por
Cléber Eduardo
Do cinema de gênero ao realismo carioca
Em
sua crítica sobre Amei um Bicheiro, publicada sob o título “A Influência
Bem Assimilada”, no Correio da Manhã, em 1953, Moniz Vianna julga o estreante
Jorge Ileli, que co-dirigiu o filme com Paulo Vanderley, uma exceção histórica
e estética. No tocante à linguagem cinematográfica, o único equivalente a Ileli,
segundo o crítico, é seu contemporâneo Lima Barreto, que meses antes havia lançado
internacionalmente O Cangaceiro. No caso de Moniz Vianna, linguagem cinematográfica
significa encadeamento narrativo, de plano para plano, de seqüência para seqüência
– ou seja, toda a operação para que não lembremos, por conta de um corte torto
por exemplo, que estamos vendo uma encenação. Ileli e Barreto seriam, para Moniz
Vianna, logo em seus primeiros passos, o futuro do “narrativo brasileiro”, capazes
de nos fazer acreditar, com suas escolhas de ângulos e de encadeamento, nos acontecimentos
da tela, sem sobressaltos gerados por amadorismos. Não se pode perder de vista
que, no fim dos anos 50, nenhum filme era julgado em si, mas em função da história
do cinema brasileiro, em geral restrita a Mario Peixoto e Humberto Mauro para
a maioria dos críticos.
Se a imagem de O Cangaceiro
era, naquele momento, a da autenticidade brasileira, mas de um universo historicamente
ultrapassado, a imagem de Ileli, sem negar o modelo do thriller americano e francês
(John Huston, Jules Dassin), era já urbana e contemporânea, situando-se no Rio
de “dentro”: longe da princesinha do mar, em um ambiente de atividades financeiras
ilegais, que, no entanto, reproduzem a hierarquia do capitalismo oficial. É no
ambiente do crime organizado, em torno do jogo, que a contemporaneidade de Ileli,
embora carioca por conta da conexão com o neo-realismo e com a ida da câmera para
a rua, também é cosmopolita – não abrindo mão de sua filiação ao cinema de gênero
na dramaturgia visual e musical.
Esse hibridismo entre o
cinema de estúdio e o cinema de locação, entre o gênero policial e o neo-realismo,
faz do diretor um antecessor de dois quase contemporâneos, Nelson Pereira dos
Santos e Roberto Farias: o primeiro surgindo com uma modernidade realista, mas
sem romper com a comédia de costumes cariocas, em Rio 40 Graus; o segundo
impondo-se com uma preocupação com o espetáculo em Assalto ao Trem Pagador,
depois de um começo no registro da chanchada em sua fase já declinante (virada
dos 50 para os 60). Ileli marca essa posição dentro dos quadros da Atlântida,
já em sua fase comandada por Severiano Ribeiro, período no qual filmes como Amei
um Bicheiro, sem nenhum apelo cômico, tinham se tornado iniciativas em extinção,
abrindo mão do projeto do estúdio idealizado por Alinor Azevedo, Moacyr Fenelon
e José Carlos Burte: projeto de cinema barato, tecnicamente competente e em sintonia
com seu tempo e sua sociedade.
A narrativa é centrada na
figura de um funcionário do jogo do bicho (Cyl Farney) que, para pagar a cirurgia
de sua esposa (Eliana), junta forças com um amigo (Grande Otelo) e bate de frente
com seu chefe (José Lewgoy), tendo apoio e sustentação da própria amante dele
(Josette Bertal). A intriga nada tem de molejo, tampouco exalta a malandragem,
como era costume nas comédias cariocas. Temos um mix de thriller com dramalhão,
sempre levado com todos os esforços visuais e sonoros para manipular a tensão
do espectador, mas sem perder a sobriedade do relato. Surge dessa codificação
dramática e narrativa um universo habitado por seres de punhos cerrados, que são
capazes de roubar, matar e colocar-se em risco de vida para não serem engolidos
pelos poderosos (o chefe do crime). Se não chega a ser heróico, o protagonista
demonstra boa índole em sua tortuosa estratégia de reação às circunstâncias, sendo
visto como produto do meio, reflexo de seu percurso, de uma condição econômica.
Como tem sido em muitos filmes dos anos 2000, protagonizados
por jovens lidando com os efeitos da falta de dinheiro e do desejo/necessidade
de obtê-lo, tudo gira em torno de uma porção de notas em Amei um Bicheiro.
Primeiro pela demanda de crescimento econômico, depois para salvar uma vida. No
entanto, se durante todo o filme o protagonista solicita dos espectadores a compreensão
para seus gestos, de modo a legitimar junto a nós as ações mais questionáveis
e ilegais, ao fim temos uma crise de boa consciência, levando o casal de pombinhos
(anterior ao de O Grande Momento, de Roberto Santos, mas em estágio posterior,
após a lua de mel), na última seqüência, a assumir a responsabilidade pelo envolvimento
com o crime.
A noção um tanto mítica de uma década de 50
ingênua e otimista no Brasil, é desmentida nas imagens de Ileli com uma declaração
de antídoto a pílulas da felicidade, mostrando, acima de tudo, situações de um
capitalismo pré-moderno, marginal, organizado em sua rede criminal, mas violento
com quem dele depende para sobreviver. É essa a luta empreendida no núcleo do
filme, a de um funcionário contra seu patrão, a de um explorado que se vinga contra
o explorador, usando as armas do inimigo, mas só para depois colocar as coisas
em ordem.
Apesar dos intensos elogios recebidos por Amei
um Bicheiro, Ileli demorou nove anos para terminar outro filme (Mulheres
e Milhões). Dedicou-se a reportagens de televisão e direção de cinejornais
para Severiano Ribeiro (alguns deles elogiados por alguns críticos, por conterem
imagens de grande apelo plástico e dramático). No alvorecer dos anos 60, tempo
de Os Cafajestes, de Ruy Guerra, e Barravento, de Glauber Rocha,
Moniz Vianna destaca algumas vocações: Rubem Biáfora, Nelson Pereira dos Santos,
Roberto Farias, Walter Hugo Khouri e Jorge Ileli, esse à frente dos demais como
promessa para o futuro. Pois o promissor Ileli, por razões do cinema e suas próprias,
dirigiu apenas mais dois longas, No Mundo em Que Getúlio Viveu (1963) e
Viver de Morrer (1972), tornando-um caso de revelação nunca inteiramente
cumprida. Porém, fundamental nos anos 50.
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