junho 05, 2015

"Carta de desligamento do Tarifa Zero Salvador e do MPL", por Ana Carla, Caribé e Luamorena (PASSA PALAVRA)

PICICA: "Companheiras e companheiros,

Apresentamos a nossa carta de desligamento do Tarifa Zero Salvador e, consequentemente, da Federação de Coletivos do MPL – Movimento Passe Livre.

Pretendemos com essa carta: 1) combater a prática do punitivismo e da perseguição pessoal nos meios do MPL e organizações próximas; 2) incentivar que outras pessoas vítimas deste tipo de prática realizem denúncias também públicas, ampliando o debate; e 3) problematizar a incapacidade do MPL de saltar do atual estágio de federação de grupos de afinidades para se tornar, finalmente, um movimento social. Colocamo-nos à disposição para dar continuidade a este e aos demais debates que poderão se seguir sem contudo cairmos na armadilha de fetichizar o MPL e, agora, por fora do Movimento."

Carta de desligamento do Tarifa Zero Salvador e do MPL

31 de maio de 2015  
Como neutralizar essas práticas nocivas sem reforçar a lógica do punitivismo? Os movimentos da esquerda precisam urgentemente encarar a situação. Ou o MPL acaba com a prática do trashing ou o trashing acabará com o MPL. Por Ana Carla, Caribé e Luamorena

Maio de 2015

Companheiras e companheiros,

Apresentamos a nossa carta de desligamento do Tarifa Zero Salvador e, consequentemente, da Federação de Coletivos do MPL – Movimento Passe Livre.

Pretendemos com essa carta: 1) combater a prática do punitivismo e da perseguição pessoal nos meios do MPL e organizações próximas; 2) incentivar que outras pessoas vítimas deste tipo de prática realizem denúncias também públicas, ampliando o debate; e 3) problematizar a incapacidade do MPL de saltar do atual estágio de federação de grupos de afinidades para se tornar, finalmente, um movimento social. Colocamo-nos à disposição para dar continuidade a este e aos demais debates que poderão se seguir sem contudo cairmos na armadilha de fetichizar o MPL e, agora, por fora do Movimento.

Sobre a prática do trashing no Tarifa Zero Salvador

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Há um ano teve início, nos espaços do Tarifa Zero Salvador, uma prática extremamente danosa a essa e a tantas outras organizações da esquerda: o trashing. Também chamado de detonação ou assassinato de caráter, o trashing “não é desacordo; não é conflito; não é oposição. Esses são fenômenos perfeitamente comuns que, quando mutuamente entrelaçados, honesta e não excessivamente, são necessários para manter um organismo ou uma organização saudável e ativa. A detonação é uma forma particularmente cruel de assassinato de reputação que equivale a um estupro psicológico. É manipulador, desonesto e excessivo. É ocasionalmente disfarçado pela retórica do conflito honesto ou acobertado pela negação de que exista qualquer reprovação. Mas ele não é feito para expor desacordos ou resolver diferenças. É feito para desacreditar e destruir” (para melhor compreensão ver  a denúncia de Jo Freeman feita há quase quatro décadas).

Há um elemento central no trashing que merece destaque: ele necessita, para ser efetivo, que se provoque uma confusão entre o pessoal e o político. Para torná-lo visível é preciso, portanto, ir além da aparência, fazendo o esforço de separar uma coisa da outra, desvelando as regras ocultas do jogo.

