junho 04, 2015

"Em defesa da liberdade de expressão", por Venício Lima (CARTA MAIOR)

PICICA: "Os poderosos oligopólios de mídia interditam qualquer possibilidade cumprimento das normas e princípios da comunicação social que estão na Constituição de 1988." 


Em defesa da liberdade de expressão

Os poderosos oligopólios de mídia interditam qualquer possibilidade cumprimento das normas e princípios da comunicação social que estão na Constituição de 1988.






Publicado originalmente no Observatório da Imprensa
Introdução de Cultura do silêncio e democracia no Brasil: Ensaios em defesa da liberdade de expressão (1980-2015), de Venício A. de Lima, Editora UnB, 2015; lançamento em 10/06/2015, às 18h, na Livraria UnB – SCLN 406 – Bl. A – lojas 42-46, Brasília (DF), telefone: (61) 3347-6625

Os ensaios reunidos nesta coletânea foram corrigidos, revisados e organizados em torno de cinco eixos: dois autores – Paulo Freire e Stuart Hall – e três temas – Políticas Públicas de Comunicação, Mídia e Política e Liberdade de Expressão.

Paulo Freire

A escolha de Paulo Freire [1921-1997] como objeto de tese no final dos anos 70, representava não só meu convencimento sobre o potencial de suas ideias – àquela época, inexplorado – para os estudos de comunicação, como mantinha meu foco em questões brasileiras e ainda significava um acerto de contas com minha própria iniciação intelectual e política durante os conturbados anos 60 do século passado.

Os três ensaios sobre Freire nesta coletânea devem ser vistos nessa perspectiva. São textos de referente autobiográfico, na medida em que o começo da prática pedagógica de Freire e seus primeiros livros coincidem com o período formativo de uma geração que foi batizada na militância política através da Ação Católica e teve sua esperança de mudanças estruturais frustrada pelo golpe civil-militar de 1964.

O conceito de comunicação foi articulado por Freire quando já se encontrava exilado no Chile a serviço da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e em resposta a desafios enfrentados pelo programa de reforma agrária do governo democrata cristão de Eduardo Frei [1964-1970].

Quase cinquenta anos depois, o conceito continua referencia obrigatória nas reflexões sobre comunicação dialógica. Além de tentar estabelecer seus fundamentos na 1ª. parte do capítulo 1, especial atenção é dada à sua atualidade; à sua vinculação à noção republicana de liberdade, ancorada no direito de “ter voz” e no autogoverno; e – na 2ª. parte do capítulo 1 e capítulo 2 – às possibilidades de sua aplicação no mundo contemporâneo.

O capítulo 2 é também uma tentativa, mais recente, de fazer a arqueologia do conceito seminal de cultura do silêncio desde suas raízes em Vieira, passando por Southey e Berlink, até sua apropriação criativa em Freire. Da mesma forma, a noção de comunicação como direito humano, fundada nos princípios da comunicação dialógica freireana, apropriados por D’Arcy e pelo relatório MacBride das Nações Unidas.

O capítulo 3 – escrito no início da década de 80 – polemiza em torno do significado que Freire atribui aos conceitos-chave de diálogo, violência e libertação, fundamentais para a compreensão do conjunto de seu pensamento, inclusive, claro, das noções de comunicação, cultura do silêncio e da comunicação como direito humano fundamental.

Stuart Hall

Ao lado de Raymond Williams [1921-1988] e James W. Carey [1934-2006], Stuart Hall [1932-2014] foi dos autores que mais influenciou minha formação pós-graduada, além de ser responsável direto pelo meu (re)encontro com o pensamento de Antonio Gramsci [1891-1937].

A “virada” dos Estudos Culturais no sentido do multiculturalismo e das questões sobre identidade, raça e etnia, ao mesmo tempo em que circunstâncias históricas locais direcionavam minha pesquisa para o estudo das relações da mídia com a política, provocaram meu distanciamento relativo do Hall posterior à década de 90. De qualquer maneira, um enorme débito foi se consolidando em relação à sua contribuição para os estudos de mídia que, de fato, nunca chegou a ter a influência que merece e deveria ter entre nós.

