda que confiou sua imagem ao
processo da reeleição. Apesar disso tudo, dessa redução da
multiplicidade de 2013 ao longo de 2014-15, nessa perda da
heterogeneidade, e se analisarmos para além da comunicação articulada
pelos grupos citados; o ciclo de protestos contra a corrupção mostra que
Junho de 2013 continua produzindo expressões políticas, vontade de
participar e protestar, e que os hábitos democráticos desenvolvidos se
incorporaram de maneira duradoura.
Alguns estudos recentes mostram que o ecossistema de junho
não entrou nem na polarização política dos últimos tempos, nem defende o
Governo nem participa nos novos protestos. Como você explica isso?
Depende do que é chamado de “ecossistema”. Usar a ecologia para
descrever mobilizações políticas me parece fecundo, desde que não seja
usada metaforicamente. Felix Guattari, por exemplo, usava o conceito de
ecologia para qualificar a análise política de organizações de novo
tipo, que não assumem confinamentos claros na forma dos velhos coletivos
com identidades e bandeiras rígidas. A ecologia se apresenta, dessa
maneira, como possibilidade de analisar biopoliticamente a “nuvem” de
mobilização ao mesmo tempo afetiva e política. Isto significa tratar os
coletivos não como sólidos, numeráveis, geometricamente discretos, mas
como fluidos, inumeráveis (singulares) e contínuos, como um gás. Por
isso, ao falar em “ecossistema de junho”, é preciso ir além do campo de
ativismo que reivindica Junho mais diretamente. Ser fiel a um evento
constituinte, muitas vezes, significa livrar-se daquilo que se torna
consenso a respeito desse próprio evento. Se existe a desqualificação
sistemática por parte de partidos e intelectuais velhos, também existe
uma desqualificação feita pela mistificação, quer dizer, pela criação de
fronteiras claras entre o que é e não é o sentido originário de um
determinado acontecimento com força de irrupção. Dito isto, é preciso
compreender que boa parte dos protestos de 2015 já estavam presentes,
enquanto pauta e forma de organizar, em Junho de 2013. As Jornadas
também foram protestos contra a corrupção, de verde e amarelo, e também
tiveram um contingente grande de pessoas que não participava de lutas,
movimentos ou grupos de esquerda, que sequer se identificam como “de
esquerda”. Esses grupos que insistem em se organizar para além dos
consensos e dicotomias — inclusive os consensos e dicotomias do campo da
esquerda — por vezes podem ser mais dinâmicos e continuam em processo
de reorganização do que, aliás, movimentos velhos, sindicais ou de
esquerda, que não têm interesse em se renovar porque estão confortáveis
na situação de correia de transmissão de fundos, aparelhos e benefícios
existentes. É claro que recompor em meio aos protestos de 2015, que
também tem grupos como MBL, Vem pra Rua e setores bem conservadores na
disputa, é difícil. E é difícil recomeçar de outros lugares, noutros
formatos, noutras composições. Em 2015, está mais difícil. Mas não há
outro jeito. Entre imergir apologeticamente nas ruas e mobilizações
(opção movimentista) e isolar-se receosamente delas (opção da
impotência), é preciso traçar uma diagonal, e assim não se render a
frentes meramente defensivas, de conservação do existente, para também
afirmar, para reaprender a ousar. É preciso desprender linhas de fuga,
modos inteligentes e até “malandras”, para continuar se relacionando com
o movimento real de mobilizações e poder continuar produzindo
subjetividades.
Fonte: Futura Media
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