Crack: internação compulsória fracassa também no Rio
PICICA: Esse resultado era previsível. Dilma ao ouvir apenas um lado da história cometeu um duplo erro: desprezou a experiência do setor e cedeu ao fundamentalismo cristão, comprometendo anos de laboriosa construção da reforma psiquiátrica. Como até hoje ela se recusa a ouvir o movimento social, poderia ao menos ouvir a Coordenação Nacional de Saúde Mental que, apesar de reconhecida competência, foi obrigada a engolir à seco as ordens do ministro-chefe. Um retrocesso que contraria a inteligência do setor. O diagnóstico da situação no país na questão das drogas é conhecido pelos técnicos de saúde. O que é desconhecido pela opinião pública, face à espetacularização midiática do uso do crack, são as estratégias para enfrentar o tempo perdido por falta de investimentos. Sabidamente uma política sobre drogas não pode ser reduzida a soluções simplistas. A matéria abaixo é o registro doloroso dos caminhos tomados por alguns governos, na esteira das decisões do governo federal, e, de certa forma, a constatação de que mesmo a mídia comprometida com o rigor da informação desconhece a existência de outros métodos testados e aprovados, e que não decolam pelas mesmas razões que estão na base do fracasso da política atual (descontada a natureza desigual das intervenções). Desse modo, à conclusão da matéria: "O método ideal para o Brasil, como se vê, está sendo testado na
prática", faltou acrescentar... sem uma rede competente, sem profissionais qualificados e sem investimento financeiro para dar suporte a esses dois elementos indissociáveis para o êxito de qualquer política digna do nome). Mesmo o que está equivocadamente sendo investido no setor, ainda é pouco para o desafio que está posto para o país: estratégias a curto, médio e longo prazo no processo de formação para todas as categorias do setor, sem a qual não há efetiva substituição do modelo manicomial ainda impregnado na mentalidade dos setores conservadores do cenário político e social brasileiro.
Reportagem revela centros de internação precários, métodos rudimentares, abusos e índice muito baixo de fim da dependência
Por Francisco Alves Filho, em Carta Capital
O volume de trabalho de Celso Ferreira, 45 anos, funcionário da Prefeitura do Rio de Janeiro, aumentou muito no último ano. Contratado para um cargo de título pomposo, “educador social”, ele é uma das 50 pessoas cuja função é ir às chamadas cracolândias da cidade para recolher os usuários de crack e levá-los para abrigos municipais. Depois de criar um “Protocolo de Abordagem Social”, no início de 2011, a prefeitura passou a internar compulsoriamente crianças e adolescentes viciadas.
“A quantidade de meninos recolhidos aumentou bastante. Gosto do que faço, é preciso recuperá-los”, diz Celso, evangélico fervoroso. Mais precisamente, foram 544 nos últimos 12 meses. Apesar da boa intenção de funcionários como ele, a iniciativa da Prefeitura do Rio é alvo de polêmica e sérias contestações. A eficácia do tratamento iniciado com uma internação obrigatória é questionada por muitos especialistas, defensores de uma abordagem baseada no convencimento e no apoio familiar.
“Lugar de criança não é na rua. Se não quero isso para o meu filho não quero nenhum menino ou menina”, diz o secretário de Ação Social, Rodrigo Bethlem, encarregado da tarefa. Apesar da convicção de Bethlem, o percentual de sucesso não pode ser considerado alto (28,16%) e a veracidade dos dados tem sido contestada. Em cidades como Porto Alegre, Salvador e Recife, consultórios montados na rua se colocam como alternativa a esse tipo de abordagem. O Brasil ainda busca a metodologia ideal para combater o flagelo do crack.
A rotina dos funcionários que recolhem os menores para internação compulsória se parece com um jogo de gato e rato. Nas operações freqüentes, feitas geralmente em locais perigosos pela proximidade com o tráfico, eles assistem a muitos viciados fugirem em debandada assim que suas vans estacionam.
Quando conseguem se aproximar de algum jovem usuário de crack, gastam um bom tempo conversando. “Tentamos fazer ele ir por vontade própria, para evitar levar pelo braço”, conta Celso. A maioria escapa, há quem arremesse pedras contra os veículos, mas algumas crianças e adolescentes alcançados pelos funcionários acabam levados para as vans. “Com o tempo, notamos a diminuição de meninos nessas cracolândias, uma prova de que estamos avançando”, diz Betlem.
