PICICA: "Em quatro grandes obras da arquiteta, a possibilidade de
ressignificar os espaços públicos, subvertendo seu formalismo e
convertendo-os em lugares de convívio e reflexão"
Lina Bo Bardi e a liberdade de estar no mundo
Dentre as possibilidades que a arquitetura tem, uma delas é ser arte de criar liberdades. No sentido de que o/a arquiteto/a pode delimitar áreas, traçar linhas, escolher materiais que convidem as pessoas a ocupar espaços de maneira criativa e libertadora. E, a rigor, a liberdade só existe nos espaços públicos: é da porta de casa para fora que cada indivíduo, ao compartilhar o viver com outros, descobre o que é a liberdade com os outros.
A cidade de São Paulo tem alguns edifícios simbólicos do que seja a arquitetura que produz liberdade, e que passaram pela prancheta de Lina Bo Bardi. São construções que levam ao encontro, instigam a criatividade de quem usa o espaço para reinventá-lo permanentemente, provocam o olhar para a descoberta do entorno e geram situações em que, naturalmente, o convívio e o respeito ao outro é uma condição.
Arquiteta italiana que adotou o Brasil como seu país, a modernista Lina Bo fez da liberdade um credo de sua produção arquitetônica. Isso pode ser observado mesmo em suas primeiras obras privadas, como a Casa de Vidro, inaugurada em 1951 no então praticamente rural bairro do Morumbi, em São Paulo, para ser a casa onde passou a viver com o marido, o crítico de arte Pietro Maria Bardi. A sala de estar é como uma grande janela suspensa, aberta para um bosque verde, provocando a continuidade do olhar para o exterior e trazendo o jardim para dentro de casa. A delimitação do espaço é usada para ampliar ao invés de restringir. O espaço interno é igualmente aberto, e é a posição dos poucos móveis que vai moldar a circulação do ambiente, de maneira sempre passível de ser modificada. Hoje, a Casa de Vidro é um museu aberto ao público.
Emoldurar o vazio e dar a ele um sentido, e ao mesmo tempo torná-lo plástico, moldável à criatividade de quem quer que venha a ocupá-lo, é também o conceito que fundamenta o desenho do SESC Fábrica Pompeia, inaugurado em 1977. Os galpões que antes encerravam grandes máquinas e pessoas trabalhando foram reformados para dar lugar a espaços amplos, com pouquíssimas interrupções fixas, totalmente flexíveis, que são reinventados a cada vez pela instituição e pelos seus usuários. A “casca” da fábrica se manteve, novamente permitindo a abertura à reinvenção permanente sem apagar a história.
As intervenções são pontuais e explícitas: estruturas de concreto criando uma biblioteca aberta, uma lareira circular com sua chaminé (posicionada não no canto, mas no meio do espaço), bancos de design simples e lúdico, e até um pequeno córrego estabelecendo uma divisão no saguão sem bloquear o olhar. Os canos e conduítes expostos e ludicamente pintados com cores primárias escancaram elementos funcionais do prédio.
Outros espaços do SESC Pompeia são um teatro bastante flexível – que pode ser usado com arquibancadas dos dois lados –, oficinas artísticas, a choperia, salas de exposições e outras atividades. Além de dois edifícios modernos, construídos a partir do zero, ligados entre si por uma malha de passarelas que enfatizam visualmente a sua função de interconectar. Para a entrada de luz, janelas em formatos ameboides recortam o concreto das fachadas.
O conjunto de edificações que constitui o SESC Pompeia é integrado por uma simples rua de paralelepípedos, que evoca o clima das ruas de bairro da cidade antes que o asfalto tomasse conta. Por si só, esta rua convida a estar ali e a circular, e também a ver e encontrar outras pessoas que ali circulam. São espaços que não se estabilizam nunca, há sempre um convite repensar sua ocupação. Por isso mesmo, o SESC Pompeia tornou-se uma referência para a arquitetura de espaços de uso público.
Em 1990, um novo projeto de Lina Bo celebra a arte, o encontro e a criação coletiva: o Teatro Oficina. A sede do grupo de Zé Celso Martinez Correia é totalmente diversa de um teatro convencional, com o dito “palco italiano”. Longa passarela em concreto, com estruturas ao modo de andaimes fazendo as vezes de arquibancadas, e ainda janelas em uma das laterais deixando entrar a luz natural quando é dia, o espaço parece criado para receber cortejos populares, como desfiles de carnaval ou outras manifestações. Tanto os andaimes como o formato realça a ligação com a arte popular, com o sentido de “oficina” de trabalho que este teatro deve ter. Novamente, o espaço não permite qualquer comodismo, ao contrário, ele praticamente obriga quem passa por ele a criar.
A cidade é uma máquina de produzir espaços públicos. Mesmo quando a proliferação de muros, cercas e portões parece dizer o contrário, em sua essência a cidade permanece como um organismo vivo, desdobrável, plástico, que se faz da concentração e interconexão de pessoas, culturas, afetos, que circulam por suas ruas. Na cidade, o compartilhamento de um destino coletivo é uma evidência. Lina Bo Bardi soube colocar isso no centro de suas principais obras em uma das cidades mais dinâmicas do mundo, a desvairada metrópole paulistana.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS / OCA TUPINIQUIM
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