A morte de Stuart Hall, em fevereiro de 2014, deu origem a uma ampla rediscussão de sua vida e obra na esteira da expansão universal dos Estudos Culturais ingleses e serviu de pretexto para que se chamasse atenção para sua contribuição “esquecida”. Uma longa entrevista ao jornalista Severino Francisco [“O pensador do multiculturalismo”; caderno “Pensar”, Correio Braziliense, 15/2/2014] e um artigo no portal Carta Maior [cf. Venício A. de Lima, “Stuart Hall e os estudos de mídia”, in Carta Maior de 19/2/2014; disponível aqui] abriram caminho para uma participação no Ciclo de Debates “A Multiplicidade de Stuart Hall”, promovido pelo Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP, onde apresentei o paper publicado aqui como capítulo 4.

Ao lado de um balanço crítico da influência em teses, estudos e iniciativas brasileiras nos anos 80 e 90, discuto o Stuart Hall “esquecido”, sobretudo em torno da análise de três de seus textos, fundamentais para a teoria da recepção, os estudos de jornalismo e para a interminável querela sobre a comunicação como campo autônomo de conhecimento.

Políticas Públicas de Comunicação

Ao longo da década de 70 ganhou corpo internacionalmente o debate sobre políticas nacionais de comunicação e se consolidou na UNESCO a proposta de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC) com repercussões importantes em vários países, inclusive no Brasil da ditadura militar.

Foi nessa conjuntura que o programa de mestrado em Comunicação da UnB, para marcar um ano de sua criação, promoveu o Seminário Latino Americano de Comunicação, reunindo em Brasília, em julho de 1975, além de autoridades de governo e de organismos internacionais, os principais pesquisadores da comunicação na América Latina para discutir “comunicação e desenvolvimento”. O Departamento de Comunicação da UnB teve participação ativa neste debate e, através de vários de seus membros, contribuiu na elaboração de propostas de políticas democráticas e de estruturação de um sistema público [não estatal] de comunicação [cf. Venício A. de Lima, “Políticas de Comunicação – Um marco esquecido na história” in Observatório da Imprensa, edição nº 686 e 20/3/2012, disponível aqui] e Marco Antonio Rodrigues Dias; UnB e Comunicação nos Anos 70; Editora UnB, 2013].

No início da década seguinte [1981-1989], paralelamente à atividade docente [à exceção do período de 8/1982 a 4/1985], passei a exercer as funções de assessor parlamentar no Senado Federal. Neste período fiz também parte do grupo que fundou o Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (CEC) e produziu, por solicitação do, então, candidato a presidente da República Tancredo Neves, o documento pioneiro A transição política e a democratização da comunicação social: alternativas para ação de um governo democrático, em 1984.

A assessoria no Senado Federal me familiarizou com o processo legislativo e com particularidades na tramitação de projetos de lei relativos à comunicação social. Na Constituinte de 1987/88, tive o privilégio de assessorar os respectivos relatores da Subcomissão de Ciência e Tecnologia e de Comunicação, Cristina Tavares, e da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, Artur da Távola. Consolidei, então, meu interesse não só pela legislação da comunicação social como pelo processo de formulação das políticas publicas do setor.

O capítulo 5, escrito ainda em 1987, analisa criticamente o funcionamento e o encaminhamento de propostas na Subcomissão onde o tema da comunicação social foi tratado na Constituinte de 1987/88. As posições divergentes de atores fundamentais no processo se consolidaram ainda na Subcomissão e perduraram até a redação do texto final da Constituição de 88. É interessante observar como muitas questões polêmicas àquela época continuam não resolvidas e atuais na regulação do setor.

O capítulo 6, mais recente, discute o padrão histórico que orienta a regulação das comunicações desde os primeiros decretos getulistas da década de 30 do século passado: exploração comercial privada do serviço público de radiodifusão, ausência de restrições à concentração da propriedade e livre formação de redes de afiliadas tanto de rádio quanto de televisão. Analisam-se, como exemplos, o Código Brasileiro de Telecomunicações (1962), a Constituição Federal de 1988 e os “critérios técnicos” de distribuição dos recursos públicos de publicidade adotados pela SECOM-PR desde 2008.