São muitos os especialistas que acham o contrário. “A internação compulsória pode ser indicada para alguns casos, são exceções e não a regra”, acredita Pedro Abramovay . Ele reconhece, no entanto, que a ação da prefeitura do Rio tem o benefício de seguir os parâmetros da saúde e da ação social e não da captura policial, como ocorre em São Paulo. “As instalações para onde são levadas essas crianças, porém, têm métodos e aparência de prisão, são inadequadas para o tratamento”.
Uma das críticas mais assíduas a esses abrigos é a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Margarida Pressburger. Ela esteve em janeiro no abrigo Casa Viva, de Laranjeiras, e não gostou nada das condições do lugar, um pequeno prédio de dois andares. “A médica e a psiquiatra fazem plantão apenas uma vez por semana, durante três horas”, relata a advogada.
Além disso, segundo Pressburger, as crianças estavam completamente ociosas, sem um livro, uma televisão ou uma bola para ocupá-las. O uso de remédios de tarja preta foi constatado. “Uma das meninas se mostrava completamente apática, sem reação, e a psiquiatra do nosso grupo disse que ela estava dopada”, conta a integrante da OAB.
“Aquilo não devia ter o nome de Casa Viva, parece mais casa da morte”. A artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, coordenadora de uma ONG para atendimento a crianças de rua, também esteve naquele abrigo. “Está longe de ser o tratamento ideal para crianças envolvidas com esse problema. Elas deveriam estar hospitalizadas”, opina.
A reportagem de Carta Capital esteve no abrigo Ser Criança, no bairro de Guaratiba, na manhã de terça-feira 10. Diferente das instalações de Laranjeiras, ali o espaço é bastante amplo, com piscina, quadra de futebol e duas salas de tevê. Os quartos são pequenos, com beliches onde há vagas para quatro meninos.
O abrigo é dividido em área de crianças e de adolescentes. Naquela manhã, uma psicóloga atendia alguns abrigados e 17 crianças participavam de uma atividade lúdica. Aos 14 anos, o garoto M.A. está prestes a completar 11 meses no abrigo. Antes dali, não passava um dia sem crack e chegou a pegar em arma na quadrilha de traficantes de drogas da favela Mandela, na zona norte carioca. “Depois de uma operação policial, eu resolvi pedir para ser internado”, conta ele.
Tratado com medicamentos, o próprio garoto diz estar com aparência bem melhor do que quando chegou e espera voltar para casa em breve. Esse retorno, que representaria o final do tratamento, pode, na verdade, se tornar um risco: enquanto o irmão foi preso algumas vezes e é usuário do crack, a mãe, também viciada, fez apenas uma visita ao filho e não se mostra preocupada com o destino do garoto. “Com uma família desestruturada, é grande o desafio de manter o tratamento depois que o menino sai daqui”, diz Watusy Ramos, coordenadora do abrigo.
O setor destinado aos adolescentes é diferente da área das crianças. Ali está a quadra de esportes, mas o espaço é bem menor. Além disso, as instalações estão em pior estado, com infiltrações e mesas de plástico mal conservadas. Os banheiros são limpos, mas parecem não ter recebido acabamento, o que dá ao lugar um ar prisional – impressão acentuada pelo físico musculoso do educador que lidava com os jovens. Um deles, G. S., de 15 anos, foi levado ao abrigo pela família.
Também usa medicamentos para controlar as crises de abstinência e diz se sentir melhor. Tem, no entanto, uma reclamação grave: a agressividade por parte de alguns educadores. Seu colega, M.A. também diz que foi agredido por um “tio”. Tanto G.S. quanto M.A. reclamaram das agressões à coordenadora Watusy, que repreendeu os funcionários e, segundo os meninos, o problema não se repetiu.
A denúncia mais contundente, no entanto, é feita por Monique Barbosa, mãe de J.A., de 12 anos. O garoto está de volta à casa desde janeiro, depois de passar quatro meses no abrigo de Guaratiba. Inicialmente, ela elogia o trabalho e diz que o filho está recuperado do vício do crack graças àquele tratamento. “Desconfiava que não ia dar certo, mas foi melhor do que eu esperava. Mesmo depois da volta dele para casa, continuo recebendo apoio da prefeitura”, diz.
Do lado negativo, Monique também relata agressões. “Meu filho falou que alguns funcionários batiam nas crianças, outros acordavam os meninos jogando água em seus rostos. Houve até um dos meninos, chamado Yan, que foi jogado na piscina com os braços amarrados e quase se afogou, foi retirado de lá desacordado”, relata. Depois que o filho contou essas cenas, presenciadas no final do ano passado, Monique levou o caso à coordenadora, que afastou o funcionário. Watusy reconhece que volta e meia é obrigada a lidar com o problema: “Fazemos cursos de qualificação e de reciclagem, mas há quem não saiba lidar com a agressividade dos jovens afetados pelo vício. Quando identifico algum esse tipo de comportamento, repreendo ou afasto a pessoa imediatamente”.