O primeiro episódio em que a prática do trashing fica evidente no universo do Tarifa Zero Salvador (TZ) remonta a uma atividade de apoio do coletivo a outro movimento social. Dois companheiros consensualmente designados pelos membros do TZ para, a pedido do movimento parceiro, exercerem a função de representação, passaram a ser hostilizados por aqueles que os haviam eleito. Ao invés dos questionamentos a respeito de como ambos estavam a conduzir a representação delegada serem expostos de forma franca e politicamente debatidos, foram disseminados boatos que colocavam em xeque o caráter e a militância dos acusados. A situação causou um profundo mal-estar coletivo e foi reduzida a meros desentendimentos pessoais. Tentou-se, dentro do TZ, tratar a questão abertamente, a fim de se evitar o linchamento moral dos dois companheiros; contudo, não enfrentou-se o problema da forma que ele exigia. À época, passou despercebido que por trás dos supostos “mal entendidos” estavam escondidos conflitos políticos. Só que os “mal entendidos” passaram a ser frequentes, coincidindo os alvos naqueles que se contrapunham à burocratização e elitização do Tarifa Zero Salvador, ou seja, àqueles que através das suas ações e propostas apontavam para a perspectiva de construir o TZ enquanto movimento social. Dessa forma, a prática do trashing se tornou permanente, cada dia mais agressiva nos espaços formais e, principalmente, nos informais do Tarifa Zero Salvador.

Duas concepções em disputa: “minoria ativa” X movimento social.

Ainda em 2014, pouco tempo após ao primeiro episódio, o Tarifa Zero Salvador resolveu realizar um planejamento no qual deveria definir suas atividades estratégicas, se repensar enquanto movimento e definir sua forma de funcionamento. Naquele momento havia um leve tensionamento de fora para dentro do coletivo, realizado por pessoas que queriam se somar ao TZ mas não encontravam a oportunidade. Enquanto a maior parte do coletivo era a favor da entrada de novos militantes, havia uma parcela que defendia uma entrada mais lenta e estruturada, supostamente “qualificada”. Apesar da prática da detonação de caráter já estar em pleno curso, havia o esforço de construir consensos, sem o uso das votações, o que tornava qualquer decisão demasiadamente lenta. Por isso o planejamento se arrastou por longos meses, findando já no final do ano e quase destruindo o coletivo.

Em uma das reuniões de planejamento foi apresentada por um dos detonadores a proposta de transformar o Tarifa Zero em uma “minoria ativa”. A proposta de “minoria ativa” consistia em regras impossíveis de se seguir para a entrada e permanência de militantes, pois exigia alinhamento ideológico e teórico entre todos, estabelecia a estratificação de militantes em categorias e impunha regime de dedicação exclusiva ao coletivo. Nesse momento ficou evidente que alguns consensos já não poderiam ser alcançados.

Em resposta, foi apresentado por outro militante os “27 pontos para reestruturar o Tarifa Zero” que apontavam no sentido oposto, objetivando nos transformar em um movimento social, um instrumento da classe trabalhadora e aberto às mais diversas contribuições e concepções de luta que não fossem contraditórias aos princípios do MPL. Era uma tentativa de levar ao extremo o caráter de Frente do Movimento.

O debate político, portanto, girou em torno dessas concepções, “movimento social X minoria ativa”, e aqueles poucos que se alinharam à proposta de “minoria ativa” foram seguidamente derrotados politicamente nos espaços de debate e de deliberação do coletivo. Por mais que a proposta de “minoria ativa” corrompesse brutalmente o caráter de Frente do MPL, cravado na sua própria carta de princípios, as desavenças políticas poderiam ser levadas com muita tranquilidade e maturidade. Entretanto, impossibilitados de conduzir o debate no plano do racional, dois militantes do coletivo, com apoios esporádicos de um ou outro membro, intensificaram as práticas de detonação de caráter, focadas naqueles que tensionavam o Tarifa Zero Salvador para se tornar mais aberto (tanto a novos militantes, quanto na relação com outros movimentos sociais). O trashing, portanto, foi a prática escolhida para reverter uma derrota política.