No capítulo 7, trata-se de reconstituir o como e o porquê da inclusão do princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão na Constituição de 1988 (caput do artigo 223). Discutem-se também os conceitos de radiodifusão estatal e pública.

Os Conselhos Estaduais de Comunicação Social (CECS) são o tema do capítulo 8. Incluídos pelo princípio da simetria ao artigo 224 da Constituição de 1988 nas constituições de nove estados e na lei orgânica do Distrito Federal, são o exemplo mais eloquente da interdição não declarada à participação popular e à discussão pública das questões relacionadas ao sistema privado de mídia dominante no país. A rigor, somente a Bahia logrou instalar e fazer funcionar seu CECS (2011/12).

O Capítulo 9 oferece uma detalhada avaliação crítica das políticas públicas de comunicações durante os 10 primeiros anos de governo liderados pelo Partido dos Trabalhadores (2003-2012). Discute-se o que prometiam os programas de governo, assim como o que foi e o que não foi feito ao longo de todo o período. O balanço é negativo. Escrito no final de 2012, o capítulo não inclui os dois últimos anos do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (2013-2014). Todavia, foram atualizadas informações sobre o Marco Civil da Internet, o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) e a distribuição da verba oficial de publicidade pela SECOM-PR.

O capítulo 10 é a Apresentação escrita para o livro que reproduz a ley de medios da Argentina, o relatório do juiz Leveson, na Inglaterra, e um documento comissionado pela União Europeia para servir de orientação a seus estados-membros sobre a pluralidade e a diversidade na mídia. Trata-se de documentos contemporâneos que não só confirmam o quanto estamos defasados no campo da regulação democrática das comunicações, como servem de referencia para o inadiável debate do tema.

Finalmente, o capitulo 11 fecha a parte mais extensa da coletânea. Escrito com Bráulio Santos Rabelo de Araújo, trata de contribuir com o debate sobre a regulamentação do § 5º do artigo 220 da Constituição Federal que proíbe monopólios ou oligopólios nos meios de comunicação social. Além de decisões sobre o tema já tomadas pelo CADE com base na jurisprudência do direito financeiro, discute-se também a propriedade cruzada, sempre regulada nas democracias liberais, e a ausência de controle legal sobre os contratos de afiliação entre emissoras de rádio e televisão.

Mídia e Política

A primeira eleição direta para presidente da República (1989) depois da ditadura (1964-1985) levou vários pesquisadores a se dedicar ao estudo das relações entre a mídia e a política e, em particular, da mídia com os resultados eleitorais. No meu caso, o interesse na relação mídia e política, aliado a outros fatores, provocou, inclusive, minha transferência, dentro da universidade, da Comunicação para a Ciência Política.

O capítulo 12 sobre “cenários de representação, CR” é o resultado de um longo processo que, apoiado na noção gramsciana de hegemonia, se inicia com a pesquisa da “construção” pela mídia do candidato eleito presidente da República, Fernando Collor de Mello; resulta na articulação do conceito de CR-P, cenário de representação da política; e, posteriormente, desemboca na teorização dos CR, cenários de representação, criados na e pela mídia, não só para a política, mas também para as raças, os gêneros, a beleza e as gerações, dentre outros.

Como o conceito de CR refere-se basicamente à televisão aberta e foi articulado no final dos anos 80 e início dos 90, as adequações teóricas provocadas pela chegada da internet e, sobretudo, dos blogs e das redes sociais virtuais, estão indicadas em breve nota reproduzida ao final do capítulo, escrita em 2012.

O capítulo 13 é a tentativa de rediscussão teórica do conceito de “coronelismo eletrônico” que orientou uma longa pesquisa realizada com a colaboração de Cristiano Aguiar Lopes, entre 1999-2004. Os dados confirmaram que as rádios comunitárias se constituem no novo locus de uma prática política que guarda semelhança com o “coronelismo” identificado por Vitor Nunes Leal na República Velha e que ainda sobrevive pelas ambiguidades legais não resolvidas do artigo 54 da Constituição de 1988. De qualquer maneira, o objetivo é discutir o papel da mídia hoje, naquilo que Leal chamava de “falseamento da representação política”.