Consultado pelo secretário Bethlem antes do início do recolhimento compulsório, o psiquiatra Jorge Jaber vistoriou os quatro abrigos da prefeitura e aprovou tanto o espaço físico quanto a preparação dos educadores. “Vi gente abnegada, que se dedica ao seu trabalho”, afirma. No ano passado, voltou à Casa Viva e também gostou do que viu. Acha que é preciso avançar e reuniu-se com outros especialistas para levar à prefeitura sugestões que possam melhorar o atendimento, entre elas a criação de um instituto voltado para o tratamento de usuários de drogas.
Sobre a eficácia do tratamento feito depois de internação compulsória, ele não tem dúvida: “Fiz um estudo e concluí que nesses casos o sucesso pode chegar a 77% dos casos, superior ao constatado nas internações voluntárias”. Por esse padrão, o desempenho da prefeitura do Rio está baixo, pois não chega a metade desse índice. Integrante da ONG “Respeito é bom e eu gosto”, que denuncia os problemas do programa de internação compulsória, Paulo Silveira discorda profundamente de Jaber.
“O uso do crack começa num ambiente tão ruim que a droga aparece como solução. A saída é dar resposta social para fazer com que a droga deixe de ser necessária”, acredita Silveira. Ele classifica o programa do Rio como “farsa” na medida que oferece instrumento de inclusão social. “Cidadãos brasileiros estão sendo suprimidos de seus direitos. É um regime de exceção justificado pela guerra às drogas”.
Garoto é carregado por agentes
“Mesmo nos casos de crianças e adolescentes buscamos estabelecer um relacionamento de confiança e tentamos convencê-los a se tratar”, explica o secretário municipal de Saúde da capital gaúcha, Marcelo Bósio. Foram criadas comunidades de acolhimento, nas quais os garotos e garotas não perdem o vínculo familiar.
Para ele, a motivação do indivíduo é um forte elemento para a recuperação. “A internação compulsória não é eficaz, a vontade do usuário de se tratar é importante para a cura. Por isso, nunca optamos pela imposição”, afirma. Recife e Salvador têm experiências parecidas. Não se sabe, porém, se poderiam ser repetidas em megalópoles como Rio e São Paulo, onde o número de crianças e adolescentes viciados é muito maior. O método ideal para o Brasil, como se vê, está sendo testado na prática.
Fonte: Outras Palavras
4 comentários:
A imposição nunca é um bom começo, mas tratando-se e crianças e adolescentes, considero a internação compulsória necessária. Não ignoro o histórico de segregação praticado por este tipo de "política", como temos visto acontecer no Rio de Janeiro, sendo os lugares e as pessoas envolvidadas no "tratamento" despreparadas para qualquer "tratamento" científico: os abrigos tornam-se lugares onde a sociedade esconde seu "lixo", e todos acabam felizes, pois o problema "foi resolvido". Há muito que se avançar ainda.
Concordo que a imposição não é interessante.
Porém, ainda não tenho uma opinião formada quanto ao que fazer em relação a crianças e adolescentes, muitos deles sem família, que já cedo estão progredindo no vício que, sem tratamento (ainda que precário seja, porém, tratamento) pode trazer consequências irreversíveis em suas vidas.
A solução de Porto Alegre de trabalhar de forma integrada com a família me parece inteligente. A internação compulsória do jeito que é feita aqui no RJ me parece uma faxina, muitas vezes. Algo mais para limpar as ruas e somar votos mais para frente do que propriamente promover um ambiente adequado e sadio para a estabilidade psíquica do paciente.
Se esquecem (!) de que há seres humanos do outro lado dessa faxina que estão fazendo. Não é simplesmente limpar a rua, mas sim proporcionar um ambiente mental e físico adequado para que essas pessoas possam ter um tratamento adequado. No entanto, não vejo esse ser o interesse do governo estadual. A faxina se faz mais imediata do que a saúde pública.
É interessante o exemplo de Porto Alegre, mas não vejo isso sendo aplicado aqui no Rio de Janeiro, com governantes como Eduardo Paes e Sérgio Cabral.
Gostei muito da matéria, mas principalmente das fotos. Gostaria de saber a referência delas, as fotos foram publicadas em algum jornal ou é de autoria do editor do texto?
As fotografias pertencem, salvo engano. à Carta Maior.
Postar um comentário