Consequências práticas: entrave à construção da luta e conformação do TZ como grupelho

Alinhada à proposta de “minoria ativa”, e pautada na construção demagógica e moralista de espaços militantes, houve todo o esforço por parte da dupla agressora de impor um ambiente no qual os laços de amizade se sobreporiam aos debates políticos, ideológicos e estratégicos. É importante frisar que esse tipo de conversão, que coloca a política subordinada aos afetos, personalizando a política, é a mesma que transforma movimentos sociais em comunidades herméticas e é amplamente respaldado em referenciais teóricos pós-estruturalistas (hoje hegemônicos dentro da esquerda no geral e de forma muito mais intensa na extrema esquerda). É essa a dinâmica que querem impor ao Tarifa Zero Salvador: restringir o coletivo a um grupelho, algo completamente antagônico a um movimento social ou a uma organização que se propõe ser um instrumento da classe trabalhadora. Os grupelhos funcionam por afinidade pessoal e, no caso do TZ, a crítica aberta e os debates políticos terminavam antes de começar, censurados por consequência dos ataques pessoais.

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Ressentida com o coletivo ante as sucessivas derrotas políticas, a dupla iniciou dois movimentos: 1) boicotar todas as atividades estratégicas duramente pactuadas; e 2) baixar o moral do grupo sempre quando possível. Chegaram a avaliar negativamente o maior ato de rua que fizemos em um contexto totalmente desfavorável; da mesma forma procederam quando iniciamos a articulação nacional para criar a Campanha Contra a Tarifa; por último, fizeram de tudo para inviabilizar a construção de laços de confiança com outros movimentos sociais. Apesar de, vale frisar, não terem participado destas atividades, boicotando-as, a crítica da dupla foi respeitada em absoluto e pôde ser repetida quantas vezes ela achou oportuna fazê-la.

Percebendo as limitações das duas táticas utilizadas (sucessivas derrotas políticas, a despeito do sucesso em atravancar a construção da luta através do TZ) houve um incremento: os detonadores passaram a migrar confusamente de posições ainda que, na prática, o boicote ao crescimento do Tarifa Zero Salvador persistisse. Passaram a questionar a “burocracia” do Estatuto de Entrada, mesmo sendo eles a inviabilizar a todo momento a entrada de novos militantes; começaram a defender atividades em comunidades, quando sempre se colocaram contra o trabalho de base junto aos trabalhadores; etc. Concluímos, portanto, que o objetivo sempre foi o de conter o crescimento do Tarifa Zero Salvador, deixando como única opção ser um grupo de afinidades, um clubinho de amigos, uma “minoria ativa”.

Da importância do campo libertário enfrentar o trashing “de frente”

Por último, e apesar de a nossa saída ser motivada pelos ataques pessoais constantes da dupla de agressores e dos seus poucos apoiadores, bem como pela consequente tentativa de imobilizar o coletivo com práticas que mascaram as divergências políticas e impedem o avanço da construção real da luta, não podemos deixar de referir a incapacidade do Tarifa Zero Salvador em particular, e da esquerda dita libertária no geral, de enfrentar essas questões sem se valer das armas dos próprios agressores, ou seja, a violência verbal e o linchamento moral. Como neutralizar essas práticas nocivas sem reforçar a lógica do punitivismo? Os movimentos da esquerda precisam urgentemente encarar a situação. Ou o MPL acaba com a prática do trashing ou o trashing acabará com o MPL.

Nos colocamos à disposição do Tarifa Zero Salvador e dos demais coletivos do MPL. Nos desculpamos se fomos duros em demasia, antipáticos ou omissos em algumas situações. Se defendemos nossas posições ou fizemos críticas políticas de forma desproporcional, jamais visamos agredir pessoalmente a alguém, muito menos anular o companheiro ou companheira. E se hoje saímos é porque temos a certeza que a maioria dos militantes do Tarifa Zero Salvador que permanece na organização tem clareza disso. Às pessoas que identificaram o absurdo que se passava e não permitiram o nosso total isolamento só agora podemos deixar nosso agradecimento. Tomamos emprestadas as palavras de Benedetti (as nossas não são suficientes):

“Você sabe que pode contar comigo (…) Se outras vezes me encontrar impaciente, sem motivo, não pense que diminuiu o meu amor (…) Mas façamos um trato, também quero contar com você. É tão lindo saber que você existe”. Soma e segue.

Por uma vida sem catracas e linchamentos!

Ana Carla Farias
Daniel Caribé
Luamorena Leoni

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Fonte: Passa Palavra

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