O capítulo 14, escrito em parceria com Juarez Guimarães, propõe uma recolocação teórica da relação entre mídia e politica argumentado que “é insuficiente pensá-las através de uma relação interdisciplinar entre duas áreas de estudo que contém zonas de confluência”. Na verdade, trata-se “do desafio de constituir um campo de pensamento no qual a própria política e a comunicação mútua e geneticamente se constituem em seus conceitos fundamentais. Política e comunicação são dimensões que não podem ser analiticamente isoladas sem se perder a compreensão do próprio objeto que se investiga”.

Liberdade de expressão

A equação, sem mais, da liberdade de expressão (cidadão) com a liberdade da imprensa (empresa) – ao lado da acusação de censura – tem sido o abrigo seguro para onde se deslocam os poderosos oligopólios de mídia que, ao longo dos últimos 25 anos, interditam qualquer possibilidade de regulamentação e, portanto, de cumprimento das normas e princípios da comunicação social que estão na Constituição de 1988.

Reagindo a este quadro que se consolida através da construção cotidiana de uma linguagem pública que engessa as tentativas de debate dentro do vocabulário e da gramática convenientes aos oligopólios, publiquei um conjunto de textos escritos entre 2004 e 2009 que tratava da diferença entre a liberdade de expressão do cidadão comum e a liberdade da imprensa emLiberdade de Expressão x Liberdade da Imprensa – Direito à comunicação e democracia (1ª. edição, 2010; 2ª. edição, revista e ampliada, 2012). O capítulo 15 é uma versão corrigida e atualizada da Introdução Geral à 2ª. edição desse livro.

O capítulo 16, originalmente publicado on line, em 2009, trata criticamente a posição que tem sido defendida pela Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e por seus aliados no combate ao que consideram ameaças à liberdade da imprensa. Comento a infeliz comparação entre a ANJ e a deusa grega Atenas (Minerva para os romanos) que, como se sabe, teve comportamento ético questionável na guerra de Tróia.

O capítulo 17 foi escrito em 2011 como verbete para uma coletânea sobre as dimensões políticas da Justiça e discute três decisões do Supremo Tribunal Federal relacionadas à liberdade de expressão, proferidas no curto intervalo de oito meses, em 2009: a inconstitucionalidade da antiga lei de imprensa que deixou a descoberto o direito de resposta; a não exigência de diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista e o entendimento sobre aquilo que o jornal “O Estado de São Paulo” considera “censura judicial”.

O capítulo 18 reproduz uma carta aberta dirigida ao presidente do Congresso Nacional, senador Renan Calheiros, que no discurso de posse (2013) declarou seu compromisso definitivo “contra qualquer tentativa de controle da liberdade de expressão”, referindo-se à criação de uma“barreira contra os calafrios provocados pelo inverno andino, (…) uma trincheira sólida (…) a fim de impedir, de barrar a passagem destes ares gélidos e soturnos”.

O capítulo 19, escrito em 2014, mostra que o Estado não é a única fonte de censura à liberdade de expressão, fato reconhecido e medido, através de índices específicos, nas principais democracias do mundo. Ao contrário, muitas vezes, constitui-se em seu principal fiador.

Encerro a coletânea com o capítulo 20, um curto ensaio publicado on line, em 2011, no qual discuto o abismo existente entre dois eventos realizados no mesmo dia, a poucos quilômetros de distância um do outro, com o mesmo objetivo: a defesa da liberdade de expressão. A diferença estava nos sujeitos cuja liberdade se defendia.

Resta o desejo de que os vinte textos reunidos neste Cultura do Silêncio e Democracia no Brasil: ensaios em defesa da liberdade de expressão (1980-2015), fruto de mais de três décadas de trabalho, possam ser de alguma utilidade para seus (suas) eventuais leitores (as).

[Brasília, DF; verão de 2015]

***

Venício A. Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e organizador/autor com Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim de Em defesa de uma opinião pública democrática – conceitos, entraves e desafios (Paulus, 2014), entre outros livros


Fonte: Carta Maior

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