PICICA: "A
exclusão da herança indígena na formação da brasilidade é um equívoco
comumente reforçado pela escola, pelo livro didático e pela própria
mídia."
TIA SUZANA, MEU AMOR
José Ribamar Bessa Freire
22/04/2012 - Diário do Amazonas
"Aquilo
que vivemos não está no mundo, está na maneira como olhamos para ele". É
o que nos diz o romancista português Antônio Alçada Baptista, autor de
uma vasta obra. Tudo depende, então, dos significados que cada um
atribui àquilo que viveu. Quem concorda com essa definição é Gabriel
Garcia Márquez, que acrescenta, no entanto, mais duas dimensões, além do
olhar: a memória e a capacidade de narrar.
- A
vida não é aquela que uma pessoa viveu, mas a que ela recorda e como
recorda para contá-la - escreveu o escritor colombiano.
Pensando
bem, parece que os dois têm razão. Nossa vida acaba sendo isso mesmo: o
que olhamos, o que lembramos e o que narramos. No frigir dos ovos, é a
isso que a vida se reduz. Se não lembramos, se não narramos, não
existiu. Se lembramos e narramos de uma determinada forma, é essa forma
que prevalece. "The rest is silence", nas últimas palavras de Hamlet, antes de morrer. Ou "o resto é farofa de abobrinha", na tradução do meu sobrinho Pão Molhado, que gosta de filosofar.
Lembrei
do Antonio Alçada agora, nesta semana em que celebramos a presença dos
índios no Brasil, por causa de uma história que ele me contou, em 1982, a
mim e ao escritor amazonense Márcio Souza, quando juntos o visitamos,
em Lisboa, no Instituto Português do Livro do qual ele era, então,
presidente.
Alçada,
falecido há três anos, era um grande contador de história, divertido e
sedutor. Escrevia, ainda, crônicas saborosas no jornal O Dia, do
qual foi redator-chefe. O fato que nos contou ocorreu em uma viagem de
turismo de barco que ele fez pelo sul do Mar Egeu com um grupo de amigos
portugueses.
Numa
das ilhas gregas, acho que era Creta, mas não tenho certeza, ele estava
de pé, diante das ruínas de um palácio, conversando sobre o passado
glorioso da Grécia com seus amigos. Foi aí que passaram vários turistas
japoneses, disciplinados e em fila, ostentando suas filmadoras e
máquinas fotográficas. Um deles parou, ficou escutando, olhava com
insistência, fixamente, não desgrudava os olhos de Alçada. Os olhares
dos dois se cruzaram. O japonesinho se aproximou e, demonstrando que
havia entendido a língua que falavam, perguntou:
- Desculpa. Vocês são portugueses?
Diante
da resposta afirmativa, o japonesinho colocou o polegar e o indicador na
boca, emitindo um longo e estridente assobio para seus amigos que
haviam se distanciado. Quando todo mundo virou a cabeça, ele gritou em
português, com um sotaque do interior de São Paulo,
- Ei, pessoal! Voltem aqui! Encontrei um grupo dos nossos antepassados.
O
escritor contou que os portugueses explodiram em uma gargalhada
generalizada, só em imaginar que eram avós daqueles "japoneses", de
olhos puxados e pálpebras lisas. Logo depois, porém, os dois grupos se
confraternizaram e a ficha caiu. Os "japoneses" eram todos brasileiros.
A
ascendência reivindicada ali não se devia às características fenotípicas
ou genéticas, mas à cultura, à língua. Aqueles filhos de imigrantes
nipônicos que nasceram no Brasil acabaram assumindo plenamente a
história do país, um passado que, embora não sendo deles,
individualmente, nem de suas famílias, é da nação a qual eles pertencem.
Assumiram
plenamente? Será? O que sobrou dessa história foi a pergunta: e se os
brasileiros de origem japonesa tivessem encontrado um grupo guarani
falando português, será que reivindicariam, igualmente, a descendência
histórica? Provavelmente não, porque embora índios e africanos façam
parte das matrizes formadoras da nacionalidade brasileira, nós fomos
treinados, adestrados, para nos identificarmos exclusivamente com a
matriz europeia.
A
exclusão da herança indígena na formação da brasilidade é um equívoco
comumente reforçado pela escola, pelo livro didático e pela própria
mídia. Esta visão eurocêntrica e preconceituosa foi reafirmada em vários
momentos significativos de nossa história, como nas comemorações do
Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, quando no
discurso de abertura, Paulo de Frontin disse com todas as letras que o
Brasil nada tinha a ver com os índios.
- Os
selvícolas não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa
nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo,
eliminá-los.
Depois
disso, se reforçou ainda mais esse obscurantismo intelectual, que
elimina o índio na representação que o Brasil faz de si mesmo. Esta
imagem está baseada em outros preconceitos, como aquele que considera as
culturas indígenas como atrasadas e primitivas, desconhecendo que os
índios produziram e continuam produzindo saberes, ciências, arte
refinada, literatura, poesia, música, religião.
Os
colonizadores acreditaram nessa falácia, ignorando completamente a
complexidade das culturas indígenas, o que foi internalizado pelos
brasileiros que continuam se pautando em estereótipos e no senso-comum,
sem levar em conta a contribuição dada no campo da antropologia.
Quando
se aceita que os índios fazem parte de nossa história, se cultiva outro
equívoco, achando que eles pertencem exclusivamente ao passado. É o
índio de papel, dos arquivos e não o índio de carne e osso. Ora, os
dados do Censo de 2010, divulgados no dia 19 de abril - dia do índio -
pelo IBGE, mostram que em relação aos dois censos anteriores, a
população indígena cresceu extraordinariamente, totalizando 817.630
indivíduos, que vivem em 4.480 municípios dos 5.565 existentes no
Brasil.
Sobre
esses equívocos é que estarei falando na próxima quinta-feira, na
Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio, no Seminário Brasil,
brasis, coordenado por Domício Proença Filho, numa mesa redonda
intitulada "O índio no Brasil contemporâneo", com a doutora Graça
Graúna, professora da Universidade de Pernambuco. Trata-se de uma
programação da ABL, iniciada em 2006, com encontros mensais que discutem
os mais variados temas. Desta vez, são os índios.
E o que tudo isso tem a ver com a Tia Suzana, Meu Amor?
Ah, esse é o título de um romance do Antônio Alçada sobre o qual eu
queria comentar, mas o espaço se esgotou. Ele fala de Deus, da morte, do
suicídio, do corpo, da mulher, do provincianismo, dos preconceitos de
uma sociedade conservadora. Mas fica para outra vez. Prometo.
Fonte: TAQUIPRATI
Nenhum comentário:
Postar um comentário