junho 06, 2015

"A panicat pode ser gostosa mas não é bela", por Adriel Dutra (LETRA & FILOSOFIA)

PICICA: "Muitas mulheres que são dotadas de belezas incríveis, mas ofuscadas por ideais, não conseguem enxergar a própria beleza. Acredite, o ideal de beleza de uma época faz muitas mulheres passarem uma vida inteira querendo se adequar a formas e traços que não são seus, e assim passam uma vida inteira tentando ocultar os próprios traços, traços que poderiam irradiar beleza sobre o mundo. E temos feito do mundo um lugar feio pra caramba, a sociedade é horrível. A ditadura do sorriso, por exemplo, faz muitas mulheres de rostos melancólicos, rostos intensos com olhares sérios e fulminantes, rostos de incríveis belezas, se sentirem diminuídas."

A panicat pode ser gostosa mas não é bela

Foto: Laura Stevens, Sibylla.
Muitas mulheres que são dotadas de belezas incríveis, mas ofuscadas por ideais, não conseguem enxergar a própria beleza. Acredite, o ideal de beleza de uma época faz muitas mulheres passarem uma vida inteira querendo se adequar a formas e traços que não são seus, e assim passam uma vida inteira tentando ocultar os próprios traços, traços que poderiam irradiar beleza sobre o mundo. E temos feito do mundo um lugar feio pra caramba, a sociedade é horrível. A ditadura do sorriso, por exemplo, faz muitas mulheres de rostos melancólicos, rostos intensos com olhares sérios e fulminantes, rostos de incríveis belezas, se sentirem diminuídas.

A K., mulher de beleza extraordinária que insiste em se comparar com uma panicat…
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Acredito que a maioria das mulheres tem alguma beleza. Cada uma à sua maneira. Um jeito de sorrir e de olhar, de falar, de andar, de mexer as mãos, de provocar… um jeito que a dota de uma beleza particular e única no mundo. Cada mulher é um universo em particular, e dentro desse universo há muitos detalhes. Um detalhe, podemos chamar de uma marca, um charme, um algo que é só dela e mais ninguém, e quando a gente capta esse detalhe podemos perder a cabeça. Acredito que é algo involuntário.

Muitos homens diriam que a panicat é gostosa, é verdade, a panicat poderia representar a figura da gostosa, mas não acredito que algum homem perderia a cabeça por uma panicat. Em um mundo de dominação masculina uma mulher que não é considerada gostosa é considerada feia. No capitalismo ser gostosa está associado a ser bela, mas ser gostosa é muito mais uma demanda do tesão masculino. Ser bela é completamente diferente de ser gostosa.

A “gostosura” é passageira, o tesão é um sopro nas entranhas, é maravilho, mas é passageiro, já a beleza é uma potência (pelo menos é isso que quero defender) que deixa marcas. Fernanda se foi há muito tempo de minha vida, não a lembro pelos momentos de tesão, mas a forma como ela me olhava quando estava zangada nunca se apagou em mim.

Beleza é uma irradiação que fascina – nós irradiamos juntos! -, é gratuita e sem interesses, para uma mulher bela pouco importa se a olham ou não. Já a gostosa precisa de olhares, ela deixa de existir se não a olham, envolve trocas e interesses.

Ser gostosa é ser para o homem. O termo “gostosa” tem sua funcionalidade em um contexto de dominação masculina e está atrelado aos ideais de beleza. O tesão é modulado pelos ideais. Pierre Bourdieu, um sociólogo brilhante, mostra o quanto o tesão é muito mais sociocultural do que biológico – um homem da “idade-média” não subiria nas paredes por uma bunda-de-panicat, provavelmente ele se assustaria. Já a beleza é muito mais um acontecimento singular.

A panicat é muito mais um produto criado para atender a uma demanda em um contexto de dominação masculina, não se nasce panicat, ela deve ser fabricada de acordo com os ideais de beleza documentados em uma sociedade em uma dada época. Dificilmente ela causará aquela estranheza com que um homem é tomado diante de algumas mulheres, pode-se dizer que o tesão bloquearia muito da sensibilidade, mas não por isso, é que o tesão, nesse caso, está ligado ao ideal que é muito mais um universal do que um singular, e dificilmente alguém perde as estribeiras por algo que é universal.

A estranheza é uma delícia! É possível sentir o raciocínio ir pouco a pouco se desmanchando, parecido com o que nos acontece quando levantamos subitamente e nossa cabeça tonteia por alguns segundos. E é até bom. Saber perder um pouco o raciocínio é abrir frestas em nós para que sensibilidades outras nos ventile.

Algumas mulheres podem cativar pela estranheza que elas despertam. Tenho a sensação de que a barulheira do mundo se aquieta dentro de mim enquanto elas passam, e por alguns momentos fico sem reação. Algumas irradiam uma beleza terrível – e sabem, sabem disso! Manuseiam a beleza como uma espada bem posicionada sob a luz cujo ofuscamento vai subindo pelo corpo da lâmina até chegar à ponta afiada jorrando luz sobre o mundo. E tudo o que há de mais pensante e sábio em mim vai se desmoronando sem oferecer resistência, dando lugar a uma mística vontade de se lançar de peito e braços abertos, eu sei que posso abrir um buraco e sangrar e me dar muito mal, eu sei, mas…
Por outro lado, há muitas – muitas! – mulheres que são dotadas de belezas incríveis, mas ofuscadas por ideais não conseguem enxergar a própria beleza. Acredite, o ideal de beleza de uma época faz muitas mulheres passarem uma vida inteira querendo se adequar às formas e aos traços que não são seus, e assim passam uma vida inteira tentando ocultar os próprios traços, traços que poderiam irradiar beleza sobre o mundo. E temos feito do mundo um lugar feio pra caramba, a sociedade é horrível. A ditadura do sorriso, por exemplo, faz muitas mulheres de rostos melancólicos, rostos intensos com olhares sérios e fulminantes, rostos de incríveis belezas, se sentirem diminuídas.

Foi contemplando a Madona Sistina de Rafael, um pintor da renascença, que Dostoievski descobriu que a beleza para ele era mais que estética, tinha também dimensões éticas e religiosas, e por que não de saúde? – ele precisava da beleza para não adoecer. Meu coração disparou quando há muito tempo em Os Idiotas li que A beleza salvará o mundo, um “gigante da psicologia” disse algo que se alinhou completamente ao fascínio que eu experimentava diante de situações das quais eu sabia que a linguagem era tão inútil quanto um par de patins seria para um peixe. Diferenças à parte concordo com Dostoievski, retiro a dimensão religiosa e acredito que a beleza pode salvar nós mesmos da feiura do mundo – e da nossa.

A beleza é uma potência. Quando se trata da beleza de uma mulher que fascina o olhar escorrega no detalhe. Apaixonar-se pela beleza de alguém é, literalmente, cair em um buraco como Alice caiu e de repente se ver em outra dimensão, ficamos maravilhados com o mundo que surge, mas é também um labirinto. O que nos leva a cair é um detalhe, é um coelho apressado que só você vê – só você!
O belo é o que desespera. – PAUL VALÉRY

Foto: Laura Stevens, Sibylla.

Sobre o autor



Adriel Dutra


Adriel Dutra


Tem formação na área de humanas, mas antes de tudo é formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, pelas músicas, pelos autores, pelos filmes, pelas poesias e pela arte que o fizeram, principalmente, sentir. Tem como hobbie ficar observando detalhes que ninguém costuma ver, encontra-se beleza demais nessas frestas.

Fonte: Letra & Filosofia

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